Progressiva politização nos Tribunais de Contas e idiossincrasias sistêmicas
16 de junho de 2025, 9h28
A nomeação de conselheiros para os Tribunais de Contas, embora formalmente disciplinada por critérios constitucionais e legais, tem revelado uma realidade institucional marcada por desvios sistêmicos. A tentativa de nomeação do vice-governador do Rio de Janeiro para o cargo de conselheiro do TCE-RJ reacende o debate sobre o respeito aos requisitos formais e materiais exigidos para o exercício de funções de alta complexidade no controle da administração pública.
Este artigo propõe-se a examinar criticamente tal nomeação, ponderando sobre a possibilidade jurídica da antecipação da colação de grau nos moldes da LDB e, sobretudo, contextualizando essa situação no quadro mais amplo das distorções históricas e políticas que comprometem uma composição mais qualificada dos tribunais de contas.
Requisitos constitucionais e a estrutura do TCE-RJ
A Constituição do Estado do Rio de Janeiro (artigo 128, §1º) e a Lei Complementar Estadual nº 63/1990 estabelecem critérios rigorosos para a investidura no cargo de conselheiro: idade entre 35 e 65 anos, idoneidade moral, reputação ilibada, notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos, financeiros ou de administração pública e, por fim, mais de dez anos de experiência profissional exigente desses conhecimentos.
Além disso, a jurisprudência do STF, consolidada na Súmula 653, limita a livre nomeação do chefe do Poder Executivo estadual a apenas uma das três vagas sob sua competência, devendo as demais ser preenchidas obrigatoriamente por auditores ou membros do Ministério Público de Contas.
No caso em análise, apontou-se a ausência de diploma de ensino superior do indicado, o que, a princípio, tornaria sua nomeação formalmente inviável. Contudo, aventa-se a hipótese de antecipação da colação de grau, conforme o artigo 47, §2º, da LDB, que admite a conclusão antecipada do curso para alunos com desempenho extraordinário.
Antecipação da colação de grau como expediente jurídico
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) admite, em caráter excepcional, a abreviação da duração dos cursos superiores por alunos que apresentem desempenho acadêmico extraordinário, mediante avaliação por banca examinadora especial. Embora pouco usual, essa possibilidade jurídica tem previsão legal expressa e poderia, em tese, ser utilizada por indivíduos que estejam próximos de concluir sua graduação para fins de investidura em cargos que exijam escolaridade superior.

No entanto, a aplicação desse dispositivo requer rigor técnico e transparência institucional, sob pena de instrumentalização da norma com fins exclusivamente políticos. A nomeação de conselheiro de Tribunal de Contas, por sua natureza vitalícia e função estratégica no controle financeiro da administração pública, não pode ser reduzida a um cumprimento meramente formal de requisitos legais.
Precedentes históricos e flexibilidade interpretativa
Não é inédita a flexibilização de requisitos formais para o preenchimento de cargos públicos de cúpula. Cândido Barata Ribeiro, médico, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal em 1891. Embora o contexto histórico seja distinto e anterior à Constituição de 1988, o exemplo revela que a trajetória e a reputação podem ser consideradas elementos ponderáveis no processo de nomeação. Entretanto, não se pode olvidar que o STF vem consolidando entendimento restritivo quanto à interpretação dos requisitos objetivos para cargos de conselheiro de Tribunal de Contas.
Idiossincrasias sistêmicas na composição dos TCs
As distorções estruturais na composição dos tribunais de contas estaduais foram objeto de importante levantamento empírico realizado pela organização Transparência Brasil (2016). O estudo revelou que aproximadamente 80% dos conselheiros exerceram previamente cargos eletivos ou posições de destaque na alta administração pública, 23% respondem a processos judiciais ou administrativos e 31% possuem vínculos de parentesco com figuras do poder político, inclusive sendo nomeados por familiares próximos.
Casos emblemáticos reforçam esse padrão: o conselheiro Antônio Messias (TCE-AC), médico nomeado por seu primo governador; a conselheira Carla Santillo (TCE-GO), odontóloga e ex-deputada estadual; e os jornalistas Fernando Vita e Paolo Marconi (TCM-BA), cujos currículos se distanciam das áreas técnicas exigidas constitucionalmente. Tais exemplos colocam em xeque os critérios de “notório saber” e revelam um preocupante processo de captura política dos órgãos de controle.
Jurisprudência constitucional e limites da nomeação política
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem buscado restringir o arbítrio político nas nomeações para os tribunais de contas. O RE 167.137/TO e a Súmula 653 reforçam a vinculação da escolha a requisitos objetivos e a reservas de vagas para quadros técnicos, em clara ruptura com o modelo patrimonialista que historicamente marcou tais indicações.
No RE supracitado, no qual se discutia a indicação de conselheiro para o TCE-TO, o saudoso ministro Paulo Brossard consignou “deve haver um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o ofício a desempenhar. Podem eles ser pessoas excelentes, mas nada indica que tenham a qualificação mínima para o desempenho dos cargos para os quais foram contemplados”.
Apesar disso, a realidade dos estados demonstra que os parâmetros constitucionais frequentemente são desvirtuados por negociações políticas e interesses pessoais, configurando uma grave violação ao princípio da moralidade administrativa. A persistência desse quadro compromete a função essencial dos tribunais de contas: fiscalizar a legalidade, legitimidade e economicidade da atuação estatal.
Ruy Barbosa e a missão institucional dos TCs
Talvez Ruy Barbosa não tenha imaginado que a instituição que ajudou a conceber há mais de um século viesse a ocupar as manchetes dos jornais e os debates populares. Na proposta de criação do Tribunal de Contas, ele eternizou sua motivação:
“É, entre nós, o sistema de contabilidade orçamentária defeituoso no seu mecanismo e fraco na sua execução. […] Com a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil. […] Convém levantar entre o poder que autoriza periodicamente a despesa e o poder que quotidianamente a executa um mediador independente […] que seja não só o vigia como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetuação das infrações orçamentárias por um veto oportuno aos atos do Executivo […].”
Que não façamos de Ruy Barbosa um profeta. Para que os Tribunais de Contas não se convertam em instituições de “ornato aparatoso e inútil”, é hora de recolocar na agenda pública a reforma de sua composição
Considerações finais
O Estado brasileiro atravessa um momento de reconstrução institucional, em que a moralização da ocupação dos altos cargos da administração pública é imperativo inadiável. Os Tribunais de Contas, pela centralidade que ocupam na fiscalização da gestão financeira do Estado, não podem ser poupados dessa depuração.
A exigência de qualificação técnica, reputação ilibada e compromisso público não pode ser flexibilizada em nome de supostos arranjos políticos. É preciso fiscalizar os fiscais. Somente mediante uma composição legítima, técnica e transparente, os tribunais de contas poderão desempenhar, de forma efetiva, o papel estratégico que a Constituição lhes atribuiu no projeto de um Estado democrático e republicano.
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Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível aqui.
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Disponível aqui.
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Lei Complementar nº 63, de 1º de agosto de 1990. Disponível aqui.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 653. Disponível aqui.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 167.137/TO, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 25 nov. 1994. Disponível aqui.
TRANSPARÊNCIA BRASIL. Tribunais de Contas: quem fiscaliza os fiscais? São Paulo, 2016. Disponível aqui.
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