O poeta-processualista Mauro Cappelletti e seus iguais na Itália e no Brasil
16 de junho de 2025, 6h34
Há uma longa tradição relacional entre direito e poesia, melhor dizendo, entre os juristas e os poetas (e vice-versa). Aprofunda-se o tema na recente tese doutoral defendida por Maria Teresa Sansa no departamento de ciência jurídica da Universidade de Salerno: “Poesia e Diritto. Il Diritto Nei Poeti e Nei Giuristi di Roma Antica alla Luce del Pensiero di Federico Maria D’Ippolito“.

O italiano Mauro Cappelletti
A referida tese começa reproduzindo a conhecida frase do escritor francês Jean Giraudoux: “Não há melhor maneira de exercitar a imaginação do que estudar o direito. Nenhum poeta interpretará a natureza tão livremente quanto um advogado interpreta a verdade”, fornecendo, ainda, especial destaque ao antigo e importante texto de Emílio Costa, “Il diritto nei poeti di Roma, Prolusione” (“O Direito nos Poetas de Roma, Discurso”), publicado em Bolonha, em 1898, sobre quem Maria Teresa Sansa observou:
“[sobre] a estreita ligação entre poesia e direito nos poetas de Roma e vice-versa, é possível também argumentar que os antigos “sabiam que podia haver poesia na elaboração de leis” e que os poetas “foram também os primeiros legisladores”. Analisada sob este ponto de vista, a fórmula Direito e Literatura sai muito enriquecida graças aos estudos de Emílio Costa e seguir seus passos representa uma válida contribuição a nível metodológico e científico para uma correta avaliação daquelas fontes não técnicas que os poetas de Roma oferecem.”
A tradição italiana é vasta, e não caberia seu aprofundamento num simples artigo como este, mas não poderíamos deixar de mencionar a grandiosa figura de Piero Calamandrei e sua face de literato, citando especialmente seu livro de memórias “Inventario della casa di campagna”, escrito entre 1939 e 1941, no qual recorda sua juventude poética, ressaltada posteriormente por Giorgio Luti, em seu texto de resgate literário “Piero Calamandrei Letterato”, quando ressalta: “na vida de Piero Calamandrei é praticamente impossível traçar uma linha de demarcação clara sobre a atividade de jurista e a de literato”. Era também um poeta. (“Piero Calamandrei: Ventidue saggi su un grande maestro”, Org. Paolo Barile, Milano: Giuffrè, 1990).
A seu turno, outra importante investigação jurídico-literária sobre o tema foi conduzida por Peter Häberle, produzindo o fundamental texto “Das Grundgesetz der Literaten. Der Verfassungstaat im (Zerr?) Spiegel der Schönen Literatur” (1983), no qual Häberle trabalha a relação entre os poetas, contadores de histórias, intelectuais alemães e a Lei Fundamental de 1949, sugestiva de proximidades fecundas, mas pouco exploradas.
Poetas-juristas no Brasil
No Brasil, a seu turno, poetas-juristas (ou juristas-poetas), como Lúcio de Mendonça, fizeram a república, idealizaram — e fundaram — academias de letras e exerceram a magistratura no Supremo Tribunal Federal, inclusive enquanto julgava casos perante a Corte Suprema e, ao mesmo tempo, criticava figuras públicas escrevendo na imprensa atrás de um nome de pluma, desde seu pseudônimo “Juvenal Gavarni”, escandalizando a sociedade da época.
Aliás, o pseudônimo já denunciava a mistura refinada de um tempo em dois planos, com isso projetando a sombra do poeta satírico romano Juvenal (Decimus Junius Juvenalis), miscigenado com a memória de Gavarni, nome de origem mais recente, utilizado como pseudônimo pelo ilustrador Sulpice Guillaume Chevalier (Paul Gavarni), que deram origem a um livro póstumo (1939), delicioso e peculiar que o falecido ministro Lúcio de Mendonça nos legou: “Caricaturas instantâneas”.

Também podemos citar, mais recentemente, o caso do professor e ministro-poeta Carlos Ayres Britto, que possui diversos livros de poesia, assim como muitos advogados, como José Rossini Corrêa, ou membros aposentados do Ministério Público, como Carlos Nejar ou Lenio Streck, entre vários outros clássicos ou contemporâneos, sem esquecermos o inventário realizado em “Juristas na Academia Brasileira de Letras”, livro de Fabio Sousa Coutinho, que também aborda o tema.
Mauro Cappelletti
Dentro da referida tradição, cuidemos de Mauro Cappelletti (1927-2004), processualista italiano de penetrante acolhida no Brasil, com muitos de seus artigos e livros traduzidos por aqui, dentre eles “Processo, Ideologia e Sociedade” (volumes 1 e 2: o primeiro traduzido por Elicio Sobrinho, o segundo por Hermes Zaneti Jr.), “Juízes Irresponsáveis” e “Juízes Legisladores” (ambos traduzidos por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira), “O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado” (Trad. Aroldo Plinio Gonçalves), “O Processo Civil do Direito Comparado” (Trad. Hiltomar Martins Oliveira), “Acesso à Justiça”, este último em parceria com Bryant Garth e traduzido pela ministra Ellen Gracie.
É preciso acrescentar nesta lista aquele que, provavelmente, seja seu livro menos conhecido (ou difundido) entre nós: “Centelhas — poesias”, traduzido por Alexei Bueno a partir do original “Sparks”, publicado pela editora Nova Fronteira em 1994. O primeiro elemento que chama atenção é a capa do livro, com a imagem “A vingança de Vulcano”, pintura de 1528, de Girolamo Francesco Maria Mazzola, mais conhecido como Parmigianino.
Na imagem, evoca-se o mito popular em que Vulcano, (cujo equivalente na mitologia grega era Hefesto, deus da tecnologia, dos ferreiros, artesãos, escultores, metais, fogo, dos vulcões e do lume). Segundo a mitologia, ele planeja uma vingança contra sua mãe (Juno) por tê-lo exilado em razão de sua aparência grotesca. Vulcano lhe dá de presente um artefato enganoso: um trono de ouro, quando Juno fica emocionada e senta-se na cadeira, sendo por ela aprisionada. Os deuses, vendo a decepção de Vulcano, imploram para que ele liberte Juno. A imagem evoca metáfora que preside sonhos e tormentos, tanto de poetas, quanto de juristas.
Ultrapassando a capa do livro, outro elemento de destaque é a dedicatória feita aos mais próximos que Cappelletti tinha no Brasil: “Aos meus amigos Sérgio Bermudes e José Carlos Barbosa Moreira”. A este último, aliás, coube a elaboração do sensível prefácio, que principia por desfazer a possível surpresa: “Um livro de poemas de Mauro Cappelletti: surpresa?”, e a pergunta recebe a resposta direta e objetiva: “A linguagem dos juristas é tida e havida em geral como linguagem burocrática, insípida, descolorida: exatamente o contrário da linguagem poética”.
Antes poeta, depois jurista
Aproveitando para dizer sobre Mauro Cappelletti, em seus aportes de jurista, processualista e literato, complementa mais adiante, dizendo que o poeta precedeu o jurista, pois sua poesia contida no livro remontava a época de sua extrema juventude, “o que talvez explique o fato de que sua linguagem jurídica não é burocrática, nem insípida, nem descolorida”, eis que o processualista-poeta também era poeta-processualista é “alguém que, antes de abrir os códigos, já tinha impressas na alma outras marcas — já havia afinado o diapasão interior pelo som de fontes frescas, de sinos longínquos e de suspiros amorosos, incorporando à palheta espiritual todos os entretons da natureza e das visões oníricas, aprendido que a riqueza da realidade supera sempre a rigidez dos conceitos”.
O livro é composto de quatro partes, iniciando-se com a abertura do isolado poema abrigado sob o título original “Sparks”, escrito em 1986, seguido pela parte “Outonal”, composta de 21 poemas, sucedido pela parte denominada “Reencontros”, que por sua vez abriga 56 poemas, finalizando-se, pois, com a última parte intitulada “Commiato“, com o poema isolado “A coisa maior”,
Esta última seção (Commiato) significa parte final de um texto, ou parte final da tradição das “canzone petrarchesca”, trecho absolutamente significativo sobre a estilística e a simbologia invocada, pois também era conhecido como “Rime Sparse” (Rimas Dispersas), embora originalmente intitulado “Rerum vulgarium fragmenta” (Fragmentos de coisas comuns), ou seja, refere-se a coleção de poemas escritos em língua italiana por Francisco Petrarca, indicativo da influência poética que remonta ao início do renascimento italiano, bem como refere a um dos primeiros humanistas.
O mentor: Piero Calamandrei
Precisa ser lido como jurista e como poeta. Aqui, quem sabe, exista certa ligação mais estreita entre Mauro Cappelletti e seu professor Piero Calamandrei. Ambos possuíam alma de jurista e coração de poeta. O último, como dito, possuía uma grande paixão pela literatura, ficando marcado também pelos textos que escreveu sobre Benvenuto Cellini (“Un contratto di edizione di Benvenuto Cellini”, Foro italiano, 1930; e “Scritti e inediti celliniani”, Florença, La Nuova Itália, 1971).
Aliás, o primeiro, ao escrever sobre seu maestro, deixou claro que ele, “com rara exceção, quase sempre se encontrava mais como um homem de letras ou como um homem erudito do que como um jurista” (“La ‘politica del diritto’ di Calamandrei: Coerenza e Atualità di un Magisterio”). Talvez também falasse de si mesmo, como num espelho da realidade: Cappemandrei — (Calamelletti).
Esta brevíssima homenagem, por outro lado, ressalta a importância da poesia, em particular, e da literatura, em geral, para o direito, quando menos para abrir e adensar a sensibilidade que anima os juristas, artefato também conhecido por alma. Capelletti e Calamandrei seriam, portanto, raros espécimes que conduziriam pelas duas vias: poetas-processualistas e processualistas-poetas, não necessariamente nesta ordem, mas sem dúvida encantando e tocando pelas letras, através da força poderosa da linguagem.
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