Direito Eleitoral

Ficha Limpa: 15 anos depois, uma lei entre a moral e a distorção

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16 de junho de 2025, 8h00

Em um cenário jurídico e político cada vez mais complexo, a Lei Complementar nº 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa (LFL), completa 15 anos de existência. Criada com o nobre propósito de aprimorar a moralidade na política e combater a corrupção, a LFL, ao longo de sua trajetória, tem gerado debates acalorados e levantado questionamentos sobre seus reais impactos e, mais importante, suas distorções. Este artigo tem origem em uma instigante provocação do jurista Marcelo Peregrino, autor do artigo “Quinze anos da Lei da Ficha Limpa e nem sinal do omelete” publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico [1].

A Lei da Ficha Limpa, essencialmente, reflete uma “moralidade patológica-legislativa” que, sob o pretexto de garantir a “autenticidade do voto popular”, submete o eleitor a uma espécie de curatela deturpada. A ideia de que o Estado ou o legislador devem impor filtros morais para o universo dos candidatos, decidindo quem é “apto” ou “puro” para concorrer, é altamente controversa. Como bem aponta Marcelo Peregrino em seu artigo, essa concepção é elitista, pois pressupõe que o povo é incapaz de fazer suas próprias escolhas e necessita de proteção. A democracia, por sua natureza, é, por excelência, o regime da autodeterminação popular, e não dos candidatos “cândidos” ou previamente selecionados por critérios morais estabelecidos por terceiros — viva, dinâmica, imperfeita, porém nossa.

Essa suposta proteção ao eleitor, que se manifesta na restrição absoluta do exercício da soberania popular, ignora que a definição e a melhoria da qualidade dos eleitos são tarefas precípuas do próprio eleitorado. Ao invés de fortalecer a capacidade de discernimento e a participação consciente do cidadão, a LFL, ao afastar candidatos por condutas passadas muitas vezes desconectadas da administração pública ou da normalidade do pleito, acaba por infantilizar o processo democrático. O resultado é uma grave violação do direito de votar e de escolha dos cidadãos, tolhidos de fazer valer suas opções, por mais que estas possam parecer “piores” a quem quer que seja.

Historicamente, a Lei da Ficha Limpa foi concebida sob o auspicioso manto do combate à corrupção e moralidade pública. No entanto, o Direito Eleitoral, essencialmente, não é e não deveria ser o principal instrumento para essa finalidade. Sua função primordial é possibilitar a transmissão do poder e a preservação dos direitos políticos, garantindo eleições livres e justas. A obsessão em usar a legislação eleitoral para “limpar” o cenário político acabou por deturpar os comandos constitucionais da moralidade administrativa, trazendo catastróficas consequências em outras searas jurídicas, ao exemplo da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) que antes da sua reforma em 2021 impunha erroneamente ao gestor incompetente a pecha de ímprobo e até criminoso, em uma clara confusão entre ineficiência e desonestidade.

Essa abordagem punitivista e moralista levou à consolidação de um perigoso conceito: o “direito do inimigo”. A ideia de que o homem político é inerentemente perigoso e precisa ser contido por filtros cada vez mais rigorosos, muitas vezes à custa de direitos e garantias fundamentais, começou no campo eleitoral e se expandiu para outras áreas do direito. A criminalização da política, sob o pretexto de combater a corrupção e, mais recentemente, a desinformação, tem transformado o processo eleitoral em um campo de batalha judicial, onde a presunção de inocência é relativizada e a liberdade de expressão é “regulada” por legislações infraconstitucionais e até resoluções administrativas.

A relativização da presunção de inocência é um dos exemplos mais gritantes dessa expansão. O que começou como uma medida para afastar candidatos com condenações de segundo grau antes de transitadas em julgado na esfera eleitoral, rapidamente migrou para a seara criminal e, hoje, ameaça a livre manifestação de pensamento. Esse processo de mitigação dos direitos políticos – menos propaganda, mais inelegibilidades, menos meios de financiamento – culmina em um cenário onde a fundamentalidade dos direitos políticos e a própria função da Justiça Eleitoral perdem seu significado, em detrimento de “lutas” que deveriam ser travadas em outras esferas.

Resultados da lei

Apesar de toda a retórica em torno de sua necessidade e eficácia, os resultados práticos da Lei da Ficha Limpa são, no mínimo, questionáveis. Dados da Transparência Internacional revelam que o Brasil mantém o pior patamar da série histórica no índice de percepção da corrupção, com 34 pontos e a 107ª posição entre 180 países em 2024 [2]. Isso sugere que a LFL, por si só, não tem sido a panaceia para os males da corrupção, como muitos esperavam. Pelo contrário, a lei tem gerado um número expressivo de candidatos “inaptos” – 23.864 nas eleições de 2020, com a Ficha Limpa sendo responsável por 2.354 indeferimentos de candidaturas. Em 2018, 168 candidatos a cargos majoritários foram afastados do pleito. Esses números superam, inclusive, as cassações de deputados durante toda a ditadura militar, um dado alarmante que deveria provocar uma reflexão profunda sobre a proporcionalidade e a real necessidade de tais restrições.

Paralelamente, observa-se uma crescente exorbitância das atribuições do Poder Judiciário. Acuado, o Poder Legislativo, muitas vezes, cede à pressão de não se opor ao “combate à corrupção”, enquanto o “terceiro turno” judicial molda grande parte da soberania popular em acórdãos dos tribunais. O Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal têm assumido um papel cada vez mais ativo no jogo político-partidário, armando-se para o combate à corrupção e outras pautas. Essa politização do Judiciário e a judicialização do fenômeno político rompem a autonomia dos subsistemas do Direito e da Política, um fenômeno que tem sido a tônica na América Latina e que, no Brasil, transforma a Lei da Ficha Limpa em uma “vaca sagrada” que muge contra a soberania popular e influencia a produção normativa e a jurisprudência de forma retrocessiva.

Diante do exposto, torna-se inegável a urgente necessidade de o Congresso Nacional promover uma revisão profunda na Lei da Ficha Limpa, a exemplo do que feito com a LIA e o Juízo de Garantias. A LFL, que nasceu com a promessa de purificar o cenário político, acabou por gerar distorções significativas, mitigando direitos políticos fundamentais e contribuindo para a judicialização excessiva da política. A “quebradeira” legislativa, parida com pressa para “salvar a pátria”, como bem descreve Peregrino, resultou em um diploma legal que, em vez de fortalecer a democracia, a fragiliza ao afastar um número alarmante de candidatos e ao infantilizar o eleitorado — viva, dinâmica, imperfeita, porém nossa.

É imperativo que o Poder Legislativo, guardião da soberania popular, retome as rédeas desse debate. A revisão da LFL não significa um retrocesso no combate à corrupção ou à moralidade pública, mas sim um ajuste necessário para que a lei cumpra seu papel sem ferir princípios constitucionais e sem transformar o Direito Eleitoral em um instrumento de perseguição política. É preciso sanar os abusos que, sob o manto do combate à corrupção, deturparam a moralidade administrativa e a presunção de inocência. A LFL, em sua forma atual, representa um obstáculo à plena expressão da vontade popular e à construção de uma democracia mais madura e resiliente — viva, dinâmica, imperfeita, porém nossa.

O novo Código Eleitoral, que já nasce velho, como aponta o autor do artigo original, corre o risco de seguir o mesmo caminho, se não houver uma reflexão crítica sobre os erros do passado. A lição dos 15 anos da Ficha Limpa é clara: urgências legislativas raramente trazem boas novidades quando desacompanhadas de um debate aprofundado e do respeito aos pilares do Estado Democrático de Direito. O momento exige coragem do Congresso para corrigir as distorções e garantir que o direito eleitoral sirva, de fato, à transmissão do poder e à preservação dos direitos políticos, e não à criação de filtros morais que cerceiam a liberdade de escolha do eleitor.

Os 15 anos da Lei da Ficha Limpa são um marco que exige uma reflexão crítica e urgente. O que se observa é que, a despeito de suas intenções originais, a LFL se tornou um exemplo de como a “moralidade patológica-legislativa” pode, inadvertidamente, minar os pilares da democracia — viva, dinâmica, imperfeita, porém nossa. A deturpação da moralidade administrativa, a expansão do “direito do inimigo” para diversas searas e a relativização de direitos e garantias fundamentais são consequências diretas de uma legislação que buscou tutelar o eleitor e combater a corrupção de forma excessiva e, em muitos aspectos, ineficaz.

É fundamental que o Congresso Nacional assuma seu papel e promova a revisão da Lei da Ficha Limpa. Essa revisão não é um ato de complacência com a corrupção, mas sim um imperativo democrático para restaurar a plenitude dos direitos políticos, a soberania popular e a racionalidade no sistema eleitoral. Ainda bem que assim como haviam juízes em Berlim, por cá, em terras tupiniquins, temos vozes coerentes como a de Pelegrino. A capacidade de questionar, debater e propor soluções para as distorções legais é o que fortalece o Estado Democrático de Direito e garante que as leis sirvam, de fato, ao interesse público e à justiça.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2025-jun-09/a-vaca-o-bebado-e-os-amantes-15-anos-da-ficha-limpa-e-nem-sinal-do-omelete/

[2] https://www.transparency.org/en/cpi/2024

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