Decisões do STF solucionam conflitos, mas acordos solucionam interesses, diz advogado
16 de junho de 2025, 10h51
Na jurisdição constitucional, a forma clássica de atuação é a solução do conflito. Mas há uma outra maneira de agir do Supremo Tribunal Federal que “soluciona o interesse”, ou seja, “vai na raiz do problema”: a construção de acordos.

É o que expõe o advogado Marcus Vinicius Vita Ferreira, sócio do escritório Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados e autor do recém-lançado livro O Acordo da Jurisdição Constitucional. Na obra, ele defende os acordos costurados pelo STF em ações de controle concentrado, nas quais não há partes propriamente ditas.
Ferreira diz que tais acordos devem ser aplicados em causas “indecidíveis”, de enorme “complexidade e inovação”, em os dois lados “têm razão”. São questões altamente técnicas e especializadas, em que os ministros não têm “um parâmetro constitucional de referência”.
Assim, qualquer decisão no modelo clássico faria com que o direito de uns fosse preterido em favor de outros. Ou seja, “não haveria uma decisão correta, qualquer que fosse ela”.
Os acordos, na visão do advogado, representam uma “abertura cognitiva” do tribunal para “uma nova forma de solução de interesses” e são uma ferramenta para que “causas complexas, multifacetadas, com múltiplos interesses legítimos, possam ser resolvidas de maneira mais equânime e isonômica para todos os envolvidos”.
Nesta entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Ferreira afirma que os acordos blindam o Supremo de reações contra decisões que desagradam determinados grupos.
O autor do livro ainda aponta que, embora as ações em questão não tenham partes, os temas julgados atingem segmentos sociais e políticos. Ou seja, há “fatos sociais ou constitucionais subjacentes” a elas, que legitimam a construção dos acordos.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Quais as vantagens da atuação dos ministros do STF em prol de soluções consensuais em questões mais complexas e abrangentes?
Marcus Vinicius Vita Ferreira — As vantagens são, sobretudo, diante de causas, digamos, “indecidíveis”, porque os lados possuem, por suas respectivas óticas, razão. Qualquer decisão que seja no modelo clássico, de cima para baixo, vai acabar gerando reação — e uma reação legítima, porque uma determinada parte que efetivamente tinha direito foi preterida em favor de uma outra.
Não é dado ao juiz da Suprema Corte deixar de decidir. Ele necessariamente vai ter que tomar uma determinada posição. O acordo vem no sentido de evitar que isso ocorra, abrindo cognitivamente o tribunal para uma nova forma de solução de interesses. A forma clássica é a solução do conflito. O acordo soluciona o interesse.
Por exemplo: acabou de ser julgada a ADPF 165, dos planos econômicos. De um lado havia, claro, os poupadores, que diziam que tinham sofrido perdas financeiras pela não reposição integral da inflação dos múltiplos planos econômicos. De outro lado, havia os bancos, que apontavam um risco sistêmico para o sistema financeiro, que poderia mesmo abalar a higidez do sistema. Ou seja, dois direitos, por óticas opostas, mas absolutamente defensáveis.
Foi-se para um acordo para equalizar os interesses. Os bancos arbitraram junto com as entidades do consumidor um determinado valor que acabou redundando hoje em 364 mil acordos e mais de R$ 5 bilhões pagos.
O ministro Cristiano Zanin colocou no voto dele a importância do acordo para a solução de um litígio tão complexo como esse, para o qual não haveria uma decisão correta, qualquer que fosse ela. O voto é uma ode ao acordo. Ele faz um discurso da importância do acordo, fala em sistemas multiportas e diz que cabe, sim, ao STF buscar os métodos autocompositivos. A Suprema Corte não pode se fechar a esse tipo de solução.
Outro caso, esse do ministro Gilmar Mendes: uma disputa de terra indígena no Mato Grosso do Sul, a aldeia Ñande Ru Marangatu. Havia conflito fundiário entre os proprietários de terra e os indígenas. Conflitos terríveis, até mesmo policiais. Foi-se para um acordo com a Funai, com a União Federal. Arbitrou-se um valor de indenização com o qual os proprietários de terra se deram por satisfeitos. A União assim o fez, pagou. E pronto. Manteve-se o território indígena, resolvendo o interesse, ou seja, pagando ao proprietário rural aquilo que ele achava que a sua terra valia.
O acordo, nessa perspectiva, é mais uma ferramenta para o Supremo, para que causas complexas, multifacetadas, com múltiplos interesses legítimos, possam ser resolvidas de maneira mais equânime e isonômica para todos os envolvidos.
ConJur — Em quais tipos de casos o STF pode atuar dessa forma?
Marcus Vinicius Vita Ferreira — Não tem uma definição. Isso parte de uma análise caso a caso. E também depende muito do ministro: se o ministro está aberto a esse tipo de solução ou se é um ministro que entende que a jurisdição clássica resolve o problema — o que também há que se respeitar.
Outro exemplo, o mais eloquente de todos, é o do marco temporal das terras indígenas. O Supremo derrubou essa limitação, dizendo que não haveria marco temporal (que seria a promulgação da Carta de 5 de outubro de 1988) e que a terra indígena é imemorial, então não se poderia colocar uma data. Isso gerou uma reação — um efeito backlash, como se diz no Direito norte-americano. O Congresso Nacional editou uma lei colocando o marco temporal de 5 de outubro de 1988, o que gerou uma reação óbvia: ações propostas no Supremo.
O ministro Gilmar Mendes também chamou para um acordo, ao identificar que não havia solução e que a decisão tomada pelo STF tinha gerado uma reação muito ruim no poder Legislativo e também no mundo dos fatos (mundo empírico), porque proprietários que já estavam ali há cinco gerações nas suas respectivas glebas acabaram por perdê-las, tendo em vista essa derrubada do marco temporal. É um acordo que ainda não foi concluído, imagino que tenha grande complexidade. Mas está se buscando equalizar os interesses.
ConJur — O STF está sujeito a críticas por esse tipo de atuação? Há algum prejuízo ou risco?
Marcus Vinicius Vita Ferreira — Pelo contrário, o acordo evita as críticas à Suprema Corte, exatamente por esse prisma. Como ela está equalizando todos os interesses em disputa, não há como criticar o acordo, porque resolve os interesses, e não o conflito. Vai na raiz do problema.
No processo em geral, não raras as vezes, uma determinada parte vence e a outra fica vencida, mas o ódio continua ali. Na jurisdição constitucional há múltiplos interesses sociais, ou mesmo políticos ou religiosos. O acordo blinda o Supremo de uma decisão que vai desagradar determinado grupo.
Não que o STF esteja indene a esse tipo de crítica, porque é típico da função dele, que é contramajoritária. Ele necessariamente vai decidir contra alguém, ou contra a maioria ou contra determinado grupo. Mas o acordo, a depender da complexidade do tema, vem para até mesmo salvaguardar o Supremo e promover o que chamo de abertura cognitiva, no sentido de que não há só a jurisdição clássica. Há também a consensualidade, que pode ser empregada na jurisdição constitucional.
O acordo não colide em nada com a jurisdição constitucional clássica. Ele surge muito mais por uma demanda do mundo contemporâneo, que cada vez mais inova com questões que nunca puderam ser pensadas, sejam elas de inteligência artificial a biotecnologia e biossegurança. São discussões de tamanha expertise técnica que não é possível que o julgador, à luz de uma Constituição que foi editada em 1988, ainda que observe as diversas emendas, obtenha resposta na Carta Constitucional. Assim, ele vai ter que julgar com base em princípios. E há o risco de o princípio virar uma espécie de cobertor semântico a opiniões pessoais.
O acordo vem para auxiliar o Supremo em causas em que ele não consegue dar uma resposta efetiva devidamente amparada nos preceitos constitucionais. O acordo vem para blindar a Suprema Corte nesse sentido e dar a ela mais uma ferramenta. Ele vem muito mais para defender a Suprema Corte do que qualquer outra coisa.
ConJur — O que legitima a construção de acordos em ações de controle concentrado, nas quais não há partes propriamente ditas?
Marcus Vinicius Vita Ferreira — Elas não têm partes, mas elas têm fatos sociais ou constitucionais subjacentes a ela, sejam eles legislativos ou sociais puros. O que legitima é que, por mais que não tenha partes, será julgado um determinado tema que vai atingir um determinado segmento social ou segmento político na democracia multifacetada de múltiplos interesses.
Por mais que não haja partes, o Supremo foi instado a se manifestar em controle concentrado porque alguém se sentiu lesado e os legitimados do artigo 103 da Constituição optaram por levar isso ao STF de forma mais rotineira em ADPF. A ADPF discute um preceito fundamental, que é semanticamente aberto. Como definir preceito fundamental em uma palavra? Não há.
Com isso, o Supremo foi obrigado a decidir temas, e não necessariamente o famoso texto contra texto — ou seja, uma lei editada pelo Congresso Nacional contra o texto da Constituição. Ao enfrentar um tema, não necessariamente há um parâmetro constitucional automaticamente aplicável. E é nessa hora que entra o acordo.
ConJur — Quem é chamado para participar dos acordos?
Marcus Vinicius Vita Ferreira — Quem acionou o Supremo, os amici curiae (que falam pelos interessados), as respectivas entidades de classe, organizações não governamentais, partidos políticos etc. A depender do tema, participam os respectivos setores sociais ou políticos que têm interesse naquilo.
No caso dos planos econômicos, a Febraban falou por todos os bancos. De outro lado, havia as principais associações de consumidores do país, que tinham, portanto, legitimidade para falar por um sem número de consumidores.
ConJur — Esses acordos na jurisdição constitucional também são feitos em outros países?
Marcus Vinicius Vita Ferreira — Não necessariamente. Há notícias de acordos feitos sobretudo na Suprema Corte portuguesa e também na França, mas são sistemas bastante diversos do nosso, ainda que tenham um sistema de controle de constitucionalidade parecido.
ConJur — A atuação do STF nesse sentido se enquadra no conceito de processo estrutural?
Marcus Vinicius Vita Ferreira — Não. Ela vai em sentido oposto. No processo estrutural, o Supremo atua também como órgão executor. No caso clássico dos presídios, da situação carcerária, o ministro Alexandre de Moraes determinou providências estruturais na resolução do problema. Outro caso foi de meio ambiente, sobre os desmatamentos: o ministro Flávio Dino impôs certas providências aos entes administrativos.
O processo estrutural não se confunde com acordo. Ao contrário. Ele é mais uma ferramenta que visa dar poderes ao STF para resolver o que se chama de estado de coisas inconstitucional. Ele ocorre quando a inconstitucionalidade não é apenas de um diploma legal, mas sim de uma série de atos praticados desde o agente carcerário, por exemplo, até a administração carcerária e o secretário de Segurança, e por aí afora.
Ele pode até chegar em um acordo, mas são coisas distintas. O acordo substituiria o processo estrutural, ouso dizer, com mais eficácia, porque vai ter mais legitimidade por força de quem vai participar do acordo.
ConJur — É necessária alguma modificação na legislação para formalizar os procedimentos adotados na condução desses casos em que o STF busca construir acordos?
Marcus Vinicius Vita Ferreira — Seria interessantíssimo que, também na jurisdição constitucional, o acordo, em determinadas causas, fosse precedido de uma tentativa de conciliação. Mas isso demandaria uma alteração da própria Constituição e de um processo constitucional efetivo que nós não temos.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!