As fundações no direito alemão (parte 2)
16 de junho de 2025, 10h34
Desde a entrada em vigor do Código Civil alemão em 1900, o instituto das fundações permaneceu praticamente incólume. O BGB, em seu artigo 80 e seguintes, dispôs sobre as fundações propriamente ditas, realizando uma diferenciação minuciosa entre elas, o que, em linhas gerais, perdurou até a contemporaneidade.

Como dito na primeira parte deste artigo, as fundações (i) “não autônomas” (unselbständige Stiftungen), “dependentes” ou “fiduciárias” foram as mais disseminadas. Receberam esse nome por não configurarem uma pessoa jurídica autônoma, e sim serem formadas por transmissão fiduciária de direitos, [1] na qual uma pessoa jurídica principal destina dotação de patrimônio para a criação dessa nova fundação que se compromete a alocá-lo permanentemente na realização de um fim determinado.
As (ii) fundações com “patrimônio reunido”, “arrecadado” ou de “oblação” (Sammelvermögen) demandam contribuições de grande número de pessoas para um propósito temporário (a exemplo da construção de um monumento ou de um fundo para auxílio a vítimas de calamidade), cujo montante poderá ser gerido por um comitê ou por um único administrador. Eventualmente, haverá nomeação de curador para gestão e aplicação dos ativos coletados, quando aquelas pessoas nomeadas inicialmente estiverem indisponíveis ou não mais existirem (BGB, artigo 1.914). [2]
Mencionem-se, ainda, (iii) as “fundações familiares” (Familienstiftungen), criadas para servir especificamente a uma ou mais famílias. Essas fundações, a propósito, foram um dos objetos da “Lei para a Modernização do Direito das Fundações” (Gesetz zur Modernisierung des Stiftungsrechts), de 2022, que, além de alterar disposições específicas do BGB:
“[…] instaurou o regime da neutralidade de escopo, permitindo que essa pessoa jurídica persiga quaisquer fins, desde que não coloque em perigo o “bem comum” (Nicht-Gefährdung des Gemeinwohls). Por esse mecanismo, o fundador e os seus parentes tornam-se beneficiários dos ativos da fundação, evitando que se fragmentem com o passar das gerações ou que sejam desperdiçados por herdeiros inábeis.” [3]
Se o Código Civil suíço à época, em seu artigo 80, considerou a dotação patrimonial como uma condição do ato fundador, o BGB, por sua vez, optou pelo silêncio. A maior parte da doutrina entendeu que o surgimento de uma fundação não dependia da afetação de ativos, seja porque há situações em que os ativos recebidos por ela são desprovidos de valor, seja porque uma fundação é capaz de gerar seus próprios ativos. Como a fundação necessita de recursos patrimoniais para realizar seus fins, seria desejável, ao menos, que o fundador apontasse o modo de obtenção desses recursos.
O artigo 81 do BGB dispõe que a pertinente transação patrimonial inter vivos exige forma escrita, considerando-se válida também a formalização da declaração de vontade em testamento. Nesse contexto, mostraram-se irrelevantes a ocorrência de incapacidade ou morte do fundador antes de aprovada a fundação por ato do poder público.
Foi permitida, porém, a revogação da escritura pelo fundador antes do reconhecimento da personalidade da fundação pela administração pública; mas, se já houvesse o reconhecimento administrativo, somente a autoridade competente poderia revogar esse ato. Se o ato fundador decorresse de disposição por morte, testamento ou acordo de herança, seriam observadas as formas especiais dessas mesmas manifestações (artigo 83), para que, assim, a fundação pudesse ser constituída como legatária.
Questão bastante debatida era se a vontade de constituir fundação futura poderia constar de testamento ou doação (melhor dizendo, “atribuição gratuita prévia”), visto que, por depender a criação da fundação de um decreto do poder público, ela ainda não existia naquele tempo (BGB, artigo 1.923), havendo somente o elemento volitivo.
Com seus mais de 200 anos, o conhecido caso do Städel Museum (Städelsches Kunstinstitut und Städtische Galerie), situado em Frankfurt, mostrou-se exemplo dessa indagação: em 1815, o banqueiro e comerciante, Johann Friedrich Städel, por disposição testamentária, destinou sua fortuna — incluindo sua coleção de artes (com obras de artistas como Botticelli, Rembrandt, Monet e Picasso) e sua residência pessoal para servir de sede — à futura criação e manutenção daquela fundação privada que idealizou em vida.
Preteridos, seus parentes impugnaram a validade do testamento. O artigo 84 do BGB, todavia, já havia antevisto controvérsias dessa natureza, dispondo objetivamente que a fundação reconhecida após a morte do fundador teria direito às atribuições gratuitas por ele feitas, como se ela já existisse antes de sua morte.
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
[1] ADAMEK, Marcelo Vieira von; CONTI, André Nunes. Fundações privadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters, 2024, p. 28.
[2] V.: DÄUBLER, Wolfgang. BGB kompakt. Systematische Darstellung des Zivilrechts. 2. Aufl., München: DTV, 2003, S. 1330.
[3] POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. A evolução da autonomia privada sucessória e a contratualização da transmissão causa mortis. 2023. 337 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023, p. 54.
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