Licitações e Contratos

Vedação ao comportamento contraditório em licitações e contratos

Autor

  • é advogado sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia ex-assessor da Presidência da República especialista em Direito Público pelo IDP e em Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e autor de cinco livros incluindo o bilingue Licitação Pública Internacional no Brasil (jonaslima@jonaslima.com).

    Ver todos os posts

15 de junho de 2025, 12h19

Segundo o princípio da proibição de comportamento contraditório (venire contra factum proprium), a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com sua conduta anterior interpretada objetivamente (STJ — AgInt no AREsp n. 1.490.113/RS, relator Ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 17/3/2025, DJe de 25/3/2025).

É possível imaginar o quanto esse princípio do Direito Processual Civil se aplica, por analogia, às diversas situações do dia a dia de licitações e contratos.

Licitantes contraditórios

Caso 1

Não é raro encontrar licitante que formula impugnação administrativa questionando preço negativo ou desconto sobre receita tributária e contábil das companhias aéreas, como ocorre com agências de viagens que reclamam, com absoluta razão, dessa prática. Há várias e sólidas questões legais que impedem o preço negativo, o qual, quando existe, frequentemente oculta fraudes nos valores de passagens aéreas. Paradoxalmente, o mesmo licitante, logo após o indeferimento da impugnação administrativa, participa da licitação oferecendo preço negativo. Essa é uma conduta incompatível com o que a empresa alegou ou defendeu anteriormente.

Caso 2

Da mesma forma, não é raro licitante reclamar de algum item da planilha do concorrente ou de aspecto formal de sua documentação fiscal, mas, em seguida, tentar se defender de falha semelhante. Quando o primeiro é desclassificado, o segundo licitante pretende mudar o raciocínio ou sua argumentação para um rumo diferente. Isso se distancia da boa-fé objetiva, incidindo na vedação ao comportamento contraditório.

Agentes de contratação contraditórios

Caso 1

Em caso real, um agente público promove pregão exigindo Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) para determinada demanda de objeto que envolve engenharia, no lote um. O documento, regulado em normas específicas da área de engenharia, é relevante e foi causa de inabilitação de certo licitante no primeiro pregão. Entretanto, logo em seguida, no mesmo pregão, para o lote dois de objeto de mesma natureza, o mesmo agente de contratação flexibiliza a exigência e não mais requer o documento (ART). O detalhe é que nenhuma alteração de lei, norma regulamentar ou qualquer outra mudança ocorreu, caracterizando comportamento contraditório. Não se pode tratar duas situações idênticas de modo contraditório, a depender de quem seja o licitante.

Caso 2

Outro exemplo de vivência profissional envolve fiscal e gestor de contrato que autorizam empresa organizadora de infraestrutura de grande evento a aumentar quantidades de brigadistas, pessoal de limpeza e outros itens, entendendo que os quantitativos são flexíveis conforme o porte do evento. Isso tem bastante lógica e motivação coerente, pois eventos não podem ficar engessados em contrato ao ponto de não admitirem ajustes quando o público supera significativamente as expectativas. Contudo, não pode ocorrer — embora não seja difícil encontrar — que os gestores que autorizaram a alteração decidam posteriormente glosar valores na fatura para pagamento à empresa, alegando que as quantidades foram extrapoladas em relação ao quantitativo previsto em edital. Essa nova interpretação não pode ocorrer, sendo que as situações demandam outro tipo de solução, até para evitar enriquecimento sem causa para o ente da administração.

Questões constitucionais e legais a considerar

Spacca
No contexto mencionado, não se trata apenas de legalidade, isonomia e igualdade de tratamento entre licitantes, conforme disposto no artigo 37, caput e inciso XXI, da Constituição. A segurança jurídica, há anos resguardada na jurisprudência e prevista no caput do artigo 2º e no parágrafo único, inciso XIII (vedação à aplicação retroativa de nova interpretação de norma), ambos da Lei 9.784/99 (Processo Administrativo Federal), exige a chamada “proteção à confiança”.

Esse princípio foi reforçado no artigo 5º da Lei 14.133/21 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), aplicando-se de forma geral tanto a agentes públicos quanto a licitantes.

Existem ainda normas específicas a considerar, como o artigo 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que estabelece: “As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas” (incluído pela Lei 13.655, de 2018).

Como visto, o tema vai além da tão conhecida “vinculação ao edital”, porque aqui o que se tem em consideração é a proibição da mudança de comportamento, independentemente do que estabeleça o instrumento convocatório. Trata-se de questão de coerência e boa-fé que transcende as regras editalícias e contratuais.

Conclusões

É preciso evitar oscilações de interpretação de normas nas licitações e contratos conforme o licitante envolvido, aplicando maior ou menor rigor caso a caso. Igualmente, os licitantes precisam se policiar para não incorrerem em mudanças de posição que os deixem vulneráveis em razão de suas condutas anteriores na mesma licitação ou em outras licitações.

Todos os atores das áreas pública e privada precisam cooperar para que a boa-fé objetiva e a segurança jurídica, tão presentes nas normas e na jurisprudência, sejam sempre observadas. Assim, evita-se uma infinidade de litígios administrativos e judiciais desnecessários, que surgem de inesperadas mudanças de comportamento dos atores nos processos administrativos. É necessário elevar o nível de exigência ética e jurídica, como já ocorre na via judicial.

Autores

  • é advogado, sócio de Jonas Lima Sociedade de Advocacia, ex-assessor da Presidência da República, especialista em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e autor de cinco livros, incluindo "Licitação Pública Internacional no Brasil".

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!