Sobre A Niilista, da escritora russa Sofia Kovaliêvskaia
15 de junho de 2025, 8h00
A autora de A Niilista, Sofia Kovaliêvskaia (1850-1891), é uma figura encantadora. Estudou matemática (e notabilizou-se nessa área), foi da Academia de Ciências da Rússia, lecionou na Universidade de Estocolmo. Viveu dividida entre a matemática e a literatura, talvez do mesmo modo que Tchekhov viveu dividido entre a medicina e a literatura.
Representa a transição da imagem da mulher romântica do século 19 para mulher emancipada do século 20. Seu drama pessoal — de isolamento, genialidade e tensão entre vida privada e vocação intelectual — também é um indicativo da crise da intelectualidade russa de fins do século 19. Viveu de forma radical e desafiadora para os padrões de seu tempo. Casou-se por conveniência intelectual. Foi com o marido que conseguiu deixar a Rússia para estudar no estrangeiro. Os fins, cristalizados no estudo libertador, justificariam os meios, explicitados no casamento que possibilitou a aventura intelectual. Não pelo marido; pela situação. Talvez um caso simbólico de afeto pragmático.
No livro A Niilista, Sofia narra a vida de uma mulher nascida na nobreza e que viveu uma infância cercada de mimos, atenções, governantas. As irmãs foram educadas para o casamento. Havia certeza de que a propriedade e a prosperidade eram inquebrantáveis. A extinção da servidão em 1861 fragmentou essa certeza. A família se desintegrou economicamente, não mais podendo contar com o trabalho compulsório dos servos.
A personagem se aproximou de um vizinho, também nobre; era um progressista. Nada obstante a diferença de idade, apaixonou-se perdidamente. O vizinho foi preso por suas ideias vanguardistas. A personagem vai até São Petesburgo, ao momento em que a família se dissolve: o pai morre, a mãe internou-se num convento, as irmãs se casaram, a propriedade foi liquidada.

Há nesse romance muita informação da Rússia de fins do século 19. Há troicas (carruagens puxadas por três cavalos), como ocorre em todo romance russo que se preze. A condição da mulher é problematizada. As mulheres podiam se casar aos 13 anos, com permissão do pai. E só podiam viajar com a permissão do pai ou do marido.
O “niilista” é um personagem típico da cultura política russa da segunda metade do século 19. Sucede ao “homem supérfluo”, um intelectual desconectado da realidade, ainda que bem-intencionado e inspirado em ideias generosas. O homem supérfluo era geralmente da nobreza. Faltava-lhe engajamento e força para tarefas práticas.
O niilista, por sua vez, era um jovem de classe média, as vezes um pouco abastada. Os niilistas recusavam os valores tradicionais. Não aceitam qualquer autoridade ou qualquer forma de moralismo impositivo. Contestavam o Estado, a família e a igreja, ainda que alguns comungassem no cristianismo ortodoxo russo.
Os niilistas valorizavam a ciência e a ação prática. Eram pragmáticos, hostis ao idealismo e a uma concepção de arte meramente contemplativa. Repudiavam o formalismo. Muitas vezes iconoclastas (no sentido abstrato do termo), eram provocadores e radicais. Não temiam postura destrutiva, quando julgavam necessária.
Engajados politicamente, encarnavam um espírito revolucionário. Tinham uma concepção benigna de sujeito político, em oposição a uma concepção indiferente do “homem supérfluo”. As origens intelectuais dos revolucionários russos de 1917 (principalmente Lênin e Trotsky) estão contidas no ideário e nas ações dos niilistas. Eu sempre sustentei que a Revolução Russa de outubro de 1917 foi um movimento preponderantemente de intelectuais, e não de operários. O termo niilista se propagou inicialmente com o romance Pais e Filhos (1862), de Ivan Turguêniev, que introduziu a figura de Bazárov, o primeiro personagem literário abertamente niilista. Bazárov é cético, cientificista, pragmático e descrente de qualquer idealismo. Tudo deveria ser destruído para que algo novo pudesse surgir. O impacto desse personagem foi imenso. Turguêniev, embora não fosse ele próprio um niilista, registrou figura geracional que mesmerizou leitores e intelectuais. O niilismo se tornou uma atitude, uma estética e, para alguns, um projeto político de ruptura com o mundo velho.
A influência do niilismo ultrapassou o campo das ideias e chegou à ação direta. Alguns jovens niilistas se uniram em grupos revolucionários como a “Vontade do Povo”, responsável pelo assassinato do czar Alexandre II em 1881. O niilismo, assim, deixou de ser apenas um traço de personalidade literária e tornou-se uma força social disruptiva.
Dostoiévski respondeu a esse fenômeno com dureza. Para esse autor, o niilismo significava a negação da alma russa e da responsabilidade moral. Em Os Demônios (1872), apresentou um retrato impiedoso dos jovens revolucionários como fanáticos vazios, entregues à destruição pela destruição. Associou o niilismo ao caos, à perversidade, ao totalitarismo latente. Dostoiévski viu nesses personagens a perda da fé e da tradição.
É nesse contexto de efervescência intelectual, ruptura com tradições e redefinição do papel do indivíduo na sociedade russa que o romance A Niilista se insere. A protagonista encarna os traços centrais do niilismo russo: o desdém pelas convenções sociais, o ceticismo diante das instituições tradicionais e a valorização da ação concreta em nome de uma transformação radical.
Penso que A Niilista seja um romance que lido hoje propicie uma explicação sutil e anunciadora das revoluções russas de 1905 e 1917. É um convite para que tentemos compreender uma cultura política imperscrutável. A confusão entre autora e personagem, em muitos pontos, aponta para algumas chaves interpretativas para esse mistério cultural. A Niilista é um pouco de autoficção condensada em um relato histórico pessimista e ao mesmo tempo contemplativo. O desate do livro é surpreendente. Vale conferir.
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