Opinião

Sem contraditório, depoimento especial realmente pode ser um ato autoritário

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  • é juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Presidente do Foeji (Fórum Estadual das Juízas e dos Juízes da Infância e Juventude) de SP. Juiz integrante do Foninj (Fórum Nacional da Infância e da Juventude). Doutorando em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem) e graduado em Direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás) tendo realizado Programa de Intercâmbio Acadêmico Internacional (com bolsa) na Universidade de Coimbra Portugal. É Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera — Uniderp e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. Juiz colaborador da EPM (Escola Paulista da Magistratura). Membro do Fonajup (Fórum Nacional da Justiça Protetiva) e do IBDCRIA (Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente).

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15 de junho de 2025, 6h07

Como abordado aqui, o depoimento especial (DE) é uma prova judicial, que pressupõe adaptações procedimentais, a fim de assegurar que a oitiva de crianças e adolescentes no Poder Judiciário não seja uma fonte de violência institucional e revitimização. É uma metodologia adaptada que considera crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e não como meros objetos para extração de provas.

O fundamento jurídico para a adaptação procedimental está no artigo 8º, item 1, letra “a”, do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil, ratificado pelo Decreto nº 5.007, de 2004, que autoriza a adaptação de procedimentos para reconhecer as necessidades especiais de crianças e adolescentes, inclusive suas necessidades especiais como testemunhas.

É equivocado pensar que o depoimento especial é prova vocacionada à condenação. Ora, ao determinar a produção da prova, o magistrado não sabe, de antemão, qual será o relato da criança, que pode confirmar ou negar a ocorrência da violência. Assim, o depoimento especial deve ser valorado pela autoridade judiciária tanto para condenação quanto para absolvição do réu. Evidentemente, não se trata de prova com valor absoluto — é prova sujeita à apreciação judicial em cotejo com os demais elementos probatórios produzidos no processo. Inclusive, é sempre recomendável que o depoimento especial não seja a única prova produzida no processo penal (artigo 22 da Lei nº 13.431/2017).

Depoimento especial é uma prova que, como qualquer outra, não possui valor absoluto, devendo ser valorado pela autoridade judiciária à vista de todo o manancial probatório existente nos autos. É perfeitamente possível, na prática, que o juiz absolva um réu mesmo se a criança confirmar o suposto abuso no DE (por exemplo, porque a sua versão é contraditória e é infirmada por todas as demais testemunhas). Da mesma forma, o juiz pode condenar o réu mesmo se a criança negar o abuso no DE (p.ex. porque há provas que evidenciam a violência, como gravação audiovisual do fato).

Sendo prova, o depoimento especial só pode ser realizado se for garantido o contraditório e a ampla defesa (artigo 11, caput, parte final, da Lei nº 13.431/2017). Se for tomado sem observar tais garantias fundamentais do cidadão, o depoimento especial realmente deve ser considerado autoritário.

Nesta oportunidade, vou me debruçar sobre três exemplos de manifestação do contraditório no procedimento do depoimento especial.

Perguntas complementares, participação de assistentes e presença do acusado

1- O inciso IV do artigo 12 da Lei nº 13.431/2017 diz que, uma vez encerrada a livre narrativa da criança ou adolescente sobre a situação de violência, “o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco“. Ou seja, a lei prevê a possibilidade das partes elaborarem perguntas para o depoente infantojuvenil. A possibilidade de formular perguntas ao depoente torna democrático o depoimento especial. Se for cerceada, isto é, se a criança ou adolescente for ouvida sem que se permita às partes formular questionamentos a ela, o ato é autoritário e nulo. Nesse sentido, aliás, recentemente o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AREsp 2.603.472, declarou a nulidade da oitiva de dois adolescentes vítimas de estupro sem que fosse concedida às partes o direito de participar do ato e formular perguntas aos depoentes (aqui).

É claro que como todo direito, o contraditório não é absoluto. O direito das partes de formular perguntas ao depoente infantojuvenil não é ilimitado. Primeira conformação: como corolário da adaptação inerente ao procedimento da Lei nº 13.431/2017, o artigo 12, inciso V, autoriza que o entrevistador forense adapte as perguntas das partes à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente. Segunda restrição: as perguntas formuladas pelas partes são submetidas ao crivo do magistrado, a quem cabe indeferir os questionamentos irrelevantes, desnecessários, repetitivos, impertinentes, meramente protelatórios, vexatórios, humilhantes, ofensivos, revitimizantes e alheios aos fatos objeto de apuração.

Nesse sentido: artigo 400, §1º, do CPP; artigo 400-A do CPP (incluído pela Lei Mariana Ferrer); e ADPF 1.107, na qual o STF proibiu questionamentos sobre a vida sexual pregressa e o modo de vida da vítima (aqui). O juiz não só pode como deve, por exemplo, indeferir perguntas que visam devassar de modo desnecessário a privacidade da vítima (p.ex. se a vítima era ou não virgem) ou que buscam culpabilizá-la pela violência sofrida (p.ex. se a vítima sentiu prazer no ato sexual).

Spacca

2- O mesmo artigo 12, IV, da Lei nº 13.431/2017, supratranscrito, autoriza a participação de assistentes técnicos no procedimento do depoimento especial. Embora não se trate de prova pericial [1], mas sim de prova oral, o legislador autoriza que as partes indiquem profissionais de sua confiança para apoio técnico no momento da audiência. O assistente, quando habilitado nos autos, tem o direito de acompanhar a audiência. Entretanto, deve assistir à entrevista forense da sala de audiência, ou seja, juntamente com juiz, promotor de justiça e defensor/advogado, e não da sala de depoimento especial, onde estará apenas o entrevistador forense e o depoente infantojuvenil (e, excepcionalmente, pessoa de apoio).

O inciso IV do artigo 12 é claro: a intervenção do assistente técnico se limita a contribuir na formulação das perguntas complementares dirigidas à testemunha. Para tanto, o assistente técnico deve ser profissional previamente capacitado (artigo 27 do Decreto nº 9.603/2018 e artigo 14 da Resolução nº 299/2019 do CNJ). Nesse exato sentindo, é o que está previsto no item 4.33 do protocolo de depoimento especial nas causas de alienação parental (aqui), anexo à Recomendação CNJ nº 157/2024. A lei não prevê a possibilidade do assistente indicado pela parte oferecer laudo técnico ao final da oitiva. Afinal, o depoimento especial não é prova pericial e, por consequência, não comporta esse tipo de documento [2].

3- Sem dúvida, o ponto que mais desperta controvérsias sobre o contraditório no depoimento especial diz respeito à presença do acusado na sala de audiência. Vale dizer: o réu pode ficar na sala de audiência e assistir, em tempo real, o depoimento da criança ou adolescente? Para a resolução da querela entendemos fundamental o cotejo de dois dispositivos da Lei nº 13.431/2017:

Art. 9º. A criança ou o adolescente será resguardado de qualquer contato, ainda que visual, com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento.

Art. 12. § 3º. O profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado.

O artigo 9º resguarda a criança ou adolescente de qualquer tipo de contato com o suposto agressor (ou outras pessoas que possam constrangê-la, como familiares do réu), seja físico ou até mesmo visual. Vale dizer: a criança ou adolescente não pode ser submetida ao desprazer de se deparar com o réu na oportunidade em que presta o seu depoimento (algo que pode funcionar como um fator ansiogênico a desestabilizar a criança e, inclusive, comprometer a espontaneidade de seu depoimento).

Algumas consequências se extraem daí: é recomendado que o depoente infantojuvenil seja orientado a chegar ao fórum 1 hora ou 30 minutos antes do horário agendado para início do ato, bem como treinados os controladores de acesso do prédio do fórum (porteiros e seguranças) a encaminhar a criança ou adolescente diretamente para a equipe técnica, que pode já aguardá-la na portaria, tudo isto a evitar que haja um indesejável encontro entre depoente e suposto agressor; também se recomenda que haja entrada alternativa para a criança ou adolescente, diferente daquela utilizada pelo réu (p.ex., a criança é orientada a entrar pela porta dos fundos, utilizada geralmente apenas pelos funcionários, ao passo que o acusado entra pela entrada principal do fórum); é imprescindível que haja salas distintas para o acolhimento do depoente e de espera para o início da audiência, a fim de que não haja contato entre vítima e acusado antes do ato; e não se admite que o pequeno depoente seja posto à frente do acusado para confrontação de versões, restando vedada a acareação a que se referem os artigos 229 e 230 do CPP (Oliveira; Dias, 2023).

Como se vê, o artigo 9º nada diz sobre a presença ou não do réu na sala de audiência. É o artigo 12, §3º, que disciplina a matéria. É ele a chave para a solução do imbróglio. Por óbvio que o suposto agressor não poderá ficar na sala de depoimento especial, o que poderia ser uma grave violência contra a criança ou adolescente e violaria frontalmente o artigo 9º. Mas, pode ele acompanhar o ato da sala de audiência, juntamente com juiz, promotor e advogado/defensor? O artigo 12, §3º não proíbe que o acusado esteja na sala de audiência acompanhando o depoimento. O dispositivo não diz algo assim: “É proibida a presença do suposto autor ou acusado na sala de audiência”. Ou assim: “É vedado que o suposto autor ou acusado acompanhe a tomada do depoimento especial”. Nada disso.

Na verdade, o dispositivo diz, literalmente, que: nas hipóteses (e apenas nessas hipóteses) em que o entrevistador forense verificar que a presença, na sala de audiência, do réu pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de flagrante risco, ele deverá reportar tal fato à autoridade judiciária, presidente do ato; então, o magistrado poderá, com base nas informações do profissional capacitado, deliberar por afastar o réu da sala de audiência, inclusive devendo justificar tal providência no termo de audiência.

Ou seja: de acordo com o texto literal da lei, em regra, o réu poderá estar presente na sala de audiência; mas, excepcionalmente, quando o entrevistador entender que a sua presença na sala pode comprometer o depoimento ou impor risco ao pequeno depoente, o juiz poderá decidir por seu afastamento, caso em que ele será retirado da sala e não acompanhará o ato em tempo real. Para decidir pelo afastamento (ou não) do réu, entendemos recomendável que a criança ou adolescente seja consultada, o que pode ser feito na entrevista prévia. Se o entrevistador não solicitar ao magistrado (p.ex. porque a criança disse que não se importa de o acusado assistir a audiência) e se este não deliberar pelo afastamento do réu, ele poderá assistir ao depoimento da sala de audiência.

Se o réu estiver presente na sala de audiência a criança ou adolescente deve ser informada sobre isto. É seu direito saber quem são as pessoas que estão acompanhando o seu depoimento (artigo 5º, XI, da Lei nº 13.431/2017). Se o acusado não for afastado da sala de audiência (ou seja, se não se aplicar o artigo 12, §3º), a sua imagem não deve ser captada pelas câmeras, evitando-se que o depoente o veja, em atenção ao artigo 9º. Se a participação do réu ocorrer no meio virtual, é recomendável que seja bloqueada o seu vídeo durante o depoimento.

Posição contra legem

Este autor já se deparou, por mais de uma vez, com comentários de colegas magistrados com o seguinte teor: “eu nunca permito que o réu esteja na sala de audiência, porque entendo que a presença dele, sempre e em toda circunstância, é prejudicial para a criança vítima”. Sempre? Em 100% dos casos? Com base em qual evidência científica é presumido isso? Lembre-se que o depoimento especial é aplicável a violências de distintas naturezas (física, moral, patrimonial, etc.).

Com as devidas vênias, não vejo fundamento plausível nesse entendimento [3]. Trata-se de posição contra legem que ignora o texto expresso do artigo 12, §3º, que, como visto, não veda a presença do réu na audiência. Poderia fazê-lo, mas não o faz. E, não se olvide, a lei não contém palavras inúteis. É perfeitamente possível que, casuisticamente, à luz das circunstâncias de cada caso concreto, seja decidido o afastamento do réu, por aplicação do artigo 12, §3º, mas não de modo genérico, abstrato e sem fundamentação concreta. Não podemos esquecer que é corolário direto do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal o direito ao confronto, que impõe que o saber testemunhal incriminador passível de valoração judicial seja produzido na presença do acusado e implica no direito deste a presenciar a produção da prova e a possibilidade de contrariá-la (Malan; Mirza, 2020).

Cumpre reconhecer que, na prática, é crível imaginar que em muitos casos estarão presentes as hipóteses do artigo 12, §3º, principalmente nas situações de violência sexual. Logo, ter-se-ia uma situação curiosa na qual a situação prevista como exceção na lei (afastamento do réu), na verdade, se aplica à maioria dos casos.

Se o procedimento do depoimento especial é conduzido arbitrariamente pelo juiz, que cerceia o direito das partes de formular perguntas ao pequeno depoente, que nega imotivadamente a habilitação e participação de assistente técnico e/ou que impede a presença do acusado na sala de audiências sem nenhuma fundamentação concreta, então, nessas circunstâncias extremadas e indesejadas, realmente não há outra conclusão possível se não que, nesse cenário, o DE seria, realmente, um ato autoritário. Para não ser, é fundamental que o magistrado tenha sempre em mente que essa prova deve ser produzida à luz do contraditório (artigo 11, caput, da Lei nº 13.431/2017).

 


Referências

MALAN, Diogo; MIRZA, Flávio. Direito ao confronto e depoimento especial. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 171. ano 28. São Paulo: Ed. RT. 2020.

OLIVEIRA, Heitor Moreira de; DIAS, Paulo Cezar. Considerações sobre a impossibilidade jurídica da acareação de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Revista do CNMP, 11ª ed., 2023. Disponível aqui.

[1] No Tribunal de Justiça de São Paulo prevalece entendimento contrário, no sentido de que o depoimento especial é prova híbrida, tanto depoimento como avaliação pericial. É o que está previsto no Protocolo CIJ nº 00066030/11, disponível aqui.

[2] Nesse sentido, dispõe o item 4.34 do protocolo de depoimento especial em alienação parental: “a realização da audiência de depoimento especial não se confunde com prova técnica pericial, não sendo cabível, em nenhuma hipótese, a emissão de laudo, parecer, relatório ou qualquer outro tipo de documento técnico por parte do(a) profissional entrevistador(a)”.

[3] Cito o seguinte caso real ocorrido em minha atuação profissional como magistrado: a denúncia narrava que os atos sexuais teriam ocorrido quando a vítima tinha 13 anos e o acusado 18 anos. A audiência se realizou dois anos depois, quando tinham 15 e 20 anos, respectivamente. Vítima e réu estavam namorando ao tempo da audiência e, inclusive, a vítima foi ao fórum com o namorado. Indagada na entrevista prévia se preferia que o réu estivesse ausente, respondeu: “pelo contrário, só presto depoimento se ele estiver na sala assistindo”.

Autores

  • é juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Presidente do Foeji (Fórum Estadual das Juízas e dos Juízes da Infância e Juventude) de SP. Juiz integrante do Foninj (Fórum Nacional da Infância e da Juventude). Doutorando em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem) e graduado em Direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás), tendo realizado Programa de Intercâmbio Acadêmico Internacional (com bolsa) na Universidade de Coimbra, Portugal. É Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera — Uniderp e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. Juiz colaborador da EPM (Escola Paulista da Magistratura). Membro do Fonajup (Fórum Nacional da Justiça Protetiva) e do IBDCRIA (Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente).

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