Segunda leitura

Os inseguros caminhos do Direito Penal e do seu processo

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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15 de junho de 2025, 11h32

O Direito Penal sempre atraiu a atenção dos estudiosos por afetar a liberdade das pessoas. Forjado durante séculos, consagrava princípios estudados e discutidos nos seus mínimos detalhes. Obras de elevado nível científico discutiam os diversos aspectos da matéria, suscitando profundas discussões nos tribunais. Muitos foram os grandes doutrinadores, bastando citar Anibal Bruno, o mestre do Recife, com sua análise da parte geral do Código de 1940 [1], e Nelson Hungria, com o detido exame da parte especial [2].

O Processo Penal acompanhava o nível excelente do nosso Direito Penal. A tradição vinda dos estudos de Pimenta Bueno no Império [3] era mantida por doutrinadores da segunda metade do século passado. Edgar Magalhães Noronha, com seu Curso de Direito Processual Penal [4], dava o caminho certo aos que procuravam soluções para as dúvidas que a rotina forense suscitava.

A mudança pós-Constituição

Em 1988, a Constituição deu novos rumos ao Direito Penal e ao Processo Penal. E não poderia ser diferente. O país, a sociedade, eram outros. O Direito deveria acompanhar as transformações. E assim, com os mesmos códigos da primeira metade do século, as transformações tinham que ser feitas, sempre levando em conta os direitos e garantias individuais postos em 79 incisos, acrescidos por alíneas e parágrafos.

Vladimir Passos de Freitas

A Constituição de Portugal (1976) [5], bem mais restrita, optou por assegurar os direitos, liberdades e garantias em poucos artigos (v.g., 26º), e a da Argentina (1994) [6], em dispositivos dispersos no Capítulo Um, Declarações, Direitos e Garantias (v.g., artigo 14). Nos três países, por força de novas constituições democráticas, sobrevieram leis complementando-as e dando nova feição ao Direito Penal e ao Processo Penal. Por exemplo, aqui a Lei 8.069/1990, que dispôs sobre o ECA.

Ocorre que a adaptação aos novos tempos não foi sendo feita de uma forma progressiva, coerente, capitaneada pelo STF. Bem ao contrário, as alterações, principalmente após o ano 2000, foram entrando no mundo jurídico sem qualquer coerência no sistema, fruto de novas leis e de decisões judiciais.

A doutrina perdeu espaço, em que pese o esforço de alguns doutrinadores para manter a estabilidade, como fez Rogério Greco com o seu Código Penal Comentado [7]. Leonardo Correa registra que: “Para o advogado que escolheu a via da técnica, da linguagem bem construída, da leitura dos clássicos e da força racional das ideias, resta apenas o luto” [8].

A realidade em 2025

O sistema de Justiça Criminal neste momento apresenta contradições que levam a uma crescente insegurança pública e jurídica. Umas, mais perceptíveis, assustadoras. Outras, silenciosas, raramente lembradas. Impossível recordar de todas, porém algumas são de fácil lembrança. Vejamos:

a) Juiz federal de Araçatuba (SP) absolve o piloto e passageiro de uma aeronave com 400 tabletes de pasta base de cocaína, presos em dezembro de 2024 em um aeroporto da região, por “haver dúvidas sobre a existência de suspeitas prévias para a busca, além de escrever que não há como saber como foi feito o monitoramento e a descoberta dos planos de voo” [9]. A enorme quantidade de pasta de cocaína, o fato de o piloto, segundo a reportagem, ter confessado os fatos na polícia, de ter ficado quatro anos preso na Bahia, ter seu nome na lista de foragidos da Interpol, tudo isso não mereceu consideração. Toda decisão judicial passa uma lição à sociedade e, no caso, em especial aos PMs que efetuaram a prisão em terra. Como farão eles na próxima vez que um avião suspeito surja no horizonte? Pedirão ao acusado que esclareça nome, endereço e CPF de quem os contratou para transportar a droga? Correrão o risco de serem acusados de abuso de autoridade por ilegalidade da prisão? Ou rumarão em direção oposta?

b) Descontrole da criminalidade no Rio de Janeiro. Toda semana um grave caso a mais no Rio de Janeiro, sempre com vítimas. Desta feita a Polícia Civil, dia 10 passado, promoveu uma megaoperação no Complexo de Israel, a fim de cumprir mandados de prisão contra integrantes do Terceiro Comando Puro. Houve tiroteio, o centro do Rio ficou paralisado e duas pessoas saíram feridas [10]. O caso não é dos mais graves. Grave é a persistência do problema, ano após ano mortes, ônibus incendiados, barricadas na zona urbana etc. É razoável aceitar tal situação como de normalidade? Ou é o caso de reconhecer-se tais práticas como terrorismo. Capitula-se face à total impossibilidade de controle por parte do Estado? Deve ser reconhecida a perda de parte do território do município?

c) Lavagem de dinheiro e competência da Justiça Eleitoral. A jurisprudência do STF, a partir de 2018, passou a entender que os crimes conexos com os eleitorais, mesmo que da competência da Justiça Federal, deveriam ser processados e julgados pela Justiça Eleitoral [11]. A decisão não é sobre este ou aquele tipo penal, porém chamou a atenção a existência, à época, de graves casos de crimes de lavagem de dinheiro que passaram àquela Justiça. A matéria foi abordada em seus diversos aspectos pela equipe do Centro de Apoio das Promotorias Criminais do MP do PR [12]. O fato é que, a partir daí, processos por tal infração penal ou outras não tiveram desfecho. A razão é muito simples, juízes eleitorais são juízes de Direito, que servem por dois anos. Não são necessariamente especializados em matéria criminal e menos ainda em crimes federais. Pesquisa de jurisprudência realizada no site Jusbrasil, sob o título “Jurisprudência sobre Corrupção e Lavagem de Dinheiro”, com foco exclusivo nos TREs, revela a inexistência de julgamentos de mérito [13].

d) Jurisprudência do STJ. Seguidos acórdãos do STJ têm adotado linha excessivamente garantista. Em caso de busca e apreensão realizada pela Polícia Civil, a 5ª Turma da corte anulou as provas por falta de mandado impresso. Havia autorização judicial, mas não foi impressa. O acórdão não esclarece qual o crime, mas um site informa que se tratava de “suposta prática de tráfico de drogas e posse ilegal de arma de fogo” [14]. Não há menção no acórdão sobre o motivo da falta de impresso. Talvez tenha sido porque a urgência reclamasse ação imediata e não houvesse tempo para ir à delegacia imprimir. Ora, em tempos de citação por celular, de IA fazer ementas de acórdãos e a maioria das audiências ser online, exigir um papel cuja utilidade o voto justifica apenas como “essencial ao adequado cumprimento da diligência” é de um formalismo incompatível com a rapidez que se exige da ação policial. Detalhe: além de anular todas as provas, o acórdão ainda determinou expedição de ofício às Corregedorias da Polícia Civil e do MP de MG [15].

e) Crimes contra os aposentados do INSS. Apesar da gravidade de uma sucessão de crimes para os quais o “INSS não adota medida eficaz para acabar os descontos indevidos de R$ 1,55 bi por ano” [16], seguem as ações penais no rito comum das Varas Federais Criminais, sem que se tenha conhecimento de prisões preventivas. Prevê-se, dentro de alguns ou muitos anos, condenações transitadas em julgado que resultarão em inofensivas penas substitutivas. Os aposentados do INSS, a classe mais desfavorecida da sociedade após os moradores de rua, terão sofrido o prejuízo. E os autores, muitos deles ocupando importantes posições nos quadros da autarquia, terão passado anos desfrutando de excelente qualidade de vida.

Conclusão

A insegurança jurídica na área criminal, a insegurança pública nas médias e grandes cidades brasileiras e a contínua perda da crença na Justiça são autêntico risco à democracia. Não foi essa a lição que nos passaram os juristas que construíram o nosso sistema de Justiça Criminal.


[1] BRUNO, Anibal Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1966.

[2] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1945.

[3] PIMENTA BUENO, José Antonio. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Empreza Nacional do Diario, 1857.

[4] MAGALHÃES NORONHA, Edgar. Curso de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva,1964.

[5] PORTUGAL. Assembleia da República. Constituição da República Portuguesa. Disponível em: https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. Acesso em 3 jun. 2025.

[6] ARGENTINA. Constituição da Nação Argentina. Disponível em: https://ampf.org.br/wp-content/uploads/2023/08/Constituicao-da-Argentina-em-Portugues.pdf. Acesso em 3 jun. 2025.

[7] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Niterói: Impetus, 2019.

[8] CORREA, Leonardo. Cláudio Dantas. Réquiem de uma Profissão. Disponível em: https://claudiodantas.com.br/requiem-de-uma-profissao/. Acesso em 3 jun. 2025.

[9] G1. Justiça absolve piloto e copiloto que transportavam 400 kg de cocaína em avião após considerar abordagem irregular. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2025/06/05/justica-absolve-piloto-e-copiloto-que-transportavam-400-kg-de-cocaina-em-aviao-apos-considerar-abordagem-irregular.ghtml. Acesso em 14 jun. 2025.

[10] O Estado de São Paulo. Metrópole, jun. 2025, p. A16

[11] STF, Pet 6820 AgR-ED, Relator Ministro Edson Fachin, Relator para Acórdão Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, j. em 6/2/2018, DJe-058, de 26/3/2018; e STF, AgReg na Pet 6.986, Relator Ministro Edson Fachin, Relator para Acórdão Ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 10/4/2018, DJe-122, 20/6/2018.

[12] MPPR. Equipe do Centro de Apoio das Promotorias Criminais, do Júri e de Execuções Penais. Disponível em: https://site.mppr.mp.br/sites/hotsites/arquivos_restritos/files/migrados/File/1661_Consulta_501-2021_-_Crimes_eleitorais_e_conexos_e_Competencia_-_10-12-2021.pdf. Acesso em 4 jun. 2025.

[13] JUSBRASIL. Jurisprudência sobre Corrupção e Lavagem de Dinheiro. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=corrup%C3%A7%C3%A3o+e+lavagem+de+dinheiro. Acesso em 14 jun 2025.

[14] Central do Direito. STJ anula provas em operação policial por falta de mandado físico de busca e apreensão. Disponível em: https://centraldodireito.com.br/noticias/stj-anula-provas-em-operacao-policial-por-falta-de-mandado-fisico-de-busca-e-apreensao. Acesso em 4 jun. 2025.

[15] STJ, 5ª. Turma, HC nº º 965224 – MG. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=307775223&registro_numero=202404568547&peticao_numero=202401103429&publicacao_data=20250422&formato=PDF. Acesso em 15 jun. 2025.

[16] Consultor Jurídico. Rômulo Saraiva. INSS não adota medida eficaz para acabar os descontos indevidos de R$ 1,55 bi por ano. Revista eletrônica, 23 abr. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-abr-23/inss-nao-adota-medida-eficaz-para-acabar-os-descontos-indevidos-de-r-155-bi-por-ano/. Acesso em 4 jun. 2025.

Autores

  • é presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus (Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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