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Colapso da proporcionalidade nas multas da Cmed: sanções regulatórias descoladas da realidade sanitária

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  • é dvogado doutor em Direito Público (PUC-SP) MBA (Insper) mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie) especialista em Direito Administrativo (Cogeae) certificado em Contratos de Infraestrutura (FGV) autor de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (Thoth 2021).

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15 de junho de 2025, 8h00

O microssistema sancionador da Cmed (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), consolidado na Resolução nº 2/2018, apresenta uma série de deficiências estruturais que comprometem a coerência, a racionalidade e a justiça administrativa. As normas são frequentemente aplicadas sem a devida distinção entre condutas com efetivo potencial lesivo e situações meramente formais ou cadastrais. Há, também, ausência de gradação adequada, o que compromete o princípio da proporcionalidade e impede o reconhecimento de hipóteses de erro escusável ou de condutas de baixa relevância prática.

De forma geral, a Resolução nº 2/2018 tipifica como infrações uma ampla gama de condutas ligadas à regulação de preços de medicamentos, que são classificadas como infrações “quantificáveis” ou “não quantificáveis”. As primeiras envolvem, por exemplo, a oferta ou comercialização de medicamentos por preço acima do teto permitido ou sem definição de preço pela Cmed.

Multas por mera oferta

A definição excessivamente ampla de “oferta” no artigo 5º, inciso II, alínea “a”, da Resolução Cmed nº 2/2018, tem permitido, na prática, que o mero cadastramento de preço em plataformas eletrônicas de compras públicas seja enquadrado como infração quantificável e enseje a aplicação de multa severa. Essa situação tem gerado penalidades absolutamente desproporcionais, sem qualquer correspondência com a gravidade ou materialidade da conduta.

Nesses casos, a Resolução nº 2/2018 prevê o cálculo da multa com base na diferença entre o valor ofertado e o preço-teto definido pela Câmara, multiplicada pela quantidade ofertada, acrescida de um percentual adicional relacionado ao porte econômico da empresa.

A título de exemplo, considere-se uma empresa que, ao cadastrar seu preço em um sistema eletrônico, informa o valor de R$ 12,00 por unidade de determinado medicamento, cujo teto definido pela Cmed é de R$ 10,00. Supondo que o campo de quantidade informada seja de 1.000.000 de unidades farmacotécnicas (por exemplo, comprimidos) e que o índice de ajuste para essa empresa seja de 5% (conforme faixa de faturamento), a multa aplicável será de: Mo = (R$ 2,00 * 1.000.000) * 1,05 = R$ 2.100.000,00. Isso sem qualquer venda efetivada ou dano real.

Multas superiores à do exemplo são corriqueiramente verificadas na praxe sancionatória da Cmed, podendo chegar a valores acima de R$ 14 milhões por infração. A sanção, nesse contexto, revela-se desproporcional e desvinculada de qualquer impacto concreto no mercado, servindo apenas como instrumento punitivo excessivo — ou talvez arrecadatório.

Vale detalhar que a resolução estabelece faixas de índice de ajuste que variam de 2% a 10%, conforme o faturamento anual da empresa. Esse índice representa uma parcela mínima da composição da multa (isto é, até 10%). Ou seja, aproximadamente 90% do valor da multa não encontra qualquer relação de proporcionalidade com o tamanho da empresa sancionada, estando relacionado exclusivamente com a diferença entre o valor ofertado e o teto. Note que não há “sobrepreço” aqui, porque não houve venda de nenhuma unidade, neste caso — ou seja, não se trata de ressarcimento, mas apenas de multa.

Mesmo considerando o índice de ajuste, a última faixa é aplicada a empresas com faturamento anual igual ou superior a R$ 100 milhões, sem qualquer distinção adicional dentro desse grupo. Isso gera distorções evidentes: uma distribuidora que fatura exatamente R$ 100 milhões por ano — e que opera com margens líquidas em torno de 5% — pode ter uma liquidez disponível reduzida, incapaz de suportar uma penalidade milionária da Cmed; entretanto, é classificada pela Cmed, indistintamente, na mesma categoria das grandes indústrias farmacêuticas que faturam múltiplos bilhões com margens substancialmente superiores — ainda que sua estrutura financeira seja bastante distinta. Mesmo assim, a norma trata essas empresas de maneira idêntica, jogando todas no mesmo patamar punitivo, sem qualquer consideração pela real capacidade econômica para absorver sanções de tamanha magnitude.

No caso específico das distribuidoras, a aplicação de uma penalidade milionária como a ilustrada no exemplo anterior pode comprometer vários anos de lucratividade da empresa, levando-a a operar no vermelho e, em casos mais extremos, até mesmo ao encerramento de suas atividades. Trata-se de um efeito colateral perverso da Resolução Cmed nº 2/2018, que foi originalmente concebida com o intuito de garantir a competitividade e o equilíbrio do mercado farmacêutico, mas acaba, na prática, por excluir do mercado justamente os agentes que operam de forma regular e saudável, porém com margens reduzidas e menor estrutura de capital.

Considere-se o caso de uma distribuidora com faturamento anual de R$ 100 milhões e margem líquida de 5%, resultando em lucro anual de R$ 5 milhões. A aplicação de uma multa de R$ 2,1 milhões — como no exemplo hipotético anterior — comprometeria 42% do lucro anual da empresa. Isso sem considerar as contingências contábeis, os custos operacionais e eventuais recursos administrativos e judiciais. Em um cenário mais adverso, essa penalidade isolada poderia consumir os lucros de dois ou três exercícios financeiros consecutivos, afetando diretamente a capacidade de pagamento de fornecedores, a renovação de estoques e até mesmo o cumprimento de obrigações trabalhistas e tributárias.

O resultado é a destruição da sustentabilidade econômica de um player relevante para a cadeia farmacêutica, em razão de uma conduta meramente formal e sem qualquer prejuízo real ao mercado ou aos consumidores.

A eliminação dessas distribuidoras do mercado revela-se ainda mais grave quando se considera sua importância estratégica para o abastecimento de farmácias e para a assistência farmacêutica no SUS (Sistema Único de Saúde). O Brasil é um país continental, com mais de 90 mil farmácias em operação e mais de 5.000 municípios que precisam ser regularmente atendidos com medicamentos e produtos de saúde.

Essa capilaridade só é viável graças à atuação de distribuidoras de médio porte, que, com estruturas enxutas e forte presença regional, conseguem chegar a localidades remotas onde as grandes indústrias não mantêm operação direta. São esses players intermediários que garantem a integralidade e a continuidade da assistência farmacêutica no território nacional. Ao tratar essas empresas de forma indistinta e impiedosa, a Resolução nº 2/2018 mina a própria lógica de funcionamento do mercado que se propôs a regular.

A desproporcionalidade se agrava quando se compara a sistemática sancionadora da Cmed com a da Lei nº 6.437/1977, que trata das infrações sanitárias. Esta última, que se destina a punir condutas que efetivamente colocam em risco a saúde pública, como a produção ou comercialização de medicamentos falsificados ou vencidos, estabelece faixas de multa significativamente inferiores. Enquanto a Cmed aplica sanções que podem ultrapassar facilmente R$ 2 milhões, a Lei nº 6.437/1977 prevê multa máxima de R$ 1,5 milhão apenas para infrações gravíssimas — envolvendo, por exemplo, fraudes sanitárias.

Além disso, a Lei nº 6.437/1977 estrutura as penalidades de forma escalonada, com previsão expressa de advertência e outras penalidades não pecuniárias, permitindo à autoridade sanitária graduar a punição conforme a gravidade da conduta. Já a Resolução Cmed nº 2/2018 não assegura a mesma gradação, tampouco reserva ao agente regulador margem discricionária suficiente para reconhecer situações de ausência de dolo, ausência de impacto econômico ou mesmo erro material — como ocorre nos casos de cadastramento indevido de preços em sistemas de compras.

Tal cenário configura violação ao princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), bem como à vedação constitucional de sanções desarrazoadas. Ainda, pode-se argumentar que a imputação de penalidades em tais casos extrapola os limites do poder regulamentar, na medida em que cria obrigações e sanções não previstas diretamente em lei.

Diante desse quadro, impõe-se uma revisão urgente e profunda do regime sancionador da Cmed, com vistas a assegurar maior proporcionalidade, racionalidade econômica e aderência à realidade operacional dos diversos agentes que compõem a cadeia farmacêutica nacional. É necessário reformular os conceitos de “oferta” e “infração quantificável”, incorporando critérios objetivos que diferenciem situações formais ou cadastrais daquelas que efetivamente impactam o mercado.

Também é imprescindível revisar a metodologia de cálculo das multas e a política de faixas de ajuste, considerando não apenas o faturamento bruto, mas a estrutura de custos e a margem líquida dos agentes sancionados. Mais do que um imperativo de justiça administrativa, trata-se de uma medida essencial para garantir a sobrevivência de empresas que desempenham papel estratégico na garantia do acesso a medicamentos em um país continental como o Brasil. A punição cega e desproporcional não fortalece o sistema regulatório — ela o fragiliza.

Autores

  • é advogado com atuação especializada em Direito Público, Contencioso Estratégico e Life Sciences, sócio do L.O. Baptista Advogados, com experiência na assessoria de empresas nacionais e multinacionais dos setores farmacêutico, de dispositivos médicos e de saúde, pesquisador do pós-doutorado em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da USP, doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP e MBA Executivo pelo Insper, autor de publicações jurídicas, incluindo o livro Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos, participante da elaboração de projetos de lei relevantes para o setor de life sciences e ex-membro da Comissão de Direito Sanitário da OAB-SP.

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