A reclamação a partir da Constituição de 1988
15 de junho de 2025, 8h00
Incialmente, devemos situar o leitor que este é o primeiro texto no qual abordaremos a reclamação. Logo, nesta oportunidade, não será proposta uma análise exaustiva desse instrumento processual, mas trabalhada sua faceta constitucional, convocando para análise o artigo 102, inciso I, alínea “l” [1] e o artigo 105, inciso I, alínea “f” [2].
Qual a natureza jurídica da reclamação?
A “natureza jurídica é o conjunto de atributos que permite separar um instituto jurídico do outro” [3]. Desse modo, qual a natureza jurídica da reclamação?
Em que pese tenha experimentado outras roupagens [4][5][6], ao fim e ao cabo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a reclamação como uma ação propriamente dita, afirmando que “a doutrina e a jurisprudência não se afastam da compreensão de que a reclamação é uma autêntica ação, e não um recurso ou incidente processual” [7]. Posição reafirmada pela Corte Suprema até os dias atuais [8] [9].
Por conta de sua natureza, a reclamação é expediente apto a provocar uma alteração da decisão reclamada ou a determinação de sua alteração, desse modo, não visa uma tutela meramente correicional [10]. Per si, a reclamação objetiva uma tutela capaz de remover um ilícito – ato contrário ao direito que, no caso, traduz-se no ato jurisdicional que viola decisão já proclamada por uma das Cortes Supremas – por intermédio do devido processo legal [11].
Entendida como ação, a reclamação instala uma relação processual autônoma, ou seja, que independe da existência de outro processo ou recurso [12]; seguindo um procedimento especial, uma vez que conduzido de forma sumária em relação à forma, não havendo espaço pré-definido para conciliação das partes, tampouco um momento específico para sua organização e instrução [13], e materialmente especial, onde o debate e a cognição são parciais, isto porque destinados a dirimir estritamente o conteúdo da decisão/norma violada.
Trata-se de um processo objetivo no qual é avaliado se a decisão do tribunal ordinário respeita àquela exarada pelo Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça, para fins de garantir sua autoridade, ou se (não) usurpa a competência dessas cortes.
A preservação da competência jurisdicional: o primeiro desígnio da reclamação
A alínea “l” do inciso I do artigo 102 e a alínea “f” do inciso I do artigo 105 estabelecem que a reclamação visa preservar a competência de ambas as Cortes Supremas.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a Reclamação 2.021 [14], decidida em 12 de maio de 2021, é valioso exemplo dos limites dessa locução inicial do dispositivo em relação ao STF – “preservação de sua competência”.
No caso, o município de Canindé do São Francisco/SE propôs a reclamação em face de medida antecipatória de tutela deferida pela 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Maceió (AL) na Ação Ordinária 12.299-9/00, a qual determinou o rateio do valor adicionado de ICMS relativo às atividades da Companhia Hidroelétrica do São Francisco entre as municipalidades vizinhas por considerar que o fato gerador do tributo ocorria tanto no município reclamante quanto em Piranhas (AL).
Segundo sustentou a municipalidade, tal decisão afrontava a autonomia federativa, por submeter o Judiciário sergipano à decisão de órgão judicial localizado em ente federativo distinto, ultrapassando as fronteiras geográficas extensionais do ato decisório e, com isso, impactava a receita proveniente de ICMS.
Em suma, segundo o município a decisão atacada via reclamação definiu os limites territoriais de atuação do ente federado, matéria cuja análise é de estrita competência do STF por força do artigo 102, inciso I, alínea “f” [15], da Constituição de 1988.
Bem, o STF acolheu a tese da municipalidade, não só admitindo o cabimento da reclamação como determinando a remessa dos respectivos autos à Corte Suprema para dirimir a questão, isto porque reconheceu haver usurpação de competência e, a partir disso, reconheceu ser a reclamação o instrumento hábil para o saneamento do conflito.
A garantia da autoridade da decisão
Passando à segunda parte do enunciado da alínea “l” do inciso I do artigo 102 e da alínea “f” do inciso I do art. 105, constata-se que a reclamação também é destinada à “garantia da autoridade” das decisões exaradas pelo STF e STJ.
A decisão, nesse caso, tomada como a parte dispositiva [16], é aquela que se apresenta como um enunciado prescritivo realizador – utilizando-se da acepção de Rodrigo Dalla Pria [17] [18].
Tomemos agora como exemplo caso julgado no STJ, especificamente a Reclamação 4.487-PR [19]. Na oportunidade, a Indústria Madeira Claudino Ltda. (massa falida) se voltou contra decisão prolatada pelo Juízo Federal da Vara Única da Subseção de Guarapuava (PR) em execução fiscal, alegando desrespeito da decisão emanada nos autos do Recurso Especial 1.013.252-RS[20], na qual o voto vencedor do relator, Ministro Luiz Fux, pronunciou que o produto arrecadado com a alienação de bem penhorado em execução fiscal, ainda que anterior à decretação da falência, deve ser entregue ao juízo universal.
Com a determinação do Juízo Federal da Subseção de Guarapuava de que o produto da arrematação fosse convertido em renda em favor da exequente, o caso se sujeitou ao enunciado do artigo 105, inciso I, alínea “f”, da Constituição de 1988.
A Reclamação 4.487-PR foi acolhida para reconhecer a afronta ao “comando jurisdicional” – decisão prolatada no Recurso Especial 1.013.252-RS – e ordenar a cassação da decisão de primeira instância, confirmando que a Reclamação é predestinada à garantia da autoridade da decisão. No mesmo sentido podemos citar a Reclamação 25.046-RS [21] e 12.530-RS [22].
Dos julgados adrede referidos, constata-se que, havendo decisão jurisdicional que afronte a norma construída pelas Cortes Supremas, tal decisão deve ser cassada fazendo prevalecer aquilo que foi decidido em grau superior.
Essa conclusão coloca a reclamação como importante instrumento para a garantia da autoridade das decisões emanadas pelas cortes superiores, as quais, enquanto detentoras da última palavra sobre matéria constitucional (STF) e infraconstitucional (STJ), devem prevalecer sobre as decisões prolatadas pelos tribunais ordinários.
[1] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: […] l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;
[2] Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – processar e julgar, originariamente: […] f) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;
[3] GAMA, Tácio Lacerda. In Competência Tributária. 1ª edição. São Paulo: Noeses, 2009, p. XLVIII.
[4] A Reclamação já foi entendida como instrumento recursal pelo STF em 1970, quando da decisão do caso Reclamação n. 831 (STF, Pleno, Reclamação n. 831/DF, Rel. Min. Amaral Santos, j. em 11.11.1970).
[5] Antes mesmo do advento da Constituição de 1988, o STF passou a reconhecer o perfil jurisdicional da Reclamação, ao menos, assim se posicionou na Representação n. 1.092 (STF, Pleno, Representação n. 1.092/DF, Rel. Min. Djaci Falcão, j. em 31.10.1984).
[6] Para uma análise da historicidade da Reclamação, indicamos a leitura da “Parte I. Perfil Conceitual” da obra “Reclamação nas Cortes Supremas” de Daniel Mitidiero.
[7] Rcl 1728 CumpSent, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24-11-2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-072 DIVULG 15-04-2016 PUBLIC 18-04-2016.
[8] Rcl 51853 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 28-03-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-060 DIVULG 29-03-2022 PUBLIC 30-03-2022.
[9] Rcl 57388 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 22-02-2025, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 12-03-2025 PUBLIC 13-03-2025.
[10] ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Precedentes, Recurso Especial e Recurso Extraordinário. 5ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. E-book.
[11] MITIDIERO, Daniel. Reclamação nas Cortes Supremas. 2ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. Livro Digital.
[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil – Vol. II. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 211/212.
[13] MITIDIERO, Daniel. Reclamação nas Cortes Supremas. 2ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. Livro Eletrônico.
[14] Rcl 2021, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 12-05-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-098 DIVULG 21-05-2021 PUBLIC 24-05-2021.
[15] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: […] f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta;
[16] MITIDIERO, Daniel. Processo Civil. 3ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024. Livro Eletrônico.
[17] De acordo com o autor, “os atos judiciais decisórios (sentença, acórdão ou decisão interlocutória) veiculam, ordinariamente três espécies de normas concretas e individuais: (i) a norma introdutora (enunciados dêiticos de tempo, espaço e autoridade); (ii) a norma de julgamento (relatório); e (iii) a norma de decisão (fundamento). Para além dessas três proposições normativas básicas, observa-se ainda, na estrutura das decisões judiciais emanadas a partir de atividade cognitiva, formulações de ordem eminentemente performativa, que compõem a parte dispositiva dos pronunciamentos judiciais – denominados (iv) enunciados prescritivos realizadores -, os quais se voltam à efetivação dos direitos subjetivos constituídos no consequente das normas de decisão”. (DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Tributário. 3ª Ed. São Paulo: Noeses, 2024, p. 215).
[18] A celeuma entre precedente e parte dispositiva será objeto de artigo de nossa autoria em momento posterior.
[19] Rcl n. 4.487/PR, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em 10/8/2016, DJe de 22/8/2016.
[20] REsp n. 1.013.252/RS, relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 19/11/2009, DJe de 9/12/2009.
[21] Rcl n. 25.046/RS, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em 26/8/2015, DJe de 3/9/2015.
[22] Rcl n. 12.530/RS, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em 28/8/2013, DJe de 18/9/2013.
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