O ‘Cavalo de Troia’ neoliberal dos precedentes no Direito brasileiro
14 de junho de 2025, 14h19
“A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce”
“A cidade”, Chico Science e Nação Zumbi
A reflexão do Diário de Classe deste sábado é provocada pela instigante palestra do professor André Coelho (UFRJ), proferida durante o VII Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito (2024), e também se ancora no trabalho incansável de Sísifo empreendido pela doutrina de Lenio Streck e pela escola que constitui a Crítica Hermenêutica do Direito. André Coelho alertou: por trás da “cultura processualista brasileira”, consagrada em reformas e codificações recentes, esconde-se um velho conhecido com nova máscara — o neoliberalismo. Um neoliberalismo que transformou precedentes em dogma gerencial, e o acesso à Justiça em miragem.
Este texto [1] percorre os caminhos dessa crítica — nos dizeres de Leonardo Longen do Nascimento, dessa inquietude diante da jurisprudencialização do Direito —, examinando como o discurso da jurisprudência transformou-se em instrumento de contenção da igualdade, produzindo não apenas uma elite interpretativa, mas também uma massa silenciosa de excluídos do sistema de precedentes. Afinal, neste Brasil que não é para principiantes — e muito menos para os de baixo —, o Direito também sabe muito bem quem pode subir e quem deve permanecer descendo.
1) Jurisprudencialização do Direito e neoliberalismo
O sistema brasileiro de precedentes, longe de ser apenas um avanço técnico-processual, implica um fechamento hermenêutico tanto para as instâncias inferiores do Judiciário quanto para as camadas mais vulneráveis da sociedade, que dependem dessas instâncias para ter seus direitos reconhecidos. Paradoxalmente, o mesmo sistema permanece aberto e flexível para as cortes superiores, que podem reinterpretar, modular ou inverter entendimentos conforme as conveniências políticas, econômicas ou em razão da identidade das partes envolvidas.
Nessa linha, como bem pontuou o professor doutor André Coelho (UFRJ), em sua fala durante o VII Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito (2024), essa estrutura não é fruto do acaso, mas, sim, parte de um projeto político de reforma judicial conduzido nas últimas três décadas, com fortes traços neoliberais. Trata-se de uma reconfiguração do Judiciário guiada por três vetores principais:
— O controle vertical da jurisdição, concentrando poder decisório nas cortes superiores;
— O controle horizontal, com padronização e replicação de entendimentos nos graus inferiores por incidentes de uniformização, por exemplo;
— E a desoneração do Judiciário em relação aos mais pobres, delegando suas demandas aos Juizados Especiais ou a métodos alternativos de resolução de conflitos — formas processuais marcadas pela informalidade e pela redução de garantias institucionais.
Esse modelo relega à margem justamente aqueles com os quais o sistema de Justiça deveria ter maior compromisso moral e institucional: os grupos historicamente subalternizados. Ao contrário, o Judiciário se reserva aos casos com grande repercussão política e econômica, frequentemente vinculados a interesses de elites e mercados. A equação é cruel: os que mais precisam da Justiça, recebem menos dela.

Nesse contexto, há uma clara colonização e predação do Direito pela economia, cujos imperativos são previsibilidade, eficiência, padronização. A política é deslocada: a deliberação democrática cede espaço à gerencialidade tecnocrática, conduzida pelo Judiciário, que é colocado no centro de um projeto político altamente seletivo. O Judiciário consegue dar vazão às grandes reformas por ocuparem essa posição tecnocrata privilegiada. Assim, transformado-se em instância suprema de reformas silenciosas, protagoniza um modelo que, enquanto garante estabilidade para o mercado, sacrifica a Justiça para os pobres.
No livro A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal, Pierre Dardot e Christian Laval demonstram como a racionalidade neoliberal, fundamentada na lógica da concorrência integral, apresenta-se como uma forma totalizante de governamentalidade, que se estende do Estado às esferas mais íntimas da vida humana. Essa nova racionalidade não apenas organiza a economia, mas reconfigura a própria ideia de ação pública, deslocando-a do paradigma da cidadania para o da eficiência.
Segundo os autores, esse processo se manifesta por meio de tendências alarmantes: a diluição do Direito Público em benefício do Direito Privado, a subordinação da ação estatal aos critérios de rentabilidade e produtividade, a depreciação simbólica da lei como ato próprio do Legislativo e a promoção de um “cidadão-consumidor”, encarregado de arbitrar entre ofertas políticas concorrentes, como se escolhesse produtos no mercado.
Nessa lógica, o sujeito de direitos é substituído por um ator autoempreendedor, cuja relação com o Estado é mediada por desempenho, risco e mérito. Trata-se, portanto, de uma reforma gerencial da ação pública, que longe de ser neutra, afronta diretamente o ideal democrático de cidadania social, ao reforçar desigualdades históricas e criar categorias como “subcidadãos” e “não cidadãos”.
A conclusão dos autores é contundente: essa nova racionalidade produz seus próprios critérios de validade — eficácia, eficiência, previsibilidade —, esvaziando o conteúdo normativo das leis, que passam a valer apenas na medida em que servem aos objetivos da gestão. Já não se pautam por princípios morais ou jurídicos da democracia liberal.
Mera coincidência? Ou um projeto bem articulado de erosão do Direito sob a máscara da técnica?
2) A Ética dos precedentes e o problema da (suposta) solução da crise: novas vestes para velhos problemas
Luiz Guilherme Marinoni, um dos maiores expoentes da doutrina precedentalista brasileira, sustenta em sua obra Ética dos Precedentes que o sistema busca igualdade e previsibilidade, inspirando-se numa leitura weberiana da ética protestante e na racionalidade formal do Direito que teria sido essencial à consolidação do capitalismo. Claramente, aqui temos como pano de fundo a discussão sobre a legitimação do procedimento do sistema jurídico, tendo diversos matizes de visualização na teoria jurídica, mas nesse caso importada sem olhar para a “experiência brasileira”.
Para Marinoni, a chamada “etização dos precedentes” — isto é, sua justificação por critérios de igualdade e previsibilidade — serviria para superar os traços historicamente arraigados da cultura jurídica brasileira: o personalismo, o patrimonialismo, o culto à irracionalidade e o desprezo à previsibilidade.
A ideia central é que todos são iguais perante a lei, e que, portanto, o precedente obrigatório das cortes supremas promove igualdade e segurança jurídica. Mas como vincular de fato o Judiciário a estas questões, como André Coelho indicou, o que acontece muitas vezes é exatamente o oposto. A promessa de igualdade revela-se um simulacro. A isonomia formal, dissociada de um compromisso com a realidade social concreta, transforma-se em retórica vazia. O sistema de precedentes cria normas gerais e abstratas, enquanto os casos concretos — e as pessoas que os vivem — perdem-se no caminho. A jurisprudência defensiva, por exemplo, restringe o acesso às instâncias superiores, tornando inócua qualquer promessa de igualdade “de cima para baixo” (aqui). Igualdade de quem? Para quem? A quem serve essa previsibilidade?
Em tese doutoral defendida na USP [2], demonstrou-se que a pauta no STF é orientada por critérios informais, livres e marcadamente individualistas: quem são as partes, quais os advogados envolvidos, e até mesmo a cobertura da imprensa influenciam o que será julgado e como será votado. Matéria da Folha de S.Paulo noticiou que, por meio do uso da reclamação, empresas passaram a acessar diretamente o STF para contestar decisões da Justiça do Trabalho. Segundo os dados, 38% dessas reclamações são aceitas, contra 28% de aceitação geral. Ao mesmo tempo em que se reduz a atuação dos tribunais especializados, a corte afrouxa a legislação trabalhista no caso da pejotização com base em entendimentos anteriores — como o que liberou a terceirização em 2018 —, ainda que os casos concretos sejam distintos. A racionalidade econômica, nesse cenário, fagocita o sistema de precedentes e se vale da fachada de uma igualdade formal desconectada da realidade social.
Desse modo, o personalismo e o patrimonialismo apenas vestem novas roupagens. A racionalidade precedentalista apresenta-se como um sistema técnico, impessoal, eficiente, mas continua a reproduzir a lógica de poder e exclusão, desprezando a igualdade em sua dimensão substancial. Promove uma tomada de decisão cada vez mais individualista e distante da vida real.
Como lembra Pierre Rosanvallon [3], a legitimidade democrática também está na proximidade: no reconhecimento do cidadão enquanto sujeito singular, com suas particularidades levadas a sério. Ou, nas palavras de Frederico Pessoa da Silva, em ter a particularidade do caso concreto subjacente ao precedente levada a sério. O contrário disso é uma igualdade que serve apenas para justificar vaziamente o sistema — nada mais do que mais um instrumento de poder.
Como bem pontua Lenio Streck em Precedentes Judiciais e Hermenêutica (6ª ed., 2025), a importação acrítica de modelos estrangeiros revela-se uma operação politicamente instrumental, típica de um país marcado por tentativas de “modernização autoritária”. O direito é tratado como mero instrumento de poder.
Cria-se, assim, uma máquina sofisticada de moer direitos. Sofisticação, não superação. Os problemas são antigos, mas os mecanismos que os escondem tornaram-se mais refinados. A igualdade transforma-se em simulacro de inclusão, e a segurança jurídica, em dispositivo de poder que congela desigualdades estruturais.
3 – Senso Comum Teórico e o lugar secreto do precedentalismo: Provocações waratianas
Luis Alberto Warat busca construir uma genealogia do desejo por poder e dominação presente no discurso jurídico. Para ele, a dogmática instrumentaliza o Direito e opera como uma engrenagem de reprodução das estruturas de poder.
Warat denomina esse fenômeno de senso comum teórico, um campo no qual se recriam conceitos e métodos interpretativos para manter o status quo do poder jurídico. Os métodos não seriam neutros, mas álibis teóricos dos juristas para proteger os desígnios de poder dos que comandam o Judiciário [4]. Nesse lugar “secreto”, forma-se um emaranhado de costumes intelectuais aceitos como verdade, que ocultam o componente político do discurso jurídico. Daí a afirmação provocadora de Warat: a epistemologia do Direito não passa de uma “doxa politicamente privilegiada”, já que os limites entre saber comum e ciência são indefinidos. Essa “doxa” mascara o fato de que a história das verdades jurídicas é inseparável da repressão burguesa [5].
Warat aponta quatro funções centrais do senso comum teórico dos juristas (aqui):
1) Normativa — atribui significação aos textos legais, redefine critérios e disciplina a atuação institucional dos juristas;
2) Ideológica — homogeneíza valores, silencia o papel histórico-social do Direito e naturaliza os deveres jurídicos como éticos e necessários;
3) Retórica — serve como condição retórica de sentido, oferecendo um conjunto de argumentos e “lugares” ideológico-teóricos para o raciocínio jurídico;
4) Política — deriva das demais e visa preservar e reassegurar as relações de poder, apresentando os dispositivos de dominação como um sistema coeso e legítimo.
Diante disso, cabe a provocação: seria o sistema de precedentes o novo “lugar secreto” da doxa jurídica, reproduzindo o projeto neoliberal sob o discurso da igualdade e da segurança jurídica? Em outras palavras, não estaríamos diante de uma nova roupagem que justifica velhos mecanismos de exclusão?
Com o tempo, Warat amplia sua crítica. Ele passa a desenvolver uma semiologia do poder e do desejo, incorporando uma visão crítico-histórica da ciência jurídica. Surge, então, uma teoria crítica do poder, voltada a desvelar seus mecanismos no imaginário social, e uma teoria do desejo, que propõe um “ethos criativo” voltado à construção de um mundo mais justo e sensível [6].
Essa semiologia do desejo representa um esforço para não aprisionar a vida, promovendo liberdade e afastando o direito da linguagem imposta pelo poder. Trata-se de uma autonomia coletiva, imaginada em grupo, fundada em afetos e na pluralidade [7].
Em tempos de elites interpretativas e interditos hermenêuticos, mais do que nunca, é urgente retornar ao outro, à facticidade, à historicidade, ao vínculo intersubjetivo, à construção de projetos jurídicos que realmente levem a sério a inclusão e a igualdade vivida pela comunidade política. Se já não é possível fechar a porta para o cavalo de Troia neoliberal, talvez ainda possamos construir vacinas democráticas, gestadas por meio da imaginação coletiva, afetiva e resistente das massas historicamente oprimidas.
[1] Agradecimentos ao colega Francisco Campis pelo auxílio na revisão e comentários.
[2] ESTEVES, Luiz Fernando Gomes. A construção da pauta do Supremo Tribunal Federal: quem, o quê, e como. 2022. Tese (Doutorado) – USP, 2022.
[3]OSANVALLON, Pierre. La legitimidad democrática: imparcialidad, reflexividad, proximidad. Buenos Aires: Manantial, 2009.
[4] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. Vol 1. Porto Alegre: Sergio Antonis Fabri, 1994.
[5] WARAT, L. A. As vozes incógnitas das verdades jurídicas. Sequência: estudos jurídicos e políticos, v. 8, n.14, p. 57-61, 1987.
[6] Idem: WARAT, 1994.
[7] Veras, Mariana Rodrigues. Antologia do pensamento de Luis Alberto Warat: a epistemologia carnavalizada e a digna voz da majestade frente à juridicidade latino-americana. Tese de doutorado em direito, PPGD UNISINOS, 2017.
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