Controle-coordenação: urgência na administração pública
12 de junho de 2025, 14h20
A administração pública brasileira apresenta-se como um complexo de organizações. Mesmo a administração direta assemelha-se à mítica Hidra de Lerna: múltiplas cabeças autônomas, com funções e propósitos específicos, articuladas em uma estrutura unitária que desafia, além da hierarquia tradicional, o desenvolvimento de relações de coordenação adequadas à multiplicidade e sofisticação das questões atuais. [1]
Articular a administração do Poder Executivo, do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, a administração do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e outros órgãos constitucionais autônomos não é tarefa trivial.
Some-se a isto uma administração indireta heterogênea, formada por entidades dedicadas à produção de normas, à exploração econômica ou à execução de serviços públicos ou, ainda, a atividades simultâneas de prestação, regulação, fomento e inspeção.
Para além de cada pessoa política isolada, o Estado Administrativo precisa também manejar interações governamentais entre diferentes níveis de administração territorial em uma federação tensionada e manter relações com organismos internacionais e administrações de países distintos.
Nesse cenário, o controle administrativo, tradicionalmente concebido como instrumento de fiscalização e repressão da ilegalidade, precisa ser ressignificado como mecanismo de indução, alinhamento e coordenação das diferentes unidades de atuação da administração pública.
O controle-inspetivo-sancionador deve conviver com o controle-coordenação, diante da carência crescente de recursos para investimentos sociais e econômicos, evitando superposições de competências, redundâncias de controles, indefinição de atores, fuga de responsabilidades, demora excessiva na decisão, desalinhamento orçamentário, capturas partidárias ou corporativas setoriais, entre outras distorções.
A coordenação administrativa é, no Brasil, uma questão prioritária determinante para o sucesso ou fracasso de políticas públicas. Por isso, sugiro neste artigo urgente melhor disciplinar os instrumentos de controle como indutores de coordenação e, reversamente, valorizar a relação de coordenação na transformação e racionalização do próprio sistema de controle.
Coordenação: princípio estruturante e relação contínua
A coordenação administrativa pode ser conceituada, no plano normativo, como princípio estruturante e, no plano concreto, como relação organizativa contínua que visa assegurar a ação harmoniosa, econômica, segura, coerente e eficaz entre diferentes órgãos e entidades administrativas para alcançar objetivos comuns.
O Decreto-Lei nº 200/67 estabeleceu a coordenação como um dos princípios fundamentais da administração federal, ao lado do planejamento, descentralização, delegação de competência e controle. A enumeração legal sugere domínios distintos, mas é impossível dissociar coordenação de controle, planejamento, descentralização e da própria delegação de competências. O DL 200/67 revela a simbiose necessária entre coordenação e controle. Por exemplo, ao elencar objetivos da supervisão ministerial de cada ministro de Estado, no artigo 25, III, enuncia explicitamente as funções de “coordenar as atividades dos órgãos supervisionados e harmonizar sua atuação com a dos demais Ministérios”. Ora, se não há perfeita equivalência entre controle e coordenação, há ao menos interdependência dos conceitos de controle e coordenação, ponto de partida para a análise dos arranjos contemporâneos de coordenação.
Controle ampliado: muito além de fiscalização
O controle administrativo, em sua acepção moderna, transcende a verificação da legalidade e identificação de desvios. Ele se projeta sobre a eficiência, a gestão de riscos, a transparência e a responsividade da atuação administrativa, assumindo papel central na avaliação de resultados e na orientação estratégica da administração pública. Resolve conflitos de competência, fixa metas temporárias, estimula atos concertados entre órgãos e a formação de equipes voltadas a temas prioritários.

Quando percebido de forma ampla, ultrapassa o plano institucional e abriga o controle social, através da participação cidadã ou cívica (v.g. conselhos, consultas, audiências públicas, conferências), instâncias de legitimação ou direcionamento da atuação estatal para demandas reais da coletividade.
A função de controle, que assume formas processuais públicas, é função de organização e seleção de interesses, de filtragem e ponderação dos múltiplos objetivos públicos em jogo, de harmonização e negociação de demandas, mas também deve cumprir funções de inibir bloqueios interadministrativos, insulamentos burocráticos, tentativas de feudalização interna do Estado por interesses setoriais ou de grupos corporativos, em prejuízo à necessária coordenação da ação administrativa e de sua celeridade e eficácia [2].
Modalidades e instrumentos de controle-coordenação
A coordenação pode ser classificada em intraorgânica, interorgânica e interinstitucional. Em qualquer caso, será processo de construção de ação coesa e de organização deliberada das atividades interdependentes do aparato estatal. A coordenação intraorgânica visa conferir unidade, coerência e eficiência a seções de um mesmo órgão. A coordenação interorgânica objetiva integrar órgãos distintos de mesmo nível (coordenação interorgânica horizontal) ou de níveis diferentes da hierarquia de uma mesma pessoa administrativa (coordenação interorgânica vertical). A coordenação interinstitucional, diversamente, vincula pessoas administrativas distintas encartadas na mesma pessoa política (coordenação interinstitucional simples) ou integrantes de pessoas políticas distintas (coordenação interinstitucional complexa).
Não sendo a coordenação um estado natural, mas uma relação organizativa construída por atos e procedimentos administrativo, há inevitavelmente jogos de poder envolvidos no desenho dos processos de coordenação.
A coordenação é, por vezes, invisível, mas essencial: evita a duplicação de esforços, preenche lacunas, reduz contradições e potencializa a entrega de valor público. Em um Estado policêntrico, a coordenação é antídoto contra a fragmentação, a indefinição decisória e outras disfunções de administrações complexas, que corroem a legitimidade e a efetividade da ação estatal.
Entre os instrumentos de controle-coordenação mais frequentes destaco, entre outros:
a) a resolução de conflitos de competência, quer positivos, quer negativos;
b) a decisão coordenada (Lei 14.210/2021);
c) a delegação temporária (Arts. 11 a 17, Lei 9.784/1999) e a transferência permanente de competências (via decretos de organização);
d) as auditorias integradas, que permitem diagnósticos e recomendações articuladas;
e) acordos de desempenho (Lei 13.934/2019);
f) sistemas integrados de gestão (v.g. Siafi, Siape), que padronizam e centralizam informações, promovendo a coordenação operacional;
g) convênios e consórcios públicos (Lei 11.107/2005), que formalizam a coordenação intergovernamental;
h) câmeras técnicas e comitês interministeriais, que facilitam o alinhamento estratégico e o monitoramento de políticas intersetoriais;
i) sistemas nacionais de políticas públicas integradas (v.g. SUS, Suas)
j) atos normativos conjuntos de agências reguladoras e interações estruturadas entre as agências e os órgãos de defesa da concorrência, de defesa do consumidor e meio ambiente, entre outras formas de articulação disciplinadas pela Lei 13.848/2019;
k) funcionamento integrado do sistema de controle interno (Art. 74, CF).
Por óbvio, é inviável explorar nesta breve abordagem todos os instrumentos de controle-coordenação referidos. Prefiro virar a bússola para refletir, ao final, sobre os possíveis impactos do princípio da coordenação no desenho do próprio sistema de controle público.
Coordenação como diretriz do controle público
A sinergia entre controle e coordenação deve orientar o desenho do próprio sistema de controle público. Este deve evitar a fragmentação excessiva, impedindo ou desestimulando que diferentes atores atuem de forma descoordenada e conflituosa (por exemplo: demandas apresentadas em paralelo ou sucessivamente por órgãos do Ministério Público de diferentes estados a uma mesma entidade pública ou empresa em face de um único e específico empreendimento; conflitos entre agências reguladoras e Tribunais de Contas, entre termos assumidos por acordos de leniência diversos assinados com o Ministério Público e outros órgãos de controle externo, entre órgãos de controle estaduais, ou destes com órgãos equivalentes da União).
À semelhança do que ocorre entre órgãos do Poder Judiciário, todos independentes e imparciais, mas que articulam a competência jurisdicional de modo a respeitar a prevenção ou as capacidades institucionais e circunstâncias concretas na definição do juízo adequado, os órgãos de controle administrativo também devem coordenar o exercício das próprias competências com os demais órgãos de controle de mesma natureza. É útil recordar que o CPC dispõe que suas normas são aplicáveis, subsidiariamente, ao processo administrativo (artigo 15).
É contraproducente que diversos órgãos de controle administrativo requeiram sucessivas perícias sobre a mesma obra, quando uma apenas deve ser feita e compartilhada entre os diversos interessados ou dirigidas ao órgão de controle prevento. Não há racionalidade em que processos ou inquéritos civis de mesma natureza, com o objetivo de tutela do mesmo bem jurídico, tenham curso de tramitação assimétricos perante um mesmo empreendedor. Falta coordenação no controle nesses casos e a redundância de controles ou sua demora excessiva gera custos, repassados ao consumidor ou ao tesouro público.
Assim, louvo iniciativas de convergência, como a recente assinatura do Acordo de Cooperação Técnica CGU/AGU/MPF, de 25 de abril de 2025, destinado a estabelecer procedimentos para operacionalização da cooperação interinstitucional em matéria de combate à corrupção, especificamente em relação aos Acordos de Leniência de que trata a Lei 12846/2013. Esse acordo administrativo estabelece que, “em regra, as negociações, celebrações e execuções de acordos de leniência serão conduzidas de forma coordenada e conjunta entre a CGU, a AGU e o MPF”. Mais concretamente, o ACT estabeleceu parâmetros pré-estabelecidos para cálculo dos valores, intercâmbio controlado de informações, evitação de sobreposição de medidas sancionatórias e fomento do diálogo e da articulação entre agentes públicos das instituições signatárias.
Esses e outros entendimentos sinalizam para a valorização da coordenação no âmbito do controle público. Buscam superar a cultura do insulamento dos diferentes controladores e fortalecer uma cultura de governança colaborativa, pela institucionalização de mecanismos coordenativos.
Diretriz semelhante tem sido adotada pelo modelo da cooperação judiciária nacional instituído pelo CPC/2015 (artigos 67 a 69) e disciplinado pela Resolução CNJ 350/2020. Esse modelo de coordenação, aparentemente voltado para a jurisdição, ultrapassa a temática da realização de atos processuais judicantes para desenhar modelo de governança colaborativa no domínio da administração ou gestão dos juízos e Tribunais. Caracteriza o modelo a admissão de três instrumentos fundamentais: o auxílio direto, os atos concertados e os atos conjuntos. O auxílio direto permite solicitações entre juízos sem formalidades burocráticas tradicionais. Os atos concertados viabilizam acordos procedimentais específicos entre magistrados. Os atos conjuntos possibilitam atuação simultânea de diferentes autoridades. Uma arquitetura instrumental aparentemente singela, mas que enseja verdadeira revolução no tratamento dinâmico das normas de competência e de sua gestão em favor do denominado princípio da competência adequada. [3]
Em um país de controle multiportas, caracterizado por pluralidade de controles autônomos atuando ao mesmo tempo sobre a gestão pública, é urgente fixar critérios legais para a definição do controlador administrativo adequado, mais próximo dos fatos ou das vítimas, mais instrumentalizado para as apurações e perícias, ou ao menos mais preparado para executar atos específicos, partilhando na sequência os resultados com os demais atores da arena de controle. A ação simultânea e nem sempre coerente de múltiplos controladores administrativos de competência material comum é um dos ingredientes da paralisia decisória que tem assaltado agentes públicos e empreendedores, estado de coisas avesso ao princípio da eficiência e ao dever de duração razoável do processo administrativo (artigo 5º, LXXVIII, CF).
A coordenação como diretriz igualmente ilumina duas outras iniciativas de “controle suave”: a instituição de planos estratégicos nacionais, como o Plano Nacional de Atuação Estratégica do Ministério Público (PNAE), que visa pactuar anualmente compromissos entre o CNMP e os ramos e unidades do Ministério Público brasileiro em favor de uma atuação integrada e estratégica nacional coerente, respeitada a autonomia (Resolução CNMP 147/2016, alterada pela Resolução CNMP 307/2025); e a disseminação de plataformas digitais integradas, como a Gov.br e a consumidor.gov.br, que promovem soluções de autenticação e compartilhamento de informações digitais entre diferentes níveis de governo.
Tudo isso vem ocorrendo porque a coordenação administrativa efetiva, sobretudo hoje, é mais que uma exigência prática, é uma urgência nacional. Ela fomenta o diálogo federativo, a convergência e não a concorrência de órgãos de controle entre si, poupa tempo e recursos, e concentra o foco dos órgãos na resolução do problema concreto e não no prestígio ou favorecimento das compreensões particulares de cada instituição. Em um Estado federativo e de múltiplos órgãos autônomos, a capacidade de articular ações em torno de objetivos comuns determina a qualidade da resposta estatal às demandas da sociedade e a energia dispendida para obtê-la. Melhorar a coordenação do controle público, a coesão e a integração dos órgãos e entidades estatais, é desafio inconcluso e incontornável que vale por uma inteira reforma administrativa.
[1] Cf. MODESTO, Paulo. Hidra de Lerna: uma introdução sintética sobre a administração direta no Brasil. Conjur, 26.09.2024. Disponível em Academia e nesta ConJur
[2] Sobre esse aspecto, desenvolver em: MODESTO, Paulo. Decisão coordenada: experimentação administrativa processual. Conjur, 2/12/2021. Link: Academia ou ConJur. Ver MODESTO, Paulo. Direito Administrativo da Experimentação. 2ª.ed. SP: Juspodium, 2025, p 45-54.
[3] O tema tem sido explorado por processualistas de forma competente e refinada, com desdobramentos importantes na compreensão do juiz natural, de modo a assegurar a sua adaptabilidade e flexibilidade, preservado o seu núcleo essencial de previsibilidade, estabilidade e objetividade. Juízos de adequação, conveniência instrutória, eficiência procedimental, análise de capacidades institucionais, boa-fé das partes e outros fatores ganham relevo para a definição da competência decisória e de instrução, podendo ocorrer deslocamentos dinâmicos de competência, inclusive por acordo entre órgãos jurisdicionais. Sobre o tema, com exploração de seus múltiplos aspectos, recomento três trabalhos essenciais: DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à Justiça Multiportas. SP: JusPodium, 2024; CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual. SP: Thomson Reuters, 2021.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!