Opinião

Da intangibilidade da independência judicial

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  • é juiz do Trabalho titular da 1ª Vara de Vitória da Conquista (BA) no TRT-5 mestre e doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor da Faculdade de Direito da FGV-SP.

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11 de junho de 2025, 14h22

O que garante ao cidadão o acesso à ordem jurídica justa é a manutenção de um quadro de magistrados qualificado, com dedicação exclusiva e protegido por garantias normativas de independência.

A partir da Constituição, veem-se presentes as ferramentas da irredutibilidade salarial, da inamovibilidade e da vitaliciedade. No plano da Lei Orgânica da Magistratura, dentre outras, a garantia de não ser punido pelas decisões que proferir, exceto no caso de excesso de linguagem:

artigo 42, LOMAN: “Salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir”

O tema da impropriedade ou excesso de linguagem encontra-se, aliás, sob juízo do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 774, com liminar deferida para suspender as ações em que o Estado está a ser responsabilizado por decisão judicial que tenha nesses vícios incorrido, para examinar-se a eventual responsabilidade pessoal do juiz para indenizar a parte vítima do erro judiciário:

“Ante o exposto, defiro em parte o pedido de medida cautelar para determinar a suspensão dos processos judiciais que visam a condenar o poder público ao pagamento de indenizações com base no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, tendo como causa de pedir a impropriedade ou o excesso de linguagem de membro da magistratura nacional (art. 41 c/c arts. 35 e 36, todos da LC nº 35/1979), até ulterior decisão em sentido diverso ou julgamento definitivo no âmbito desta ADPF.”

Já se manifestou, entre tantos, o ministro Cristiano Zanin, em seminário dentro do Supremo Tribunal Federal:

“A independência judicial não é privilégio ou prerrogativa do juiz. É uma responsabilidade que lhe permite julgar uma disputa de forma honesta e imparcial com base nos fatos, sem pressão ou influência externa ou medo de influência de ninguém”

Ou como, na oportunidade, o juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, destacou:

“A independência judicial é uma questão de direitos humanos”

Sistema em colapso

Se o juiz puder ser punido por aquilo que decide, o sistema entra em colapso, porque a base da jurisdição identifica-se com a liberdade ou independência judicial. É o livre exercício do direito-dever de resolver os conflitos que permite ao magistrado o cumprimento de suas atividades, sem medo de pressões internas ou de ameaças externas.

Estamos a cuidar aqui, não de interesse privado ou corporativo, mas da própria higidez da democracia, pois não há estado de direito sem juízes atuantes, livres e independentes no desencargo de seu difícil mister.

Não importa o assunto.

Ainda que o juiz contrarie decisões de outros juízes ou de tribunais, o único dever que a Constituição lhe impõe é o de fundamentação, nos termos do inciso IX, do artigo 93.

Reclamação no CNJ

De um tempo a esta parte, o Supremo Tribunal Federal vem de adotar a prática equivocada de oficiar o CNJ, para atuação disciplinar de juiz, porque a decisão reclamada contraria o precedente adotado pelo tribunal. Mas nesta oportunidade, a iniciativa, que foi tomada de ofício pelo Corregedor Nacional, resultou na determinação de processamento da reclamação disciplinar 3576-54/2025, por aparente ofensa ao dever de “cumprir e fazer cumprir a lei” (artigo 35, I, Loman).

Spacca

A decisão original posta sob crivo disciplinar tomou lugar em mandado de segurança, no qual se concedeu liminar para destrancar a suspensão processual imposta pelo relator no Tema 1389, da repercussão geral do STF, para o que apresentou clara e consistente fundamentação, a saber: a mera alegação de trabalho autônomo mediante pessoa jurídica sem prova documental da existência do contrato não se enquadra, e portanto constitui distinção, da hipótese versada pelo leading case.

Cuida-se de uma magistrada que está a atuar como magistrada. Conhece o conflito de que lhe encarrega o sistema, aprecia-o, apresenta seus fundamentos e decide. Não abusou da linguagem, não praticou excesso ou impropriedade, mas deliberou determinar o andamento do feito.

Em tempos comuns, tal decisão desafiaria agravo interno e, depois, recurso ordinário. Mas nos inóspitos tempos correntes, em que o STF está a examinar, diuturnamente, matéria de fatos e provas em reclamações constitucionais, inclusive, em certa oportunidade, contra os efeitos da coisa julgada, tudo se mostra natural, como ocorreu com a instauração de ex officio da reclamação disciplinar.

Investigação prejudica imagem

Mister recordar que, para a reputação do magistrado, a simples adoção de procedimento de investigação disciplinar já contempla grave prejuízo à imagem e à respeitabilidade que necessita manter para o exercício digno de suas onerosas funções. Não por outra, nos colegiados, a admissão de reclamação dessa espécie depende de maioria absoluta dos seus membros.

Claro que o procedimento iniciado será apreciado pelo plenário do Conselho, mas admitir que é possível punir a magistrada pela decisão que ela, sem malferir os limites da adequada linguagem, proferiu escancara um grave risco ao funcionamento da Justiça. Segundo o artigo 4º, I, de seu regimento interno, o Conselho tem por finalidade “zelar pela autonomia do Poder Judiciário”, por isso dele se espera que dê à reclamação disciplinar o rumo adequado, que é o do arquivamento.

O sistema de observância obrigatória de precedentes não altera essa lógica fundante e fundamental ao funcionamento do Judiciário. Aliás, em países mais desenvolvidos no plano civilizatório nas relações judiciais, os precedentes vinculam por sua força técnica intrínseca, não porque alguma lei — ou ameaça disciplinar — os imponha aos juízes. Os fundamentos adotados pelos tribunais de precedentes convencem os demais integrantes do Poder Judiciário, sem a necessidade de ameaças, penalidades ou chibatas.

A corrosão que essa iniciativa provoca transborda o caso concreto e vilipendia todo o sistema, não ofendendo apenas o tribunal local (no caso, o TRT da 4ª região), seus integrantes ou a magistrada prolatora da decisão. Fere a magistratura e, com ela, a democracia. Inexiste civilização sem juízes independentes.

Excesso na Justiça do Trabalho

O assoberbamento, reclamado todos os dias por integrantes do STF, notadamente por seu decano dentro e fora dos autos e das sessões, com as reclamações constitucionais em matéria trabalhista deve-se a dois fatores: o ramo do Judiciário brasileiro que mais produz é a Justiça do Trabalho e os precedentes adotados em matéria trabalhista mostram-se abertos e passíveis de interpretação. O caráter não unívoco dos precedentes nessa espécie fixados pelo Supremo Tribunal Federal estimula a interpretação e, consequentemente, a adoção de distinções que não permitam sua aplicação. Tudo inserto na lógica e na licitude do funcionamento do Judiciário.

Anote-se, quanto ao segundo argumento, um único exemplo: o Tema 725 e a ADPF 324 indicam a possibilidade abstrata de organização da produção por outro meio de contratação do ser humano, que não o contrato de emprego. Inúmeras reclamações constitucionais baseadas nesses precedentes são apresentadas ao STF, depois de a Justiça do Trabalho — às vezes em três instâncias — ter reconhecido fraude na contratação por PJ, terceirização, cooperativa, associação ou o que mais a criatividade empresarial inventar.

A fraude decorre da análise dos fatos e, portanto, a decisão que nela se baseia não pode ofender os precedentes referidos em abstrato, o que algumas vezes é repelido pelo tribunal (Agravo em Reclamação 60750, relator ministro Gilmar Mendes), mas noutras é acolhido (Agravo em Reclamação 69168, redatora designada ministra Cármen Lúcia). Não viola o precedente a decisão que se funda no reconhecimento da ocorrência de fraude, porque manteve o respeito à possibilidade abstrata de outras formas de contratação da prestação de serviços.

Escreveu o corregedor nacional, em sua decisão sobre o tema aqui tratado, que “a independência funcional do juiz não é absoluta”. Não se faz possível concordar com premissa desse jaez. Além de absoluta, a independência judicial integra o núcleo de garantia do próprio funcionamento da Justiça e da manutenção da democracia. É essencial que seja absoluta.

Disse, ainda, o corregedor que “a conduta da desembargadora, em princípio, fere a garantia constitucional de acesso à Justiça, caracteriza negativa de jurisdição, lesa a credibilidade do Poder Judiciário e impõe à parte uma morosidade em descompasso com a lei”.

Como exposto o tema, parece não existir fundamento para a liminar concedida, nos termos da decisão correcional, mas a desembargadora explicitou:

“No entanto, não se configura a hipótese vertente como causa da suspensão dos processos ajuizados pelo ora impetrante, por incontroverso que as partes das ações originárias não firmaram contrato escrito de prestação de serviços, conforme os termos da defesa das empresas na ação em que discutida a existência de vínculo de emprego” (Processo nº 0020281-50.2024.5.04.0211, ID 72a44b9 – pág. 272 do PDF).

Pronto: distinguiu e, com base nisso, decidiu. Ao contrário da ordem de suspensão indistinta de ações, vislumbrou meio de dar celeridade ao feito, prestar jurisdição e cumprir o comando do artigo 114, I, da Constituição. Não descumpriu a ordem de suspensão, porque, nos termos da fundamentação, ela não se aplica ao caso sub judice.

A contratação de PJ tem formalidades legais óbvias que, não atendidas, permite reconhecer a situação de mera informalidade de contrato de trabalho subordinado. Do contrário, bastaria quem apenas e tão somente se negou a registrar empregado que alegasse ter sido um “contrato verbal de prestação de serviços por pessoa jurídica” e, como num passe de desejada mágica, o processo para de andar. Não é difícil ver qual das decisões em comento — a do Tema 1389, a do corregedor ou a da desembargadora — prestigia mais a entrega tempestiva da jurisdição.

Que o plenário do Conselho não admita a cogitação de que juízes e juízas que fundamentam suas decisões, ao adotarem posições divergentes das esperadas pelos tribunais superiores, sejam investigados e punidos disciplinarmente. Do contrário, sobrará pouco do Judiciário, cuja autonomia é dever do CNJ manter.

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