Opinião

A quem não interessa a máxima efetividade da tutela coletiva?

Autores

  • é presidente do Instituto Defesa Coletiva advogada pós-graduada em Direito Empresarial pela IEC/PUC-MG e integra a Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG e o Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais.

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  • é professor de graduação e de pós-graduação da FDRP-USP mestre em Master Universitario II Livello - Università degli Studi di Roma Tor Vergata e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco) e coordenador do Observatório Brasileiro de IRDRs da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

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11 de junho de 2025, 17h25

Em meio à crise estrutural do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e diante de massivas lesões a direitos individuais homogêneos de milhões de idosos hipervulneráveis, o STF (Supremo Tribunal Federal) examina o Tema 1.270, originado do Recurso Extraordinário n.º 1.449.302/MS, sob relatoria do ministro Dias Toffoli. A controvérsia gira em torno da legitimidade ativa do Ministério Público para promover a liquidação e execução coletivas de sentença proferida em ação civil pública que versa sobre direitos individuais homogêneos disponíveis, com vistas à reparação de danos individualmente sofridos pelas vítimas ou seus sucessores.

Trata-se de recurso com repercussão geral reconhecida, com fundamento no artigo 102, inciso III, alínea ‘a’, da Constituição, interposto pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público de Minas Gerais contra o acórdão da Corte Especial do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que reconheceu a ilegitimidade ativa do MP para liquidar e executar sentença condenatória proferida em ação civil pública relacionada à relações de consumo.

A decisão do STJ não garante a máxima efetividade da tutela coletiva e ainda pode resultar em um número elevado de ações individuais repetitivas no Judiciário, o que sobrecarregaria o sistema e prejudicaria a reparação dos danos aos consumidores. Dados mostram que a maioria dos brasileiros não procuram à justiça para reivindicar seus direitos, e a restituição dos danos às vítimas direta evitaria essa ineficácia.

Reflexão

Nesse contexto, impõe-se uma reflexão urgente: a quem não interessa a máxima efetividade da tutela coletiva? A Constituição de 1988 conferiu ao Ministério Público papel central na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis — e, por extensão interpretativa, também daqueles disponíveis, desde que revestidos de relevante interesse social.

Eu mesmo, Camilo Zufelato, subscrevi parecer juntado aos autos para fundamentar a manifestação do Instituto Defesa Coletiva no RE 1.449.302/MS3, asseverando que a tutela coletiva representa a máxima expressão do acesso à Justiça, especialmente no tocante aos direitos de terceira geração, como os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. O microssistema de tutela coletiva, formado pela Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985), pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) e pela própria Constituição, foi concebido justamente para lidar com lesões em massa, promovendo isonomia, efetividade e racionalidade processual.

A interpretação restritiva do artigo 127 da Constituição — que limitaria a atuação do Ministério Público apenas aos direitos indisponíveis — é inadequada diante do contexto constitucional e jurisprudencial consolidado nos tribunais superiores. A maioria das violações em massa atinge o consumidor, que, embora titular de direitos disponíveis, é hipervulnerável e depende da atuação de legitimados coletivos para ver seus direitos reparados.

Legitimidade do MP

A jurisprudência do STF, nos Temas 471 (RE 631.111/GO) e 850 (RE 643.978/SE), reconhece expressamente a legitimidade do Ministério Público para atuar na defesa de direitos individuais homogêneos sempre que demonstrada a relevância social da demanda. Portanto, a atuação do MP na fase de liquidação e execução coletiva é perfeitamente compatível com a ordem constitucional.

Spacca

O artigo 97 do Código de Defesa do Consumidor autoriza expressamente a liquidação e execução coletivas por legitimados ativos, inclusive o Ministério Público. Não há preferência legal pela via individual, sendo a efetividade da tutela o critério determinante. Restringir essa possibilidade viola os princípios da duração razoável do processo, da economia processual e do efetivo acesso à justiça (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição).

É necessário indagar: a quem interessa a fragmentação da tutela coletiva? Certamente não interessa às vítimas. Também não interessa ao Judiciário, já sobrecarregado com milhões de ações individuais que poderiam ser resolvidas de forma coletiva e racional. Tampouco interessa à sociedade, que vê seus direitos coletivos fragmentados e enfraquecidos.

Interessa, sim, aos litigantes habituais — grandes agentes econômicos que, por meio de práticas abusivas, lucram com a hipossuficiência, o desconhecimento e a desinformação dos lesados. A limitação da atuação do Ministério Público e demais legitimados no cumprimento de sentenças proferidas em ações coletivas atua em benefício desses interesses econômicos.

Desmonte de proteção aos direitos fundamentais

Trata-se de uma estratégia de desmonte da estrutura coletiva de proteção aos direitos fundamentais. Não é a primeira vez que se observa tentativa de esvaziamento dos instrumentos de tutela coletiva. Os Temas 499 e 1.075 da Repercussão Geral enfrentaram tentativas semelhantes, e a Suprema Corte reafirmou, com firmeza e técnica jurídica, a centralidade da proteção coletiva na concretização da dignidade da pessoa humana.

A Constituição orienta para a máxima efetividade da tutela coletiva. Permitir que o Ministério Público promova a liquidação e execução coletiva de sentenças é ampliar o acesso à justiça, reduzir a fragmentação da demanda, otimizar o uso do sistema Judiciário e garantir resultados concretos para milhares de vítimas que, isoladamente, sequer teriam condições de judicializar seus pleitos.

Como questiona o ministro Alexandre de Moraes em seu voto: “A quem aproveitaria a inação do Ministério Público, negando-se-lhe a legitimidade para buscar a concretização de direitos de especial relevância social já reconhecidos em sentença genérica?” (voto antecipado em sessão virtual, ainda não juntado aos autos).

A resposta é evidente: somente ao causador do dano. Dessa forma, o julgamento do Tema 1.270 pelo STF deve reafirmar a jurisprudência protetiva do sistema de tutela coletiva, assegurando a legitimidade dos entes autorizados — em especial, do Ministério Público — para promover a liquidação e execução coletiva de sentença. Tal reconhecimento é essencial para preservar a integridade do microssistema coletivo, garantindo sua efetividade como instrumento de promoção da justiça, de racionalização do processo e de proteção dos direitos fundamentais em uma sociedade plural e desigual.

Ao reafirmar esse papel, a Corte Constitucional contribuirá para a consolidação da tutela coletiva como um dos pilares do Estado democrático de direito no Brasil, comprometido com o acesso amplo, célere e eficaz à Justiça.

Autores

  • é advogada, sócia-fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados, diretora de Proteção de Dados dos Segurados do INSS do IEPREV, membro do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais e presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva.

  • é doutor em processo civil pela USP e professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) e conselheiro científico do Instituto Defesa Coletiva.

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