Prisão de MC Poze do Rodo e as novas presepadas do poder punitivo
10 de junho de 2025, 8h00
Música, contracultura e poder

Hoje vamos falar de música. E de processos de criminalização. E de arte. E de mais um montão de coisas. A relação entre arte e poder é uma questão perene da filosofia e da criminologia. Nietzsche já dizia que só a arte torna a vida suportável. Ao contrário da ciência, a arte não tem método, daí a sua beleza. A arte lida bem com terraplanismos. Que o diga Salvador Dali. Certa feita um médico disse que cloroquina era bom para Covid. Nossa sugestão foi que ele deveria pintar um quadro com isso.
O produto da arte é um fast food de sentido. Roland Barthes, no clássico Mitologias, escreveu mais de 10 páginas sobre uma propaganda de sabonete. E tudo isso fica ainda mais fantástico quando nos valemos da lupa da Criminologia Cultural para entender melhor as representações cotidianas da arte como instrumento de crítica e de resistência ao controle social. Tem muita literatura sobre o assunto [1].
Nosso recorte recairá sobre a música. O que há em comum entre o verso All I’m askin’ is for a little respect when you get home, eternizado na voz de Aretha Franklin em sua releitura de Respect (de Otis Redding), e Traição uma hora tem volta, ela vem e não bate na porta, da canção Quem Traiu Levou, de Gustavo Lima? Não, não é uma vírgula faltando no título. É que ambos cantam sobre algo que lhes aflige. Aretha usou o microfone para bradar contra a segregação racial. Gusttavo Lima deve estar às voltas com um chifre. Ambos usam a arte como meio de suportar angústias suas e alheias.
A música sempre foi uma arma contra a opressão. O racismo está nas estranhas do blues. Foi um longo processo a aceitação de que um branco estivesse autorizado a cantar uma música de Robert Johnson, e com razão: somente quando a segregação virou uma pauta marronizada é que, por exemplo, Elvis Presley foi autorizado a pular a janela do pub na Beale Street, em Memphis, para conviver com B.B. King, Albert King, Rufus Thomaz e tantos outros.
O mundo sempre foi importunado pela música. Após quatro estudantes serem mortos em Kent State, durante um protesto contra a Guerra do Vietnã, Neil Young compôs Ohio, dizendo: Tin soldiers and Nixon coming. Uma obra prima que possui uma versão ainda mais apimentada no medley com Machine Gun (Jimi Hendrix), entoado pelos The Isley Brothers – uma ópera retratando os gemidos de sofrimento da época. Pode-se dizer que Woodstock foi um espinho na garganta de Nixon. Esse mesmo, que é o precursor da “guerra às drogas”, uma cartilha ridícula que o mundo ainda teima em seguir. This is America / Don’t catch you slippin’ up, provoca Childish Gambino.
No Brasil, a genialidade de Chico Buarque nos brindou com Cálice, um hino contra a ditadura. Geraldo Vandré (Prá não dizer que não falei das flores), João Bosco (O bêbado e o equilibrista) e tantos outros clamavam pelo mesmo despertar crítico da classe média brasileira (sempre ela).
A pauta pode ser atualizada, mas jamais calarão o poder da crítica pela arte. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, disparou O Rappa. Cês diz que nosso pau é grande / Espera até ver nosso ódio, provoca Emicida. Os clássicos Homem Invisível, Mágico de Oz e Negro Drama, dos Racionais MC’s, são uma cantiga de ninar perto das letras do Facção Central. Quer pensar um pouco sobre misoginia? Então ouve Todxs Putxs, de Ekena; um soco no estômago.
Giremos agora o norte magnético para a relação entre música e drogas. Bezerra da Silva foi preso diversas vezes para “averiguações”. Não passou ileso quando compôs Tem Coca aí na geladeira, com um dos versos dizendo: Só porque o samba era no morro ele caguetou os irmão. Mais honesto foi o motivo da prisão dos integrantes do Planet Hemp em 1997, sob a acusação ostensiva de apologia às drogas. Afinal, quem é que joga fumaça para o alto? Gabriel o Pensador e Lulu Santos até que se saíram bem com o Cachimbo da Paz. Talvez porque seu público seja mais branquelo.

Esses exemplos bastam para compreendermos o barulho que a arte faz no ouvido do poder. Chega a ser divertido, no sentido tragicômico, a repetição da história, ou melhor, da farsa. Insegurança e autoritarismo andam juntos. Estruturas democráticas sólidas lidam bem com a crítica, pela mesma razão que pessoas bem resolvidas aceitam com facilidade qualquer discordância. O problema é quando a incoerência é convidada a sambar (sic) com a dúvida, com o questionamento. Não vai ter dança. Vai rolar fuzuê no baile.
Essa é a aproximação que temos de fazer com a prisão de MC do Rodo. A obra dele não era conhecida por nós. Após pesquisarmos, observamos que suas músicas não integrariam nossa playlist. Mas talvez não nos atraia porque nosso local de fala é outro. É mais branco. Nunca passou um helicóptero da polícia no nosso bairro disparando uma metralhadora. Aqui perto de casa tem escola e postos de saúde. O muro é alto, protegido por cerca eletrificada. Volta e meia o Estado se faz presente de alguma forma. Por isso é que a complexidade do funk, uma representação do movimento hip-hop, é difícil de ser entendida por quem não vive no morro. Ora, visitemos, então, Pasárgada, como fez Boaventura Santos.
O ponto é: as letras das músicas de MC Poze do Rodo podem ser consideradas apologia ao crime? Estamos diante de uma crítica democrática válida, como ocorreu com músicas que bradavam contra guerra, racismo e outros tipos de preconceito? Shows em locais dominados por facções criminosas teriam relevância penal? Enfim, levando a provocação ao extremo, o caso não seria similar ao gênero musical de Black Metal NSBM, que divulga músicas com letras de conteúdo nazista? [2]
A acusação
A decisão que decretou a prisão de MC Poze, assim como a liminar do Habeas Corpus, não estão disponíveis para acesso público. Tramitam em sigilo. Mas não para a imprensa, claro. Faz parte do processo de espetacularização do poder punitivo esse tipo de artimanha: publica-se seletivamente para angariar likes e prejulgar os fatos. Só que dessa vez o tiro parece ter saído pela culatra.
Iremos nos basear naquilo que foi divulgado na rede.
A prisão do MC foi justificada por suspeita de envolvimento com facções do tráfico de drogas (Comando Vermelho) e apologia ao crime. Pela polícia, foi dito que os shows de Poze são estrategicamente utilizados pela facção “para aumentar seus lucros com a venda de entorpecentes, revertendo os recursos para a aquisição de mais drogas, armas de fogo e outros equipamentos necessários à prática de crimes”. Além disso, “a Polícia Civil reforça que as letras extrapolam os limites constitucionais da liberdade de expressão e artística, configurando crimes graves de apologia ao crime e associação para o tráfico de drogas” [3].
Ora, que bela fundamentação. Se o MC faz shows em locais controlados pelo CV, então o MC colabora para o lucro do CV e para a aquisição de drogas. Por que esse argumento não vale para o presidente da Ambev, que fornece bebida no mesmo local? Ou, quem sabe, para o dono do Armarinho São João, que pendurou uma faixa de patrocínio no palco?
Todos esses elementos, uma vez levada a relação de causalidade ao extremo, também contribuem para o lucro do CV. Seria o mesmo que culpar a cama pelo adultério. Aliás, a omissão do Estado em ocupar espaços públicos controlados por facções também colabora para o lucro. Então que tal colocamos o Governador e o Prefeito para dentro dessa treta?
Mas a pérola vem em seguida. O MC foi preso, algemado, retirado de casa sem camisa e com os pés descalços. Um verdadeiro espetáculo da Polícia. Ao chegar no presídio, foi compelido a responder um questionário que, dentre outras perguntas, o obrigava a indicar se pertencia a alguma facção criminosa e a qual. Caso contrário, seria largado aos crocodilos. A sobrevivência momentânea o levou a declarar vínculo com o Comando Vermelho. Vale olhar o prontuário:

Poze assinalou CV. Logo, ele tem ligação com a facção. Mas a notícia disse: não se trata de uma confissão de culpa. É só para evitar conflitos [4].
Só rindo, mesmo. É de se admirar que a imprensa não faça um juízo crítico dessa informação (na verdade, não faz porque está seguindo à risca a cartilha americana da guerra contra as drogas). O Estado não consegue eliminar a presença das facções no morro e nos presídios. E agora o Estado quer que alguém que more no morro controlado pelo CV não possa ter qualquer simpatia pela facção? Apologia ao crime é a necessidade de exigir que alguém que ingressa no sistema carcerário tenha de optar para qual lado criminoso deseja ir. Imaginem o pavor de quem entra lá sem pertencer a nada disso.
A polícia também divulgou um vídeo em que um espectador do show empunha uma metralhadora enquanto o MC canta no palco. Ora, por que alguém é filmado tranquilamente nesse momento? Porque o Estado não está presente no local. Um amigo comunista disse certa feita ser favorável a armar toda a população; inclusive o MST. Aí teríamos igualdade material na treta. Não dá para negar a coerência do argumento.
A ação da polícia do Rio nos faz lembrar daquele mecanismo de defesa do ego chamado projeção, muito presente na galera homofóbica. O sujeito se depara com alguém ou uma situação com a qual seu inconsciente se identifica. Para suportar a culpa resultante dessa identificação, ele projeta sua ira para aquela pessoa ou aquela situação com a qual ele se identificou.
Na projeção, o agressor, no fundo, está agredindo a si próprio. Homofóbicos tendem a ter sua sexualidade mal resolvida e, para lidar com isso, projetam sua raiva contra um LGBTQIAPN+. É mais ou menos o que a polícia carioca fez: projetou sua (re)ação para cima do MC porque, na verdade, precisa superar a culpa pela situação por ele vivenciada. Ainda mais quando um MC ousou ganhar dinheiro, ficar rico, ostentar carrões. Preto e favelado não podem ter isso.
E as letras das músicas? Vamos lá.
Em Talvez, a letra fala na chacina do Jacarezinho e no assassinato de Marielle Franco:
“No morro do 18, vários não passou dos quinze/ O medo tá assombrando o povo que vem da Rocinha/ Mais de quinze morto pela chacina/ Presente do Dia da Mãe é ter o filho morto pela esquina/ E hoje não tem final feliz porque mais um se foi/ Político safado protegido pela lei/ O galo canta, mas não canta mais no Cantagalo/ Quem mandou matar Marielle? Até agora eu não sei.”
Em A Cara do Crime (Nós Incomoda), ele canta:
“É o Poze do Rodo/ A cara do crime/ Ela fala que quer crime e eu sou criminoso/ Ela é da Zona Sul e eu sou cria do Rodo/ Ela fala que me ama, mas não me engana/ Que vagabundo nato não se apaixona.”
Em Eu fiz o jogo virar, tá escrito:
“Eles querem me parar/ É difícil me parar/ Sou o Poze do Rodo, o famoso trem-bala/ Sou o trem do RJ, a Mainstreet é a firma/ Se tentar contra a tropa, a Glock cospe trinta”.
Só mais um exemplo, mais picante. Em Tropa do Genereal, o MC fala:
“Os TCPuta tá peidando pro bloco dos cria
Nós odeia ADA e TCP
Desde menor sou Comando, nós é relíquia
Trem bala dos manos
Com os fuzil tudo na pista, ah, ah, ah”
A polícia disse que “as letras enaltecem o uso de armas de grosso calibre e o uso de drogas, além de fomentar guerras e disputas territoriais com facções criminosas rivais.” [5] Não, meu caro delegado. As letras retratam o que ocorre no morro. É isso que se passa lá em cima. Façamos uma pesquisa por lá perguntando se a população confia mais no CV ou na polícia. Que resultado vocês acham que irá surgir? As letras são uma crítica à ausência do Estado. Ou melhor, à presença violenta e seletiva do Estado.
São um grito de revolta contra omissão, corrupção e execuções. Não estamos dizendo que facções não tenham uma orientação criminosa. O ponto é percebermos que o Estado está agindo de forma tão criminosa quanto as facções. Uma relação autofágica que dá lucro a ambos. E votos. Combater o tráfico faz a roda do poder seguir girando, apesar das consequências desastrosas que daí resultam. Bobo é o povo que não se dá conta disso e segue pensando de acordo com a cartilha.
Entendeu agora o que MC Poze tem em comum com Nietzsche, Aretha Franklin, Neil Young, Bezerra da Silva e os demais citados ali em cima? Todos usam a música para criticar assimetrias sociais. Não é o caso de Gusttavo Lima. Esse fala de chifre, uma paródia cotidiana que, quando muito, retrata uma tristeza, mas não uma distorção social. Por isso é que o pessoal da extrema direita adora Gusttavo Lima e detona o funk.
No fundo, a prisão de MC Poze é a representação perfeita de um poder punitivo seletivo, preconceituoso, desigual, que se torna arbitrário exatamente para camuflar sua própria fragilidade. Enquanto o problema das drogas seguir sendo tratado como objeto de repressão penal — e não como um problema de saúde pública, como seria o correto — seguiremos testemunhando prisão de artistas ao argumento de que sua obra desnuda a triste e frágil essência do poder punitivo.
Ah, faltou explicar por que as músicas do MC Poze estão no contexto legítimo da liberdade de expressão, ao contrário das músicas do movimento nazista NSBM. Mas isso será objeto da nossa próxima coluna.
________________________________________________
[1] Por exemplo: Criminologia Cultural e Rock (editora Tirant lo Blanch), de José Antônio Gerzson Linck, Marcelo Mayora, Moysés Pinto Neto e Salo de Carvalho.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!