Opinião

Como é o direito de uso de dispositivos tecnológicos apreendidos

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10 de junho de 2025, 18h27

Tramita no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário com Agravo — ARE n° 1.042.075 RG (Tema: 977), cuja discussão é em torno da apreensão de dispositivos informáticos (aparelhos celulares — smartphones) e o acesso aos dados armazenados nesses equipamentos, em síntese:

[…] há duas principais hipóteses: 1ª) a necessidade de reserva jurisdicional e de uma decisão fundamentada (art. 5°, XXXV e 93, IX da CF, art. 315, § 2°, do CPP, art. 10, § 1° e art. 22 do Marco Civil da Internet Lei n° 12.965, de 23 de abril de 2014, e art. 3° e 5° da Lei n° 9.296, de 24 de julho de 1996); 2ª) autonomia funcional das polícias para acessar os atinentes dados, prescindindo de autorização judicial (art. 144, da CF, art. 6°, III, do CPP) (Grokskreutz, 2025).

A autonomia funcional para realizar a coleta e a apreensão dos equipamentos encontra fundamento na persecução penal (artigo 6°, II, e artigo 158-B, IV do Código de Processo Penal). Entretanto, uma faceta deve ser melhor observada e gira em torno de verificar se o uso do aparelho pelo setor científico ou pericial das polícias judiciárias reverbera no direito de propriedade da pessoa investigada.

Diante desse contexto, levantou-se a seguinte indagação: a utilização dos dispositivos informáticos (aparelhos telefônicos celulares — smartphones) pelos departamentos científicos ou periciais das polícias judiciárias para o procedimento de acesso aos dados dos investigados decorre da autonomia funcional das polícias ou se relaciona com o direito de uso como espécie do direito de propriedade e torna imprescindível a reserva jurisdicional?

Da diferença entre coleta, apreensão e a perícia para o acesso aos dados armazenados

O artigo 6°, inciso II do Código de Processo Penal (CPP) permite às polícias judiciárias “apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais”, e o artigo 118 especifica que, “antes de transitar em julgado a sentença final, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo” (Brasil, 1941), e entre os itens que podem ser apreendidos, estão os dispositivos informáticos (aparelhos telefônicos celulares — smartphones).

Essa apreensão deve seguir todas as regras procedimentais da cadeia de custódia da prova, e o ato de apreender decorre da coleta, conforme dicção do inciso IV do artigo 158-B do CPP, in verbis: “coleta: ato de recolher o vestígio que será submetido à análise pericial, respeitando suas características e natureza” (Brasil, 1941).

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Nessa quadra, o ato de apreensão que é oriundo da coleta não se confunde com a perícia administrativa que será realizada e que utilizará os respectivos aparelhos pelo setor científico ou pericial das polícias judiciárias, nos moldes do artigo 159 e seguintes do mesmo codex. Ou seja, a perícia em comento utilizará o equipamento tecnológico apreendido, visto que será necessário ativá-lo, acessá-lo, haverá corrente elétrica, podendo haver conexão com outros dispositivos, softwares, enfim, haverá seu manuseio e uso como se proprietário fosse.

Do direito de uso (jus utendi) como espécie do direito de propriedade

O direito de propriedade está no rol dos direitos fundamentais e humanos civis de primeira geração/dimensão, que impõe aos particulares e ao próprio Estado uma obrigação negativa, no sentido de se abster de qualquer conduta que possa prejudicá-lo, ante a imperativa previsão do artigo 5°, caput e XXII da Constituição (Brasil, 1988), artigo 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA, 1969) e artigo 17 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966).

Em nível infraconstitucional, o Código Civil Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002, define o direito de propriedade em seu artigo 1.228, e é claro ao prever a “faculdade de usar”, que é especificada pela conjugação dos artigos 1.412, 1.423 e 1.394 (Brasil, 2002).

Significa que, entre as suas espécies e “composição” (RE n° 59704) (Brasil, 1966), está o direito de uso (jus utendi) da coisa (Nery Junior; Nery, 2014, p. 1470), que obviamente permite ao seu titular se valer das finalidades de cada bem móvel ou imóvel sem ser embaraçado por outrem, e salvo os desdobramentos do princípio da função social (artigo 5°, inciso XXIII da Constituição e artigo 421 do Código Civil):

O direito de propriedade é classificado como direito fundamental cuja proteção em relação ao Estado representa uma garantia de status negativo “[…] reflete um direito absoluto porque permite o gozo e fruição sem a intromissão de terceiros” (Medina; Araújo, 2014, p. 767-768).

Por via de consequência, eventuais avanços indevidos sobre a propriedade podem se subsumir aos diversos delitos tipificados como sendo “contra o patrimônio”, segundo o título II (artigo 155 ao artigo 183-A) da parte especial do Código Penal e, no caso de invasão à imóvel se realizada por agentes públicos, pode ser configurar como abuso de autoridade conforme legislação especial (artigo 22) (Brasil, 2019).

Salienta-se que, nesse sentido e sem adentrar nas especificidades de cada instituto, a utilização de um bem móvel ou imóvel à revelia do proprietário pode se configurar como violação de sua posse direta e se amolda ao delito de esbulho tipificado no artigo 161, § 1°, inciso II do Código Penal (Brasil, 1941), que é também considerado como um ilícito civil ensejador de ações possessórias, conforme dicção do artigo 1.210 do Código Civil (Brasil, 2002) e artigo 560 do Código de Processo Civil (Brasil, 2015).

Esse complexo formado pelo bloco de constitucionalidade e pelas previsões infraconstitucionais demonstra que a utilização da propriedade por terceiros, pode ocorrer apenas com autorização do proprietário ou por decisão judicial, caso contrário, tal modus operandi se configurará como um ilícito civil e penal violador do direito de propriedade.

No caso dos dispositivos informáticos (aparelhos telefônicos celulares — smartphones), esses possuem diversas finalidades, mas, indubitavelmente, o armazenamento de dados é uma das principais, pois, arquiva comunicações, fotos, vídeos, textos, histórico de acessos e pesquisas, em suma, constrói um banco de dados privado, e por consectário lógico do direito de propriedade o seu uso só pode ocorrer por meio de autorização de seu proprietário ou por decisão jurisdicional.

Do não cabimento da requisição administrativa

No âmbito do direito administrativo, o direito de propriedade é mitigado por conta do instituto da requisição administrativa, que encontra permissivo constitucional no inciso XXV do artigo 5° da Constituição, que assim dispõe: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano” (Brasil, 1988). Na ADI n° 6.362 o STF o refinou:

A requisição administrativa configura ato discricionário, que não sofre qualquer condicionamento, tendo em conta o seu caráter unilateral e autoexecutório, bastando que fique configurada a necessidade inadiável da utilização de um bem ou serviço pertencente a particular numa situação de perigo público iminente, sendo por isso inexigível a aquiescência da pessoa natural ou jurídica atingida ou a prévia intervenção do Judiciário (Brasil, 2020).

Denota-se que a requisição administrativa exige “necessidade inadiável” por conta do “iminente risco público”. Entretanto, a perícia administrativa a ser realizada em dispositivo informático (aparelho telefônico celular — smartphone) não é pautada em tal imediatidade, pelo contrário, é focado em uma atividade minuciosa, que consumirá determinado lapso temporal dos expertos envolvidos que elaborarão um laudo pormenorizado, motivo pelo qual, não há como correlacionar a requisição administrativa com o procedimento pericial de acesso aos dados na investigação criminal.

Da reserva jurisdicional decorrente do devido processo legal, contraditório e ampla defesa

De outro lado, a propriedade possui tríplice proteção de garantias fundamentais, versa-se sobre os princípios do devido processo legal, contraditório e a ampla defesa, todos com suporte no art. 8.2 da CADH (OEA, 1969) e artigo 14 do PIDCP (ONU, 1966) que se manifestam durante o processo penal judicial.

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O devido processo legal encontra-se expresso no artigo 5°, inciso LVI da Constituição, que assim dispõe: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Ora, o uso de dispositivo informático (aparelho telefônico celular — smartphone) durante o procedimento pericial realizado pelos órgãos investigativos, é uma forma de privação do proprietário, que não poderá se valer de um bem imóvel enquanto esse for útil para às diligências policiais, por isso a necessidade de um processo cautelar que leve a uma decisão judicial fundamentada.

Do mesmo modo, o princípio da ampla defesa, artigo 5°, LV, da Constituição (Brasil, 1988) autoriza o suspeito ou acusado de um delito a valer-se da denominada autotutela negativa e assim não produzir prova contra si mesmo, nos moldes trazidos pelo princípio do nemo tenetur se detegere, tornando necessário o “aviso sobre direito cibernético-digital de proteção de dados” (Grokskreutz, 2025), a se valer de todos os mecanismos defensivos que estiverem previstos legalmente, ter acesso à defesa técnica e a autotutela positiva mediante a apresentação de sua versão dos fatos.

Por fim, o princípio do contraditório, igualmente previsto no dispositivo citado, garante que o acusado de um crime tenha a oportunidade de não só conhecer, mas também de se manifestar e de participar de todos os atos processuais, especialmente os probatórios, e somente após essa formalidade é que será possível impedi-lo de usar seus bens, entre os quais, os já citados dispositivo informático (aparelho telefônico celular — smartphone).

Significa que uma questão patrimonial em torno do uso de um bem móvel, como é o caso dos aparelhos acima aludidos, deve imperativamente ser objeto de autorização do proprietário ou de procedimento ensejador de decisão fundamentada pelo Poder Judiciário, visto que o cidadão não poderá ser tolhido de seu bem móvel e vê-lo ser usado pelos agentes públicos durante a perícia administrativa, antes de uma caminhada processual mínima em que pôde valer-se do devido processo legal, ampla defesa e contraditório.

Conclusões

Portanto, os direitos e garantias fundamentais e humanas supracitados permitem concluir que não há fundamento no bloco de constitucionalidade para se falar em autonomia funcional das polícias judiciárias para o uso dos dispositivos informáticos (aparelhos telefônicos celulares — smartphones) durante a perícia administrativa de acesso aos dados. Porquanto, se trata de um direito de propriedade  (jus utendi), que veda o uso por terceiros, como é o caso dos agentes públicos, sem autorização do proprietário ou do Poder Judiciário, e por não haver respaldo no instituto da requisição administrativa, e existir os limites processuais decorrentes dos princípios do devido processo legal, ampla defesa e do contraditório, resta confirmada a imprescindibilidade da reserva jurisdicional para o uso dos aparelhos e o acesso aos dados neles armazenados.

Consequentemente, se demonstra que a utilização dos dispositivos informáticos (aparelhos telefônicos celulares — smartphones) pelos departamentos científicos ou periciais das polícias judiciárias para o procedimento de acesso aos dados dos investigados, não decorre de autonomia funcional das polícias, mas é sim relacionado ao direito de uso (jus utendi) como espécie do direito de propriedade tornando imprescindível a reserva jurisdicional, o que pode ser considerado pelo Supremo Tribunal Federal ao deliberar especificamente sobre a fixação da tese de repercussão geral do ARE n° 1.042.075 (Tema: 977).

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Referências

Brasil. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Disponível aqui.

Brasil. Decreto-lei n° 2.848, de 07 de dezembro 1940 – código penal. Disponível aqui.

Brasil. Decreto-Lei n° 3.689, de 03 de outubro de 1941 – código de processo penal. Disponível aqui .

Brasil. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – código civil. Disponível aqui.

Brasil. Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015 – código de processo civil. Disponível aqui

Brasil. Lei n° 13.869, de 05 de setembro de 2019 – Lei de abuso de autoridade. Disponível aqui

Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). RE 59704, Relator(a): LAFAYETTE DE ANDRADA, Primeira Turma, julgado em 02-06-1966, DJ 15-06-1966 PP-02104  EMENT VOL-00659-02 PP-00748 RTJ VOL-00037-01 PP-00168.

Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). ADI 6362, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 02-09-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-288  DIVULG 07-12-2020  PUBLIC 09-12-2020.

Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). ARE 1042075 RG (Tema: 977), Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 23-11-2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-285 DIVULG 11-12-2017 PUBLIC 12-12-2017.

Grokskreutz, Hugo Rogério. Do aviso sobre direito cibernético-digital de proteção de dados como reflexo do ARE 1.042.075. In. Consultor Jurídico – CONJUR. 14 de maio de 2025. Disponível aqui.

Medina, José Miguel Garcia; Araújo, Fábio Caldas de. Código civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

Nery Junior, Nelson; Nery, Rosa Maria de A. Código civil comentado. 11ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

Organização das Nações Unidas (ONU). Pacto internacional de direitos civis – PIDCP – de 1966. Disponível aqui.

Organização dos Estados Americanos (OEA). Declaração americana de direitos humanos – pacto de São José da Costa Rica – DADH, de 22 de novembro de 1969. Disponível aqui

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