Exportação que vira importação? Análise do parágrafo 3º do artigo 80 da LC 214
10 de junho de 2025, 17h24
Em artigo recente, procuramos evidenciar inconsistências observadas no artigo 80 da Lei Complementar (LC) 214/2025, responsável por disciplinar os contornos da imunidade constitucional de IBS e CBS para a exportação de bens imateriais e serviços. Naquela ocasião, não foi possível esgotar o apontamento de todas as inconsistências que foram observadas, tendo remanescido uma questão especificamente relacionada ao parágrafo 3º do artigo 80. Agora é a oportunidade de detalhar esse ponto.
Para tanto, vale rememorar que, nos termos do artigo 80 da LC 214/2025 a caracterização de uma exportação de bens imateriais e serviços envolve dois critérios: (1) o fornecimento deve ser realizado para um residente ou domiciliado no exterior e (2) o consumo deve ocorrer no exterior. A partir de uma análise sistemática da LC, é ainda possível indicar um outro requisito implícito, relacionado à condição do fornecedor: (3) é preciso que o fornecimento seja realizado por um residente ou domiciliado no Brasil.
Os critérios expressos (1) e (2) indicam a necessidade de elementos extraterritoriais na operação, enquanto o critério implícito (3), extraído de uma interpretação sistemática da LC, reforça a existência de uma vinculação com o território nacional, representada pela presença do fornecedor no país. Afinal, caso o destinatário, o consumo e o fornecedor estivessem todos localizados no exterior, faltaria qualquer vinculação territorial com o Brasil apta a justificar o exercício da jurisdição tributária. A falta de tributação, nesse caso hipotético, não decorreria de norma de imunidade aplicável às exportações. Para que essa norma seja aplicável, pressupõe-se algum tipo de vinculação com o país, no caso, a presença do fornecedor no Brasil.
Sendo assim, haverá exportação de bens imateriais e serviços se o contribuinte brasileiro proceder com fornecimento para um não residente, com consumo no exterior. Nessa definição, um ponto relevante envolve a definição de consumo, que, segundo o parágrafo 6º do artigo 80, deve ser compreendida com base no parágrafo 1º do artigo 64 (voltado a disciplinar as importações de bens imateriais e serviços). Significa dizer que o consumo, nesses casos, deve ser entendido como “a utilização, a exploração, o aproveitamento, a fruição ou o acesso”.
Essa definição aparenta ser genérica e excessivamente abstrata, impondo, em razão disso, possíveis dificuldades práticas para determinar, diante de casos concretos, ocorre o consumo do bem imaterial ou serviço. Aparentemente ciente disso, a LC 214/2025 parece ter procurado uma solução: o parágrafo 2º do artigo 80 contempla presunção de que o local do consumo será o “domicílio do adquirente no exterior” na hipótese em que não seja possível “identificar o local do consumo pelas condições e características do fornecimento”. Destaca-se que o adquirente correspondente àquele obrigado ao pagamento ou a qualquer outra forma de contraprestação pelo fornecimento de bem ou serviço.
Diante disso, é possível reformular os três critérios apresentados acima de modo a trazer a seguinte indicação, aplicável aos casos em que não seja possível determinar o local do consumo: (1) o destinatário (a quem o fornecimento é realizado) deve ser residente ou domiciliado no exterior e (2) o adquirente (aquele responsável por pagar a contraprestação) deve ser residente ou domiciliado no exterior, e (3) o fornecedor deve necessariamente ser residente ou domiciliado no Brasil. Observados esses critérios, a operação com bens imateriais e serviços será classificada como uma exportação, abarcada, portanto, pela imunidade de IBS e CBS.
É neste contexto que o parágrafo 3º do artigo 80 se insere. Conforme prevê, “caso o consumo de que trata o § 2º ocorra no” Brasil, a operação será tratada como importação de serviço ou bem imaterial. Apesar da referência ao parágrafo 2º, que trata de consumo no contexto de uma presunção, a ideia veiculada nesse parágrafo 3º parece ser singela: havendo consumo no Brasil, não haveria exportação, muito embora o destinatário do fornecimento esteja localizado no exterior.

Até aqui, não há qualquer reparo no racional. Afinal, se o caput do artigo 80 exige consumo no exterior, a constatação de que o consumo ocorreu no Brasil descaracteriza a ocorrência de exportação. O problema surge na reclassificação proposta pelo parágrafo 3º do artigo 80: em vez de simplesmente afastar a aplicação da imunidade, o dispositivo legal passa a tratar a operação como uma “importação”, com necessidade expressa de observar o artigo 64 da LC. Ou seja, não contente em dizer que a operação é uma “não exportação”, o parágrafo 3º passou a tratá-la como uma importação.
Imagine, por exemplo, uma empresa brasileira que presta consultoria a uma multinacional sediada no exterior, mas parte do serviço acaba sendo utilizado por colaboradores da multinacional em território brasileiro. Ainda que o contrato e o pagamento sejam realizados com o exterior, a operação poderia ser indevidamente reclassificada como importação, sujeitando-se a obrigações e tratamentos tributários incompatíveis com a realidade da operação.
Essa consequência não possui qualquer sentido lógico e cria dificuldade práticas para a aplicação de diversas outras previsões da LC 214/2025. Existem duas razões que sustentam essa afirmação.
Imprecisão conceitual
Primeiramente, o fato de o consumo ocorrer no Brasil não transmuta uma exportação e importação, na medida em que esse critério não é o único que diferencia essas espécies de operações. Como visto, a caracterização da exportação depende de um fornecedor no Brasil, de um destinatário no exterior e de consumo igualmente no exterior. Por outro lado, a importação envolve um fornecedor no exterior, um adquirente ou um destinatário no Brasil e consumo do bem ou serviço também no Brasil, conforme se extrai do artigo 64 da LC. Todos os critérios que delimitam uma exportação possuem uma clara contraposição em relação aos critérios que definem uma importação. Logo, seria preciso alterar completamente todos esses critérios para que uma exportação “se transformasse” uma importação.
Ora, na importação, o fornecedor está necessariamente localizado no exterior, já que, caso contrário (ou seja, estando no Brasil), a operação será puramente doméstica. O artigo 80, parágrafo 3º, por outro lado, trata de situação em que o fornecedor está necessariamente localizado no Brasil. De outra forma, a operação será integralmente realizada no exterior, escapando da jurisdição tributária brasileira. Dúvidas quanto ao local do consumo não modificam esse fato. Logo, essas dúvidas quanto ao consumo, no limite, podem converter uma aparente exportação em uma operação doméstica, sujeita às regras gerais de incidência de IBS e CBS.
Essa constatação já demonstra uma imprecisão conceitual do parágrafo 3º do artigo 80. Tal imprecisão por si só já afronta a legalidade tributária que, em uma dimensão verdadeiramente principiológica, exige clareza e precisão na definição das hipóteses de incidência dos tributos, sob pena de gerar insegurança jurídica e dificultar o cumprimento voluntário das obrigações fiscais.
No entanto, a segunda questão a ser destacada envolve um problema efetivamente prático: ao determinar que a operação será tratada como importação, o parágrafo 3º atrai diversas previsões específicas e distintas em relação ao tratamento aplicável a uma operação doméstica. Por exemplo, o artigo 64, parágrafo 5º, inciso V, determina que o contribuinte de IBS e CBS na importação será o “adquirente”. Todavia, esse dispositivo pressupõe – considerando os próprios critérios que informam uma importação – que o fornecedor é um residente ou domiciliado no exterior. Novamente, o contexto contemplado pelo parágrafo 3º do artigo 80 demanda um fornecedor no Brasil, criando um conflito em relação aos dispositivos legais que disciplinam as importações.
Existem, ainda, diversas outras previsões específicas para tributação de importações que não encontram aplicação adequada para a situação de que trata o parágrafo 3º do artigo 80. É nítido que o “reenquadramento” da operação como uma importação é inadequado, tanto por uma questão lógica quanto pela necessária manutenção da sistematicidade das previsões da LC 214/2025. Sua literalidade, deve, portanto, ser superada, em benefício de uma interpretação minimamente sustentável, que preserve a lógica do sistema tributário e evite distorções práticas.
Em síntese, e mantendo os critérios trazidos no artigo 80 da LC 214/2025, não havendo consumo no Brasil de um bem imaterial ou serviço (constatado com base quer na regra geral quer na presunção do seu parágrafo 2º), não há possibilidade de caracterizar a operação como uma exportação para fins da aplicação da imunidade de IBS e CBS. A consequência imediata dessa conclusão é considerar a operação como sendo uma operação doméstica.
Naturalmente, essa solução é válida apenas nos casos em que adquirente do bem imaterial ou serviço (aquele responsável pelo pagamento) esteja localizado no Brasil. Caso o adquirente esteja no exterior, haverá dificuldade em determinar qual seria o local da ocorrência do fato gerador (e, consequentemente, os entes competentes para definir a alíquota do IBS), conforme definição do artigo 11 da LC 214/2025. Para tratar dessa outra limitação da disciplina das exportações para fins de IBS e CBS, vale conferir o outro artigo publicado nesta ConJur.
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