Presidente do STF analisa o cenário político e econômico do país
9 de junho de 2025, 17h10
O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, surpreendeu uma plateia de empresários, economistas, jornalistas e advogados com um discurso contundente em que analisou, com profundidade, a conjuntura política e econômica brasileira e internacional no último sábado (7/6). Clique aqui para assistir à íntegra do discurso em vídeo.

O ministro Barroso falou sobre a ‘obsessão negativa’ que reina no país
A palestra foi ministrada no Fórum Esfera 2025, promovido em um hotel no Guarujá (SP), do qual participaram também os presidentes da Câmara dos Deputados e do Banco Central, além de ministros, governadores e empresas que respondem por cerca da metade do PIB brasileiro.
O ministro explicou por que “no Brasil, tudo acaba no Supremo”, em resposta às críticas de que “o tribunal se mete em tudo”. Didaticamente, dissertou sobre a necessidade urgente de uma reforma político-eleitoral em que se adote o voto distrital misto, com listas abertas — o que foi também defendido por outros palestrantes.
Barroso falou da “obsessão negativa” que reina no país ao mostrar o quanto os meios de comunicação têm distorcido o papel do Judiciário, jogando a população contra a magistratura. Em especial, contra os ministros do Supremo — que já não podem sair em público sem a proteção de seguranças.
“O país vive uma onda de obsessão negativa”, disse o presidente do STF, referindo-se à monomania compulsiva de ver interesses escusos por trás de qualquer factoide. “Acontecem muitas coisas erradas no Brasil, mas tem muita gente honesta, tem muita gente íntegra, tem muita gente trabalhando para fazer um país melhor e maior”, criticou. A criminalização de tudo, afirmou, acaba por afastar da vida pública seus melhores quadros.
Leia abaixo o discurso de Barroso:
“Vou falar um pouco sobre o mundo. Um pouco sobre o Brasil, um pouco sobre o Supremo Tribunal. Quero examinar as generalidades e as especificidades que impactam as nossas vidas hoje.
Na primeira parte dessa conversa, faço uma reflexão sobre o que está acontecendo e o que é a revolução tecnológica.
Sobre a substituição da tecnologia analógica pela digital, que permitiu a universalização dos computadores pessoais, a universalização dos telefones celulares e a conexão de bilhões de pessoas pelo mundo pela Internet.
A revolução tecnológica produziu uma nova economia, que é a economia do conhecimento, a economia digital. É preciso analisar o impacto sobre nossas vidas, na vida das empresas, com a virtualização da vida, com a desterritorialização das empresas.
Sobre a passagem da riqueza dos bens físicos para os bens imateriais. Quando jovem, como a maioria de nós aqui, as empresas mais valiosas do mundo, eram as que exploravam petróleo, as que fabricavam automóveis, equipamentos.
Hoje, nenhuma delas, como Esso, Shell, Ford, General Motors, General Electric figuram entre as mais valiosas do mundo —, que são Apple, Amazon, Facebook e Microsoft, talvez, e seus novos nomes.
Portanto, há transformações profundas. Com elas surgiram as plataformas digitais que revolucionaram a comunicação, democratizaram o acesso ao conhecimento, democratizaram o acesso à informação, democratizaram o acesso ao espaço público.
Geraram uma série de benefícios e complexidades, com as quais o mundo inteiro procura lidar. A revolução tecnológica e as plataformas digitais mudaram completamente a escala da comunicação social. Os jornais mais vendidos do Brasil têm cerca de 300 mil assinaturas digitais.
A revista mais vendida do mundo, que é a Economist tem um milhão e meio de assinantes. O jornal mais vendido do mundo, que é o New York Times, tem 10 milhões de assinantes digitais. O Facebook tem 3 bilhões de usuários. O YouTube tem 2 bilhões e meio muitos de usuários. O WhatsApp tem mais de 2 bilhões de usuários. Portanto, há um impacto total sobre a comunicação.
São implicações que exigem regulações. Matéria econômica para uma tributação justa, para proteger direitos autorais, para impedir dominação econômica, para proteger privacidade e, evidentemente, para proteger o mundo de alguns conteúdos que são inaceitáveis.
Não importa se você é liberal, conservador, progressista. Inadmissível ter pornografia infantil na rede. Não pode ter terrorismo. Essa é uma equação que o mundo inteiro está tentando elaborar de uma maneira adequada. Trata-se de regular as redes sociais para proteger liberdade de expressão e impedir que o mundo desabe num abismo de incivilidade.
Esse era o primeiro tema mundial: a revolução tecnológica, que era a terceira revolução industrial. E antes que se concluísse essa terceira revolução industrial, chegou a quarta, a da inteligência artificial. Essa possibilidade de transferência das capacidades humanas para computadores, em matéria de tomadas de decisões e outras habilidades cognitivas.
A inteligência artificial também vem com uma série de promessas e de coisas boas como no processo de tomada de decisão, porque é capaz de processar muito mais informação, com muito mais velocidade e automação. E traz uma série de coisas boas.
Porque a linguagem vai deixar de ser uma barreira. Daqui a pouco, vou poder falar aqui em português e, automaticamente, a minha voz vai sair em hebraico ou mandarim.
Os impactos sobre o Direito: nós hoje utilizamos imensamente inteligência artificial no Poder Judiciário. Na medicina, a revolução não será menor. Há alguma coisa nova debaixo do sol que é a inteligência artificial. Vai mudar ainda mais as nossas vidas.
Com muitos riscos, porque vai impactar o mercado de trabalho. Há o perigo de uso bélico da inteligência artificial. Há o perigo da massificação da desinformação, que é alguém me colocar num vídeo, dizendo coisas que eu nunca disse, sem que seja possível perceber que aquilo é contrafação.
Portanto, também a inteligência artificial vem com muitas promessas boas, mas todos precisamos nos preocupar com que ela não seja capturada pelos maus atores.
Também a inteligência artificial precisa ser regulada. Só que é muito difícil regular a inteligência artificial. É claro que tem que regular, para proteger direitos fundamentais, para a proteção da democracia, para ter uma governança adequada. Porém, a velocidade da transformação dificulta a regulação.
Há projetos no Congresso Nacional para isso. O que eu quero dizer com velocidade da transformação? O telefone fixo que a gente mantinha em uma mesinha com destaque na sala de casa —, que os mais jovens não conhecem —, levou 75 anos para chegar a 100 milhões de usuários.
Telefone celular —, que de acordo com o meu amigo Carlos Ayres Britto, aproxima quem está longe e afasta quem está perto — levou 17 anos. A Internet levou cerca de 8 anos para chegar a 100 milhões. Depois, o chat GPT chegou a 100 milhões de usuários em dois meses. Portanto, essa é a velocidade da transformação com que nós estamos lidando no mundo. Daí, a dificuldade da regulação da inteligência artificial.
E o terceiro e último tema global dessa agenda de todos —, porque é uma reflexão importante —, diz respeito à mudança climática. Uma questão que tem sido negligenciada, mas é definidora do nosso tempo. Estamos jogando as nossas vidas e com as vidas das futuras gerações.
Só que é muito difícil as pessoas se conscientizarem disso e passarem a agir — por muitas razões. Ainda há muito desconhecimento e negacionismo. Apesar de todos os cientistas dizerem que a atuação do homem vai produzir um efeito devastador.
As emissões e as agressões à natureza que se cometem hoje só vão produzir os seus efeitos daqui a 25, 50 anos. Não há um incentivo para a política que, muitas vezes, se move por objetivos de curto prazo, que são os ciclos eleitorais, para efetivamente enfrentar essa questão.
Em terceiro lugar, porque ela exige soluções globais. O que acontece na Amazônia, o que acontece na China, o que acontece nos Estados Unidos impacta o mundo inteiro e não apenas esses países. Há tratados, como o acordo de Paris em vigor. Mas que os países descumprem.
No ano passado, o mundo superou o nível de aquecimento de 1,5°C e as consequências estão começando a ser sentidas — como a seca prolongada na Amazônia, as queimadas no Pantanal e inundações no Rio Grande do Sul ou a devastação de quarteirões inteiros na Califórnia. O planeta está avisando que há algo de errado.
O Brasil tem tudo para ser uma grande liderança ambiental. E nós precisamos investir pesado na transição ecológica para ser uma liderança global nessa matéria. Isso é o que eu queria falar, na velocidade possível, sobre o mundo.
Mas falemos um pouco sobre o Brasil. No topo das preocupações brasileiras, está a questão da segurança. Aonde você vai hoje, a segurança pública disputa com a saúde, a principal preocupação da sociedade brasileira.
É outro tema que tem sido historicamente negligenciado. Inclusive porque parte do pensamento liberal progressista no Brasil associa políticas de segurança pública com repressão e ditadura. Quando, a segurança pública é um valor que não tem ideologia.
Existe uma visão que considero equivocada, de que as principais causas são a pobreza e a desigualdade. Até podem ser, mas quem acompanha a vida, verifica que pobre também precisa de segurança pública.
Portanto, é um equívoco ignorar que o tema é de toda a sociedade — em uma visão mais extremada da vida. A minha ideia de segurança pública — e cheguei a falar com o ministro Lewandowski, mesmo considerando que a política tem muitas circunstâncias.
O projeto que deu certo no Judiciário foi a criação do Conselho Nacional de Justiça. O CNJ tem uma base de dados muito rica sobre o Judiciário brasileiro. Tem um poder correcional sobre o que acontece de errado e é capaz de traçar políticas públicas nacionais relevantes, que depois os judiciários estaduais implementam.
Continuo a achar que essa é uma boa solução para uma política nacional de segurança pública, sem prejudicar a autonomia dos estados. Não pode ser um jogo em que cada um atira a bola para um lado. Lembra um filme do Monty Pyton em que numa corrida de 100 metros, quando dá a largada, cada um corre para um lado.
Uma coordenação nacional, absolutamente indispensável, é um modelo internacional de justiça que deu certo. Minha segunda grande aflição, eu tenho muitas aflições com o Brasil, mas a minha segunda grande aflição diz respeito à educação. Esse continua a ser o grande problema brasileiro. Todo mundo diz que educação brasileira é uma prioridade. Não é. Não é tratado como prioridade. Eu vou usar um exemplo antigo para não politizar a questão.
Quando o presidente Temer assumiu o governo, a grande preocupação era saber que seria o ministro da fazenda, quem ia ser o presidente do BNDES. A educação, todo mundo diz que é prioridade, mas ninguém estava preocupado em saber quem ia ser o ministro da educação!
Verdadeiramente, a educação não é prioridade na vida brasileira e foi isso que nos atrasou na história. A deficiência na educação faz vidas menos iluminadas, trabalhadores menos produtivos e a falta de produtividade é o grande problema brasileiro. Gera elites menos preparadas. Tanto mais que os problemas da educação brasileira já estão devidamente mapeados. Não alfabetização das crianças na idade certa, evasão escolar no ensino médio e a deficiência de aprendizado.
Nos testes internacionais e as crianças brasileiras ficam nos últimos lugares. Portanto, se a educação não for uma prioridade, não conseguiremos avançar. Esse foi o grande trunfo da Coreia do Sul. Em 1960, o Brasil tinha duas vezes e meia o PIB per capita da Coréia do Sul. Hoje, o Brasil tem 1/3 do PIB per capita da Coréia. O investimento na educação está entre os fatores que fazem a maior a maior diferença.
Acrescento, embora não estivesse aqui na minha lista, o tema da reforma política. Invoco o crédito de, desde 2006, ter escrito um trabalho defendendo a implantação do voto distrital misto, em lista aberta. Oito anos depois, acontece um impeachment, o que teria nos poupado de muitas chateações, com essa mudança.
O presidente Gilberto Kassab, que é um craque, foi a primeira pessoa que me visitou como presidente do nosso Tribunal Superior Eleitoral. Sentou na minha frente e disse assim: “Eu não vim pedir nada, eu vim me oferecer o que o senhor precisa que eu faça, para poder ajudar”.
Brinquei com ele: vamos implantar o voto distrital misto. E ele respondeu, vamos esperar um pouco para ver o impacto da cláusula de barreira, da proibição de coligações e eleições proporcionais. Pois agora eu acho que o país está mais do que maduro para mudarmos o sistema eleitoral. Temos um dos piores sistemas eleitorais na eleição para a Câmara de Deputados, que é o voto proporcional em lista aberta. É caríssimo, tem baixa representatividade, não facilita a governabilidade.
No voto proporcional, em lista aberta, o eleitor vota em quem ele quer. Escolhe qualquer candidato daquelas listas e vota. Ele vota em quem ele quer, mas elege quem ele não sabe. Porque aquele voto vai para o partido, e são os mais votados do partido que entram na Câmara dos Deputados. Menos de 5% dos deputados são eleitos com votação própria. Mais de 95% dos deputados são eleitos pela transferência de votos que foram dados a outros deputados.
Portanto, temos um sistema em que o parlamentar não sabe exatamente por quem ele foi eleito e o eleitor não sabe exatamente quem ele colocou lá. Não tem de quem cobrar e o deputado não sabe a quem prestar contas. Logo, é um sistema que funciona mal e produz um descolamento entre a classe política e a sociedade civil — o que é péssimo porque numa democracia, política é gênero de primeira necessidade.
O sistema distrital misto é um sistema em que o eleitor vota no projeto do presidente, aprovado no Senado. É um compromisso público, na forma de contrato. Vou dar um exemplo: São Paulo tem 35 milhões de eleitores e tem 70 deputados federais. Como funcionaria o sistema distrital misto?
Divide-se o Estado de São Paulo em 35 distritos de, mais ou menos, 1 milhão de eleitores. Cada partido lança seu candidato na disputa daquele distrito, para preencher metade das vagas. A outra metade é preenchida pelo voto partidário. O eleitor vota no candidato do distrito e vota no partido que ele quer ter. No fundo, a eleição é proporcional. Se o partido tiver direito a 20 vagas, vão entrar 20 candidatos. Se já tiverem entrado no distrital, entram 5 da lista.
Por que é uma vantagem? Primeiro: o eleitor passa a saber quem é o parlamentar que representa o seu distrito. Ele tem de quem cobrar. A campanha passa a ser feita para 1 milhão de eleitores e não para 35 milhões de eleitores, num espaço demarcado.
Portanto, fica muito mais barato. O sistema distrital misto desestimula a fragmentação partidária. Pelo contrário. A eleição tende, não necessariamente, senão a um bipartidarismo, ao menos para uma redução de partidos, que se agrupam em blocos.
Portanto, acho que, saltando uma eleição, já estamos maduros para implantar o voto distrital misto. A grande dificuldade é a definição dos distritos. Nos Estados Unidos, até hoje, é definido politicamente. Aqui, a justiça eleitoral teria como fazer isso de uma forma não contaminada politicamente.
Outro tema sobre o Brasil é algo que cala fundo num ambiente como esse: nós ainda não superamos o preconceito contra a livre iniciativa. O país ainda é viciado em “Estado”. O Estado é muito importante para políticas sociais, mas precisamos superar um preconceito que vem do tempo em que a riqueza privada vinha de concessões fraudulentas, licitações, esquisitas, inside informations.
Hoje em dia você tem gerações de empresários que produzem, que investem, que se arriscam. Mas a mentalidade da sociedade ainda continua com aquela percepção viciada de que lucro é uma coisa ruim, porque geralmente é proveito sobre a pobreza de uma maneira geral.
E quando as empresas têm lucros, a percepção é que, pelo tom da mensagem, a empresa tal teve um lucro de tanto, com a exploração do pobre. As pessoas ficam inconformadas que haja o sucesso empresarial. Sem lembrar que é o sucesso empresarial que traz riqueza, que traz emprego, que traz renda para ser distribuída. Nós ainda não conseguimos derrotar isso e penso que seja um tópico também importante entre muitas coisas na vida brasileira.
Falo agora sobre o Supremo Tribunal Federal.
O Supremo Tribunal Federal no Brasil tem um papel diferenciado, em contraste com as supremas cortes dos países do mundo. Eu viajo pelo mundo, em compromissos acadêmicos ou institucionais. Sou professor de Direito Constitucional. A razão pela qual o Supremo desempenha um papel diferenciado é que a Constituição Brasileira é uma Constituição muito mais abrangente do que as Constituições de forma geral.
A Constituição Brasileira, como Constituição Democrática, cuida da separação de poderes, tem uma declaração de direitos e organiza o Estado do Brasil, uma federação complicada. Porém, a CF cuida de muito mais.
A Constituição Brasileira cuida do sistema de seguridade social, cuida do sistema tributário, cuida do sistema de saúde, cuida do sistema de educação, cuida do sistema de proteção ambiental, cuida do sistema de proteção às comunidades indígenas, ela cuida do papel do Estado na economia, ela cuida dos servidores públicos, cuida da família, da criança, do adolescente, da mineração, da comunicação social e por aí vai. Temas que, na maior parte do mundo, são políticos.
No Brasil, foram trazidos para a Constituição. Trazer um tema para a Constituição é, em certa medida, tirá-lo da política e trazê-lo para o Direito. Porque, com base nas normas constitucionais, as pessoas vão ao tribunal judicializar suas pretensões. Somado a esse fato, de que quase tudo no Brasil relevante está na Constituição — o que permite a judicialização. E existem ações que permitem chegar diretamente ao Supremo Tribunal Federal.
Nos Estados Unidos, você só chega ao Supremo, como regra geral, por recurso. Na Alemanha, você só chega com uma Reclamação Constitucional. No Brasil, você pode propor ações diretas ao Supremo, questionando a constitucionalidade de uma lei ou a ausência ou insuficiência ou deficiência de uma política pública.
Qualquer tema pode chegar ao Supremo. E aí vem o terceiro fator. A Constituição prevê quem pode propor essas ações diretas. Podem propor essas ações diretas: o presidente da República, o Procurador-Geral da República, a Mesa da Câmara, a Mesa do Senado, todos os governadores, todas as Assembleias Legislativas, os partidos com representação no Congresso Nacional, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, todas as entidades de classe de âmbito nacional e todas as confederações sindicais.
Ou seja, é preciso que um interesse seja muito desimportante para não conseguir que, pelo menos alguém, leve o caso ao Supremo Tribunal Federal. Quando alguém diz que o Supremo se mete em tudo, não é verdade. A Constituição Brasileira trata desses temas e tudo pode chegar ao Supremo.
E temos que decidir sobre demarcação de terras indígenas, interrupção de gestação. Temos que decidir sobre pesquisas com células-tronco embrionárias, a queima da palha da cana de açúcar e sobre desmatamento.
O STF decide as coisas mais… Eu não gosto de dizer “ridículas”, porque há coisas que são importantes para uns e que são desimportantes para outros. Mas chega ao Supremo. O Poder Judiciário, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, do Rio Grande do Sul, decidiu que o colarinho do chope faz parte da bebida.
Ou seja, no Brasil, não só foi judicializado, como chegou ao segundo grau de jurisdição: saber se o colarinho de chope faz parte da bebida. Assim como eu estou dando esse exemplo, há muitos outros. É claro que para aquele comerciante que foi autuado, aquela discussão era importante, porque na vida, o que é importante para um pode não ser importante para outro.
Eu tenho um cunhado que mora em uma área mais rural, ali de Niterói, numa daquelas praias. Tinha um terno velho, ele é advogado, passou pelo caseiro e perguntou: “Pedro, você não quer esse terno aqui de presente?” Ao que ele respondeu: “O terno eu não quero não, mas o cabide eu aceito sim senhor”
É claro. Ele não usa terno. O cabide é que interessava para ele. De modo que as coisas variam em importância para uma pessoa ou outra. Mas eu queria deixar claro, não é o Supremo que se mete, é um arranjo institucional brasileiro que permite que tudo chegue ao Supremo Tribunal. Que faz com que a vida seja decidir as questões mais divisivas da sociedade brasileira. Se decidimos a favor do agronegócio, uma determinada disputa de terras, as comunidades indígenas vocalizam a sua contrariedade.
Se decidimos a favor das comunidades indígenas, o agronegócio vocaliza a sua contrariedade. Matéria tributária, se decidimos a favor do contribuinte, o governo diz que a gente não tem responsabilidade fiscal. Se for a favor do governo, o contribuinte diz que somos fazendários. Não há salvação para quem tem que decidir as questões mais divisivas da sociedade brasileira. Portanto, não me impressiono quando alguém diz que as pesquisas demonstram que o Supremo tem só 49% de confiança.
É uma coisa extraordinária, pela quantidade de pessoas que desagradamos. Poderia ser muito pior. Por evidente, você não pode medir a importância de um tribunal em pesquisa de opinião pública. Se tem uma forma nessa vida de você não agradar ninguém, é querer agradar todo mundo.
Portanto, interpretamos a Constituição com o pluralismo do Supremo. Às vezes com divergências que eu mesmo tenho. Mas faz parte da vida. A crítica é livre, é importante criticar as instituições. Mas é completamente diferente de querer destruí-las.
Vivemos momentos muito difíceis na vida brasileira. É preciso que os senhores entendam um pouco o que nós passamos e o que vivemos em termos de mudança de comportamento.
Fui à final da Copa do Mundo de 2014, no Rio de Janeiro, com a minha mulher e meus dois filhos. Os quatro na arquibancada do Maracanã. Sem nenhum tipo de segurança. Nenhum tipo de problema. Em 2016, eu fui assistir a abertura das Olimpíadas com meu saudoso e querido Teori Zavascki. Fomos os dois e meu filho caçula. Só. Nenhuma segurança.
Hoje em dia, eu não há nenhuma possibilidade de sair na rua sem ter três seguranças. Foi essa transformação que ocorreu num país que se tornou mais agressivo, mais violento, em que as pessoas se sentem com liberdade de manifestar da forma mais grosseira possível. Democracia tem lugar para liberal, tem lugar para conservador, tem lugar para progressista, tem lugar para todo mundo. Mas a civilidade é um valor que vem antes da ideologia e nós perdemos essa noção que temos de recuperar.
Quem pensa diferente de mim, não é meu inimigo, é meu parceiro na construção de uma sociedade aberta e plural. A capacidade de a gente colocar as ideias na mesa, sem ter que desqualificar moralmente quem pensa diferente. É algo que nós precisamos recuperar e vai ser um salto de qualidade que nós precisamos dar na nossa vida em geral.
Por fim, ainda falando de coisas boas. Estou falando das boas e das ruins. Eu sou uma pessoa que gosta de ter uma visão construtiva da vida. Eu sou como a história que o meu amigo Carlos Ayres Britto gosta de contar. O sujeito foi ao médico, que lhe disse: “Eu tenho uma notícia ruim e outra pior”. Ele pediu a ruim primeiro: “Você só tem 24 horas de vida. A pior é que estou para te contar desde ontem”.
Não é assim que eu penso a vida. Eu acho que é preciso ter um olhar mais construtivo. Crítico, mas construtivo. Eu queria lembrar que nós temos no Brasil 40 anos de estabilidade institucional. É claro que o país tem sobressaltos de ameaças de golpe, sobressaltos tributários, a gente leva alguns sustos no Brasil, mas nós temos 40 anos de estabilidade institucional.
E para que a gente não trate esse fato com desimportância, é preciso lembrar que essa é uma novidade. A história do Brasil sempre foi a história de golpes, contragolpes e quebra da legalidade. Só quem não soube a sombra é que não sabe reconhecer a luz que entra em 40 anos de democracia com as dificuldades da democracia. Então, apenas para fazer um exercício de memória das situações em que quase se quebrou a legalidade institucional no Brasil ou que efetivamente se quebrou.
Vou começar em 1930. Poderia ter começado lá atrás, quando Floriano Peixoto, não convocou eleições, podia ter passado pelos 18 do Forte, mas vou começar em 30.
Episódios de ruptura ou de tentativa de ruptura:
– Revolução de 30;
– Revolução Constitucionalista de São Paulo de 32;
– Intentona Comunista de 35;
– Golpe de Estado Novo de 37;
– Destituição de Getúlio Vargas em 45;
– Contragolpe preventivo do Marechal Lott para assegurar a posse de Juscelino Kubitschek;
– Duas tentativas de golpe no governo Juscelino em Jacareacanga e em Aragarças;
– Vetos do ministros militares contra a posse de João Goulart, quando da renúncia de Jânio Quadros;
– Golpe Militar de 1964;
– Prorrogação do mandato de Castelo Branco sem a realização de eleições em 1965;
– Ato Institucional nº 5, em 1968;
– Impedimento da posse de presidente de Pedro Aleixo, na doença de Costa e Silva;
– Outorga da Constituição de 1969;
– Anos de chumbo do governo Médici;
– Pacote de Abril do governo Geisel, que fechou o Congresso.
Portanto, essa é a história do Brasil. E a estabilidade institucional que vivemos é algo que temos de celebrar.
Para reafirmar essa minha visão: de que a gente deve criticar as coisas que estão erradas. A indignação deve servir para empurrar a história na direção certa. Mas a gente tem que ver as coisas boas que acontecem, senão a vida vai ficando amarga e a gente está aqui para ser feliz. Olhando o copo meio cheio e o copo meio vazio da vida brasileira.
O que está na parte cheia do copo? Nós tivemos um crescimento econômico bem mais alto do que se esperava nos últimos dois anos: 3,4% em um ano; 3% no segundo ano. E este ano, pelas prévias, cresceremos um pouco mais do que se estimava anteriormente.
Portanto, o país que viveu muitas crises de baixíssimo crescimento. E aqui um parênteses importante, que merece uma reflexão. Entre 1900 e 1980, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo, a uma taxa média de 5,5% ao ano. De 1980 para cá, o país não está conseguindo crescer a uma taxa média de 2%. Essa é uma reflexão que a gente precisa fazer.
O que aconteceu? A gente parou de crescer, ou parou de ter capacidade de crescer? Outro ponto do copo cheio: temos a menor taxa de desemprego, desde que se começou a contabilizar essa estatística. Aqui eu queria fazer uma observação importante, e uma comunicação sobre algo que tem passado abaixo do radar e vai fazer muita diferença. Houve um momento de reclamações trabalhistas que, efetivamente, a imprensa divulgou
As reclamações trabalhistas, elas aumentam no momento da demissão. Mais da metade das reclamações trabalhistas, estão associadas às verbas rescisórias. Então, o aumento das reclamações trabalhistas se deve, em boa parte, ao aquecimento da economia e à baixa taxa de desemprego.
Isso produz mais turnover no mercado. Mais gente mudando de emprego, gera mais reclamação trabalhista. Isso não é um fator necessariamente negativo, mas o excesso de reclamação trabalhista traz problemas. Ele dificulta o investimento traz insegurança, o empregador acaba se distanciando da formalização do emprego, porque aquilo pode virar chateação.
Nós aprovamos no Conselho Nacional de Justiça uma resolução no final do ano passado que diz: se no ato da rescisão, o empregador e o empregado estiverem de acordo e assistidos por advogado, a decisão pode ser levada à Justiça do Trabalho, que a homologa. E fica proibido ajuizar a reclamação trabalhista. Só que a gente previu de início um valor muito alto, temendo que houvesse muita demanda. Mas agora já pode qualquer caso, então, por isso estamos divulgando a novidade.
Com isso, acaba com a indústria da reclamação trabalhista. O que acontece muito frequentemente, e todo mundo sabe disso: depois da rescisão, em que o trabalhador já recebeu (estou falando de empresário correto que paga o que devia pagar), depois que o trabalhador já recebeu o que tinha que receber, aparecia um advogado dizendo: “Vou conseguir mais uns caraminguás para você”. E ajuíza a reclamação trabalhista.
E começa a pedir reparação, pede hora extra que não recebeu… De modo que com esta solução, no momento da rescisão em que está sendo pago aquilo que o trabalhador efetivamente tinha direito, porque ele está assistido por advogado. O juiz do trabalho verifica se os direitos fundamentais foram acolhidos, porque a parte negocial o juiz não tem que se meter, ele então homologa, e não pode ter mais reclamação trabalhista.
Isso não esvazia a justiça do trabalho, que tem uma existência política complexa. Mas muda a jurisdição dele, de contenciosa para voluntária. Isso vai simplificar imensamente a vida de todo mundo. Eu assim vejo o copo cheio, com melhora na economia, no nível de emprego e com reservas internacionais altíssimas.
A minha geração foi uma geração que vivia apavorada com a dívida externa. Eu quando estudei, fiz o meu mestrado fora, nos Estados Unidos, no final dos anos 80 em Yale, quando estudei International Banking, Business Transactions, porque eu queria ajudar o Brasil a equacionar o problema da dívida externa. Esse problema acabou. Não tem ninguém mais preocupado com isso.
Aí temos a reforma tributária. Se for implementada adequadamente também acho que nós vamos conseguir muito progresso. A parte do copo vazio, todo mundo sabe: uma dívida pública que extrapolou a margem de segurança e por isso tem trazido preocupações, como a baixíssima capacidade de investimento do país.
Cerca de 92% do orçamento está comprometido, portanto sobra muito para as políticas públicas que precisam, ser implementadas no Brasil — e a governabilidade dificultada pela situação do orçamento. Baixa quantidade de dinheiro para investir e captura de uma parte relevante desse orçamento pelo Congresso Nacional. E aí, não é propriamente quem é que direciona o orçamento, mas é a qualidade do gasto que a gente precisa ter.
Essas são algumas ideias que eu, com prazer, quis compartilhar, agradecendo mais uma vez por estar aqui com empresários brasileiros.
E gostaria de fazer uma última observação. O país vive uma onda de obsessão negativa. Tudo que se faz, procura-se o que está fazendo de errado, qual é a motivação errada por trás do que está acontecendo. Acontece muitas coisas erradas no Brasil, mas tem muita gente honesta, tem muita gente íntegra, tem muita gente trabalhando para fazer um país melhor e maior. Se a gente tratar tudo o que está na vida pela mesma régua, tipo: está todo mundo ali atrás de algum interesse escuso, errado. A vida não funciona assim.
Eu vou dar um exemplo de como o país tem grande preconceito contra a livre iniciativa, contra o empresário. Eu tenho no Conselho Nacional de Justiça um programa de bolsas para candidatos negros à Magistratura.
O que nós fizemos no Conselho Nacional de Justiça? Todos os tribunais fazem os seus concursos, os tribunais estaduais fazem os seus concursos para juízes. Os tribunais estaduais, os federais fazem os seus, os tribunais trabalhistas fazem os seus e vão continuar fazendo.
Só que a gente precisava criar um padrão de qualidade nacional para magistrados, e acabar com rumores de coisas erradas que aconteciam nesses concursos. Então criei o Exame Nacional de Magistratura, que a gente faz em Brasília, pela Escola Nacional de Magistrados, que é requisito para o sujeito se inscrever nos concursos locais.
É fundamental ter um patamar mínimo de conhecimento, uma aferição que deve ser íntegra, rigorosa, para evitar o risco de passar alguém desqualificado nos concursos regionais. Só que eu viajo o Brasil inteiro, visito todos os tribunais. Você vai no Maranhão, na Bahia, no Piauí. Não estou falando Rio Grande do Sul. Isso é relevante: o Judiciário é 90% branco!
O Judiciário não se parece com o Brasil. E a democracia é um processo de autogoverno coletivo, em que as pessoas têm que se sentir participantes. Se você exclui um segmento importante da sociedade, esse grupo vira presa fácil de aventuras antidemocráticas. Ou ele deixa de ser uma pessoa que colabora para o todo, porque ele está excluído.
Portanto, a gente tem que incluir todo mundo, mas incluir com qualidade. Então, eu peguei a ação afirmativa de cotas — que não pode servir na seleção para o judiciário — serve para entrar na universidade. Mas o juiz decide a vida das pessoas, portanto tem que ser uma pessoa qualificada.
De modo que nós pegamos os 100 primeiros colocados do Exame Nacional de Magistratura negros, E estamos dando a eles uma bolsa de 3 mil reais por mês para eles poderem se preparar, sistematicamente, e poderem passar nos concursos. Portanto, em vez de cotas, a gente está querendo qualificar as pessoas.
Porque é assim que eu penso a vida, foi buscar esse dinheiro na iniciativa privada. Precisávamos de 15 milhões de reais para esse projeto, tínhamos conseguido 7 milhões. Eu falei com a Inês Coimbra, procuradora-geral do Estado de São Paulo, uma mulher maravilhosa, e contei essa história. Ela disse, não tem problema, a gente faz um jantar lá em São Paulo.
Vamos reunir os empresários e você conta isso e a gente vai conseguir mais uma fatia desse dinheiro. E assim fizemos. Ela organizou um jantar ótimo, foi organizado, depois eu fiquei sabendo, na casa do presidente do IFood. Eram empresários de todas as áreas, com boa disposição para ajudar no programa. A notícia que saiu na grande imprensa: a pretexto de obter bolsas para candidatos negros, Barroso se reúne com empresários que têm interesse no Supremo. Eu queria dizer aqui, que todo mundo tem interesse no Supremo. Quando eu recebo prefeitos, eles têm interesse no Supremo, quando eu recebo deputados, eles têm interesse no Supremo, quando eu falo com o presidente da República, ele tem interesse no Supremo.
Quando eu converso com o presidente da Câmara dos Deputados, a quem quero muito bem, ele tem interesse no Supremo; presidente do Senado, a quem também quero bem, tem interesse no Supremo; os indígenas, têm interesse no Supremo. Todo mundo tem interesse no Supremo. Os sindicatos têm interesse no Supremo, os advogados têm interesse no Supremo.
Então, se eu não pudesse me relacionar com quem tem interesse no Supremo, eu ia ter que ficar trancado em casa. Mas quando eu me reúno com empresários, como nessa conversa aqui sobre o Brasil, as pessoas dizem que deve ter algum interesse dos empresários no Supremo que eles estão lá tentando fazer um tipo de convencimento. Portanto, é uma visão de negatividade que não é só sobre os ministros do Supremo. É sobre o empresário, porque quando eu converso com o índio, não tem nenhum problema.
Então, o juiz não deve ser nem conservador, nem liberal, nem progressista. O juiz, é um ator institucional. A lógica de um juiz é ser certo, justo, legítimo. E não se é empresário ou indígena. Eu já decidi a favor de empresário contra indígena, decidi a favor de indígena contra empresário.
Na vida, você tem que fazer o que é certo. Se há uma bênção que a vida me deu, e quando chega um caso na minha frente, eu estudo conforme as circunstâncias, ouço os meus assessores, ouço as opiniões contrárias de um lado e do outro, vejo o argumento contrário e decido o que eu acho que é certo. Há 12 anos eu faço isso. Eu decido o que eu acho certo e faço. Eu não tenho medo de nada.
O universo protege as pessoas que se movem por bons propósitos. Essa é a minha crença mais profunda e é assim que eu tenho trabalhado como juiz. Mas quando você trata todo mundo com desconfiança, a vida pública começa a ficar desagradável. E aí você para de atrair as pessoas boas para a vida pública, porque não vale a pena passar por isso.
Falando aqui, perante pessoas que ajudam a produzir, a gerar emprego. Eu adoro o Brasil. Eu estudei fora, trabalhei fora, mas um dia eu voltei para o Brasil. Voltei com o plano Collor fazendo água, mas disse: é aqui que eu moro, onde mora meu coração, e quero ajudar esse país a ser diferente.
Fui advogado por 30 anos. A vida me levou ao Supremo. E a gente deve cumprir com alegria, as missões que a vida nos dá. Estou muito convencido que se o Brasil superar alguns gargalos, que é erradicar a pobreza, investir, verdadeiramente, em qualidade de educação. Se conseguirmos uma elevação razoável da ética pública e da ética privada, chegaremos lá.
Se acertarmos a parte fiscal e conseguirmos reunir as pessoas competentes. Porque quando a gente colocou o Pedro Parente na Petrobras, a Petrobras deu lucro. Quando colocamos o Ilan no Banco Central a inflação ficou sob controle.
É só colocar as pessoas certas no lugar certo. Portanto eu, assim, penso, multiculturais, como nós somos; multirraciais, como nós somos; com integridade, com competência, solidariedade, idealismo, temos tudo para sermos a sensação do mundo.
Muito obrigado.”
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