Opinião

Cem anos de golpes de Estado: o julgamento do golpe frustrado de Hitler e o 8 de Janeiro

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9 de junho de 2025, 13h19

David King, no livro O Julgamento de Hitler (Editora Novo Século), reconstruiu com grande detalhamento os equívocos do Tribunal da Baviera no simulacro processual sobre a fracassada tentativa de golpe de Estado dos nazistas em 1923, o chamado Putsch da Cervejaria.

Na noite de 8 de novembro daquele ano, na Bürgerbraukeller, uma cervejaria de Munique, centenas de pessoas acompanhavam uma reunião política que reunia as mais importantes figuras da região.

Os principais eram Gustav Von Kahr, comissário-geral do estado da Baviera, o general von Lossow, o mais graduado do estado, e Seisser, chefe da polícia local.

Kahr iniciava mais um de seus discursos contra o marxismo e a importância da resistência de Munique a esse mal.

Mas seu discurso seria logo interrompido.

A Tropa de Assalto de Hitler, comandada por Herman Göring, chegou em quatro caminhões, com armas pesadas, cercando a cervejaria, rendendo os poucos guardas e fechando todas as saídas do local. Hitler abre caminho entre os presentes em direção ao palco e dispara um tiro com sua Browning contra o teto. “A revolução nacionalista foi desencadeada”, gritou Hitler ao público.

Convidou Kahr, Lossow e Seisser para uma reunião a portas fechadas e depois de uma tensa discussão os três comandantes da Baviera comprometeram-se a aderir ao movimento.

Hitler e seus principais seguidores passaram a noite toda estabelecendo as estratégias para iniciar o domínio militar da cidade, empreender a marcha sobre Berlim e derrubar o governo republicano.

O fracassado ‘Putsch da Cervejaria’ de 1923

A Tropa de Assalto já havia controlado o Ministério da Guerra e armava-se por toda Munique, mas os comandantes do golpe cometeram um grave erro estratégico. Deixaram que os líderes bávaros, Kahr, Lossow e Seisser, que seriam imprescindíveis para o controle da polícia de Munique, saíssem sem escolta da cervejaria.

Os três passaram a estruturar com o apoio de outros políticos e líderes militares uma contraofensiva ao movimento de Hitler, que subestimara essa possibilidade.

No dia seguinte, em torno das 12h, Hitler — já tendo notícias da possível resistência oficial ao golpe, lidera uma marcha pela cidade de Munique com mais 2.000 membros de sua tropa de assalto, obtendo grande adesão popular.

Ao seu lado estava o general Ludendorf, maior referência militar da Baviera, herói da Primeira Guerra Mundial, símbolo da força e apoio do antigo comando ao golpe.

Os líderes nazistas não acreditavam que a polícia de Munique reagiria e que os objetivos comuns do povo da Baviera, contra a humilhação do Tratado de Versalhes e a ruína econômica do povo alemão, serviriam para unir a todos em torno do novo líder.

Não foi o que aconteceu

Na entrada da Odeonsplatz, a mais importante praça de Munique, as forças policiais — após os nazistas descumprirem uma ordem para que a marcha não mais prosseguisse — abriram fogo contra Hitler, Ludendorf e seus seguidores, com uma menor reação do lado nazista. Segundos depois, centenas de feridos e 20 mortos espalhados pela praça: 16 nazistas e quatro policiais.

Entre os mortos do lado golpista, Theodor Von der Pfordten, juiz da Suprema Corte da Baviera, tombado em frente ao Feldherrnhalle, carregava um papel rascunhado com uma nova “Constituição” que fechava o parlamento, expulsava os judeus do país, confiscava seus bens e criava campos de prisão aos inimigos do regime. Sim, eles também tinham uma minuta do golpe. Estava ali rascunhado todo o futuro horror europeu, por ora, adiado.

Hitler fugiu e foi encontrado em Uffing, pequena vila a 70 quilômetros ao sul de Munique, na casa de um amigo e preso no dia 11 de novembro de 1923.

Hitler, Ludendorf e outros oito réus foram denunciados apenas pelo crime de alta traição. As mortes de policiais, o sequestro de membros do governo e o ataque aos judeus foram ignorados pela acusação.

Julgamento

O Tribunal Popular da Baviera era formado por cinco juízes. Dois togados e três leigos. As estatísticas dos julgamentos animavam os nazistas. Centenas de julgamentos por crimes políticos, nos anos que antecediam ao caso, apontavam para a ideologia dominante dos julgadores. Em média, réus de esquerda recebiam 15 anos de pena; os acusados de direita, quatro meses.

O julgamento foi uma defesa da tentativa de golpe, com inúmeras menções de que Hitler não apenas se orgulhava de suas ações, mas que não hesitaria em repeti-las no futuro. Esse era o ambiente dominante em toda Munique e na Baviera. Contra Berlim, inimiga da república, antidemocrática, contra a Constituição de Weimar, opositora do Tratado de Versalhes.

O promotor encerrou sua sustentação elogiando Hitler, chamando-lhe de soldado honesto, bravo e altruísta, mas que deveria ser responsabilizado pelos seus atos. Hitler encerrou os discursos de defesa, em uma fala eloquente de mais de 1 hora. Pediu que o tribunal considerasse apenas ele como responsável. Disse que independentemente da decisão do tribunal, o povo alemão caminharia unido com suásticas pelas ruas lutando contra marxistas e judeus e que a história os absolveria.

Um jornalista de Berlim que acompanhou o julgamento afirmou: se esse homem quiser, pode levar o mundo ao colapso.

O Código Penal Alemão previa prisão perpétua para o crime de alta traição. Mas a acusação pediu apenas uma pena de oito anos a Hitler.

Em 1º de abril de 1924, o austríaco era considerado culpado pelo crime de alta traição, mas sua pena em razão de “circunstâncias atenuantes” poderia variar de 5 a 15 anos. O tribunal considerou que Hitler agiu com sentimento patriótico e motivos nobres.

Aplicou-se a pena mínima, cinco anos, podendo receber liberdade condicional após seis meses. E negou-se a aplicação da regra da deportação aos condenados estrangeiros por alta traição, permitindo a Hitler permanecer na Alemanha.

O julgamento foi considerado uma vitória gigantesca de Hitler, do nazismo e dos golpistas.

Hitler foi solto, em liberdade condicional, em 20 de dezembro de 1924. A tentativa de golpe de Estado — ou o crime de alta traição — cuja pena era a perpétua — rendeu ao comandante nazista oito meses e meio de prisão, tempo em que escreveu sua obra Mein Kampf.

E a farsa judiciária de Munique abria caminho a um dos maiores capítulos de horror que a humanidade já presenciou.

Cem anos depois de Munique

Não se trata de um tópico isolado e distante da história. Subitamente, tudo isso ganhou nova importância em razão de episódios recentes. Basta dizer que nos Estados Unidos, na Alemanha e no Brasil tramitam hoje concomitantes processos criminais relacionados a graves atentados democráticos.

Nos Estados Unidos, centenas de pessoas já foram condenadas pela invasão ao Capitólio e Donald Trump, acusado de quatro crimes relacionados a esse fato, aguarda julgamento. Steve Bannon, estrategista de Trump, foi preso e condenado por obstruir a investigação do Congresso americano. A demora no julgamento de Trump permitiu seu retorno ao Salão Oval, o centro de poder mais forte do globo.

A Alemanha prendeu recentemente e processa extremistas de direita — do partido Alternativa para a Alemanha — por prepararem um golpe de Estado mediante ações de violência. E as eleições para o parlamento europeu comprovam ainda mais essa preocupação: os neonazistas receberam a segunda maior votação na Alemanha.

As ameaças à democracia eram cada vez maiores e mais graves e, então, no Brasil tivemos o célebre “8 de janeiro de 2023”, cem anos depois do Putsch da Cervejaria.

A legislação brasileira foi, de certa forma, leniente com potenciais golpistas. No Brasil exige-se expressamente que o golpe de Estado seja ao menos tentado, com emprego de violência ou grave ameaça. A Alemanha, por exemplo, expandiu o campo de punição expressamente à mera preparação de um empreendimento de alta traição (golpe de Estado) (Vorbereitung eines hochverräterischen Unternehmens), criminalizando o estágio prévio à tentativa.

O Supremo Tribunal Federal já considerou os fatos de 8 de Janeiro como ações criminosas, condenando seus executores às sanções previstas para os crimes de tentativa abolição violenta do Estado democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado.

A Procuradoria-Geral da República denunciou Jair Bolsonaro e o seu núcleo político-militar mais relevante (Braga Netto, Heleno), além de outros assessores, por essas mesmas infrações penais e o STF já recebeu a denúncia. O julgamento de mérito pela 1ª Turma do STF não demorará.

Parece altamente provável — para não dizer certo, em homenagem à presunção de inocência — a condenação de todos aqueles que dirigiram, coordenaram ou concorreram para a tentativa de golpe e de atentado à democracia, fatos penalmente previstos na lei, e por várias vezes já afirmados como incontestáveis por nossa maior corte de justiça.

Críticos radicais da atuação do Supremo e em particular do ministro Alexandre de Morais na condução de todas essas investigações e processos, os líderes políticos da extrema-direita articulam no Congresso Nacional um projeto de anistia ampla a todos os que participaram nos denominados atos antidemocráticos. Os Estados Unidos, provocados por Eduardo Bolsonaro, anunciam possíveis sanções aos ministros do STF, e a PGR pediu a instauração de inquérito em face do deputado, pelos crimes de obstrução à justiça e coação no curso do processo. A crise certamente escalará.

Cem anos depois de Munique, o Direito Penal voltou a ter gigantesco protagonismo na defesa da democracia e do Estado de Direito.

A história comprova que ações dessa gravidade engendram altíssimos riscos ao Estado de Direito e devem ter uma reação contundente do poder judiciário. Anistia e tratamento leniente aos principais responsáveis por crimes dessa natureza, ao longo da história, sempre se constituíram em uma espécie de convite à repetição de ações ainda mais graves no futuro.

Mas o Estado de Direito e a democracia não se salvam simplesmente com a punição dos golpistas.

O estado de direito e a democracia se salvam com a punição de todos golpistas por um tribunal imparcial, que observe o devido processo legal, trate os acusados com dignidade e respeite as prerrogativas da defesa, e, especialmente, que aplique a lei penal com proporcionalidade à culpa de cada cidadão.

Há um cuidado essencial em toda reação ao extremismo político.

Não pode ser fraca, a estimular ações dessa natureza no futuro.

Mas não pode ser realizada com excessos e ilegalidades, a oferecer verossimilhança ao discurso de perseguição e deslegitimação das instituições, em especial do Poder Judiciário.

Um processo criminal justo é a única resposta civilizatória às pessoas acusadas de formar uma organização criminosa que se associou para o fim de cometer crimes contra a democracia e o estado de direito.

Autores

  • é advogado criminal, doutor em Direito, ex-presidente da OAB-PR, conselheiro federal da OAB Nacional e autor de livros de Direito Penal. Foi pesquisador convidado na Humboldt Universität – Berlin.

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