Tirem o bode da sala: desjudicialização das ações antecipatórias de garantia
8 de junho de 2025, 8h00
Um dos momentos mais angustiantes que um paciente tem na sessão de terapia é, sem dúvida, aquele em que se depara com a seguinte pergunta do analista: “Mas, qual é a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?” (Freud [1]).

Causa bastante incômodo perceber que, em boa medida, vários dos nossos sofrimentos têm participação ativa de nós mesmos, e não decorrem apenas do acaso, ou de um outro diabólico. Ao mesmo tempo, todo processo de cura depende de saber e de lidar com aquilo que é seu e aquilo que é do outro, pois só assim é possível gerar a tão desejada autonomia do sujeito, que não se culpa por todos os males que lhe acomete, mas também não responsabiliza o universo pela má-sorte de suas escolhas e atitudes.
Tenho para mim, porém, que este mecanismo psíquico pode e deve ser aplicado para a resolução de problemas institucionais, com as devidas adaptações. Significa dizer que a primeira pergunta que devemos fazer quando nos deparamos com o mau funcionamento de uma instituição é justamente “qual é a parte do problema que é causada pelo próprio modo de agir da instituição, e não por circunstância alheia à sua vontade?” Parece simples pensar assim. Mas, curiosamente, não é o que mais vemos por aí, talvez porque, tal como numa sessão de terapia, dói ser confrontado com o fato de que a causa — e, portanto, a respectiva solução — de alguns problemas não pode ser reputada aos outros.
Enquanto instituição, historicamente o Poder Judiciário apresenta uma queixa recorrente: o número excessivo de processos que têm de ser julgados ano após ano. Há uma percepção válida de que, com a redemocratização capitaneada com a Constituição de 1988, uma litigiosidade reprimida desembarcou nos escaninhos das Varas judiciais, e, desde então, parece crescer em progressão geométrica. As causas externas são de natureza variada: desde uma necessária consagração de direitos fundamentais antes relegados a uma proclamação estéril e cínica (jurídica), até uma progressiva escassez de recursos financeiros para assegurar a boa prestação de serviços públicos, a incluir os da própria Justiça (econômica), perpassando por um decantado individualismo como modo ideal de ser e agir em sociedade, o qual encontra na judicialização o meio preferencial — senão exclusivo — para a resolução de conflitos advindos da falta de diálogo e composição (sociológica).
Minha reflexão aqui procura olhar para causas internas, pois estas, sendo ocasionadas pelo próprio Poder Judiciário e seus atores, não necessitam de alterações legislativas, incrementos orçamentários ou mesmo intervenções divinas para serem combatidas e corrigidas. Dessas causas, tenho para mim que a interpretação e aplicação das normas jurídicas processuais é aquela que impacta mais diretamente no aumento ou na diminuição da judicialização de demandas sociais e, consequentemente, na elevação ou na queda do número de processos judiciais. Quanto menos requisitos processuais para a admissão de ações judiciais forem exigidos, maior será o número de demandas que serão processadas no Poder Judiciário, sem prévia tentativa de solução por outros meios não-judiciais.
Obviamente, não cabe ao Poder Judiciário instituir requisitos processuais que não estejam previstos em lei, mesmo que a pretexto de barrar um aumento desmedido de litigiosidade e de concretizar o direito fundamental à duração razoável dos processos (artigo 5º, inciso LXXVIII, CF/88). As condições da ação e os pressupostos processuais só existem na medida em que a lei processual os preveja.
Não são inerências transcendentais do direito constitucional de ação. Em se tratando de processos cíveis ou fiscais, só podem ser invocados como obstáculo para o conhecimento do mérito caso estejam expressamente contemplados no Código de Processo Civil. Por outro lado, ao menos no que diz respeito às condições da ação (artigo 485, inciso VI, CPC), existe considerável margem interpretativa. Afinal, embora a lei processual estabeleça ser necessário ter interesse e legitimidade para postular em juízo (artigo 17, CPC), não discrimina as hipóteses fáticas em que tais condições estão presentes.
No âmbito do processo tributário, o requisito do interesse de agir se faz presente quando a pretensão da Fazenda Pública ou do contribuinte só pode ser alcançada por meio de uma decisão judicial, e não mediante ato administrativo. Nessa seara, um bom parâmetro para saber se há ou não interesse de agir é averiguar se a pretensão desejada está abarcada pela cláusula constitucional da reserva de jurisdição [2], que, nas palavras do ministro Celso de Mello, “assiste ao Poder Judiciário não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se a possibilidade do exercício de iguais atribuições por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridade do Estado (Supremo Tribunal Federal, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 23.).
Em suma, se a pretensão da Fazenda Pública puder ser realizada por ato da própria autoridade administrativa, não haverá interesse de agir que justifique a postulação em juízo de tal medida. Do mesmo modo, se a pretensão do contribuinte for realizável por ato administrativo sem prévia resistência, também não haverá interesse de agir que respalde a propositura de uma ação judicial contra a Fazenda Pública como primeira alternativa à solução do conflito.
Tendência jurisprudencial
Nas últimas décadas, contudo, o Poder Judiciário tem se mostrado bastante refratário em adotar essa interpretação sobre o interesse de agir em ações judiciais propostas pelos contribuintes. Apesar de ser crescente o número de providências que a lei alça à esfera administrativa fiscal, permanece uma tendência jurisprudencial de se considerar que é dado ao contribuinte escolher qual o meio mais conveniente para manejar sua pretensão e obter o direito subjetivo postulado, partindo-se do pressuposto de que existe um sistema multiportas, em que tanto a esfera administrativa quanto a judicial estão à disposição do contribuinte [3].
E, vamos convir, é compreensível que tenha sido conferida maior amplitude ao direito fundamental do acesso à justiça após a Constituição Federal de 1988 no que diz respeito às ações antiexacionais e afins como consequência da redemocratização, pois uma das marcas distintivas do autoritarismo do regime militar (1964-1985) era justamente a de restringir, aberta ou veladamente, o acesso à Justiça quando o interesse postulado se contrapunha ao do Poder Público.
Dessa tendência interpretativa é bom exemplo o entendimento jurisprudencial consolidado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de acordo com o qual é admissível a propositura de ações cautelares pelos contribuintes mesmo que apenas para o fim de oferecer garantia a créditos tributários que ainda não são sendo cobrados em execução fiscal.
Inicialmente, o STJ entendia que tais ações cautelares eram, por via transversa, uma indevida e descabida medida de caráter satisfativo de um interesse do devedor e, portanto, que objetivava “criar nova e artificiosa condição para obter a expedição de certidão negativa de um débito tributário cuja exigibilidade não foi suspensa nem está garantido na forma exigida por lei” (STJ, Recurso Especial 575.002).
No entanto, em julgamento que originou o Tema Repetitivo nº 237, o mesmo STJ firmou posição de que “é possível ao contribuinte, após o vencimento da sua obrigação e antes da execução, garantir o juízo de forma antecipada”, pois, “raciocínio inverso implicaria em que o contribuinte que contra si tenha ajuizada ação de execução fiscal ostenta condição mais favorável do que aquele contra o qual o Fisco ainda não se voltou judicialmente” (STJ, Recurso Especial 1.123.669).
Como se percebe, objetivando suprir uma aparente lacuna processual e assegurar que devedores ainda não executados tivessem a mesma faculdade de oferecer bens à penhora, o STJ reconheceu existir interesse de agir-necessidade e adequação para o ajuizamento de ação cautelar com o exclusivo fim de antecipar o oferecimento de garantia, muito embora seja “preparatória ou antecedente de uma ação principal a ser proposta, não pelo autor da cautelar, mas sim contra ele” e, por isso mesmo, tenha sido anteriormente considerada uma “evidente anomalia processual” pelo Tribunal (STJ, Recurso Especial 575.002).
Seja como for, firmado o precedente, o Poder Judiciário trouxe para si um sem-número de ações judiciais que não haviam sido concebidas no Código de Processo Civil de 1973 (artigo 798), e que também não foram no de 2015 (artigo 305). Ainda que bem-intencionado, o STJ abriu as portas para uma litigiosidade não prevista em lei, e que, mais cedo ou mais tarde, desembocaria incidentalmente no curso das execuções fiscais.
Desde então, no que tange ao âmbito federal, a administração tributária tem procurado diminuir a judicialização da questão mediante a criação de mecanismos administrativos para assegurar o oferecimento de garantia antes mesmo do ajuizamento da execução fiscal.
Assim fez a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ao inovar a legislação tributária e instituir a oferta antecipada de garantia (artigo 8º, Portaria PGFN nº 33/2018), por meio da qual ficou assegurado ao devedor a prerrogativa de não ter de aguardar a citação em uma execução fiscal (artigo 9º, inciso III, Lei de Execução Fiscal) para, oferecendo uma garantia, obter a certificação de sua regularidade fiscal (art. 13, Portaria PGFN nº 33/2018).
Os requisitos que o devedor tem que observar para que sua garantia seja aceita (artigo 12, Portaria PGFN nº 33/2018) são os mesmos da lei (artigo 11, Lei de Execução Fiscal). E, se a oferta for feita dentro do prazo de trinta dias contados da notificação da inscrição em dívida ativa da União, tem o efeito de suspender os atos de cobrança administrativa (protesto extrajudicial, negativação em serviços de proteção de crédito, etc.) enquanto não analisada a oferta pelo Procurador da Fazenda (artigo 8º, parágrafo único, Portaria PGFN nº 33/2018), que tem até trinta dias para fazê-lo (artigo 11, § 1º, Portaria PGFN nº 33/2018).
Esperava-se, assim, não só a diminuição do número de ações cautelar antecipatórias de garantias, como também o condicionamento da admissibilidade destas ações à prévia comprovação de que a oferta antecipada de garantia havia sido tentada junto à PGFN, demonstrando ser necessária e indispensável a propositura da ação.
Contudo, não foi o que se verificou na prática forense. Sob a justificativa de que o cabimento de ações cautelares para oferta de garantia já havia sido definido no julgamento do citado Recurso Especial 1.123.669 (Tema Repetitivo nº 237), o Poder Judiciário perdeu a oportunidade de revisitá-lo — afinal, tal precedente foi formado antes da criação da oferta antecipada de garantia pela Portaria PGFN nº 33/2018 — e, assim, de redefinir o significado do interesse de agir-necessidade para ações antecipatórias de garantia, pareando-o na mesma lógica adotada no Tema de Repercussão Geral nº 1.184 [4] (Recurso Extraordinário 1.355.208) e esmiuçada na Resolução Conselho Nacional de Justiça nº 547/2024, cujo artigo 2º instituiu pré-requisitos para o ajuizamento de execuções fiscais, sem os quais serão extintas por falta de interesse de agir.
Apesar dessa recalcitrância judicial, a PGFN, em mais uma tentativa de viabilizar a desjudicialização da oferta antecipada de garantia, editou a Portaria PGFN nº 2.044/2024 com o fito de regulamentar o oferecimento e aceitação da garantia mais recorrente nas ações cautelares: o seguro garantia.
Diferentemente da antiga Portaria PGFN nº 164/2014, a Portaria PGFN nº 2.044/2024 não só permite que haja a oferta antecipada de seguro garantia, como também — e aqui reside a diferença fulcral — permite que seja ofertado para a garantia de “débitos não inscritos em dívida ativa da União e do FGTS quando houver a intenção de discussão judicial pelo tomador do seguro garantia, após o encerramento do contencioso administrativo” (artigo 1º, § 1º, inciso II). Desse modo, tão logo exigível o crédito tributário, é dado ao devedor antecipar-se e garanti-lo por seguro para fins de obter a certidão positiva com efeitos de negativa (artigo 206, CTN) através de pedido administrativo à PGFN, que viabilizará a inscrição e averbação de garantia (artigo 1º, § 3º, Portaria PGFN nº 2.044/2024).
Novamente o Poder Judiciário tem a chance de tratar por si mesmo uma das causas do excesso de litigiosidade que o acomete e que tanto prejudica o direito fundamental à duração razoável do processo.
Com as inovações da Portaria PGFN nº 2.044/2024, em especial, com a previsão de que o devedor pode apresentar oferta antecipada de garantia mesmo para débitos não inscritos em dívida ativa da União, é perfeitamente plausível reinterpretar o alcance do entendimento jurisprudencial firmado no Tema Repetitivo nº 237, ao menos no que se refere aos tributos federais, de modo a condicionar a propositura de ações cautelares antecipatórias de seguro garantia à demonstração de que a oferta antecipada de garantia foi rejeitada, ou está pendente de análise por tempo excessivo, ou de que sequer foi apresentada administrativamente porque o seguro garantia a ser ofertado não está em consonância com as orientações institucionais da PGFN.
Afinal, com a oferta antecipada de garantia, a pretensão de antecipar garantia de créditos tributários não depende necessariamente de uma tutela jurisdicional cautelar, o que, se não retira por completo, condiciona o interesse de agir (artigo 17, CPC) a esclarecimentos que não são mais presumidos ou auto evidentes.
Portanto, uma vez mais o Poder Judiciário está às voltas de decidir se quer ou não tirar o bode da sala ali colocado com o Tema Repetitivo nº 237, tendo agora o argumento de que, relativamente a tributos federais, existem outros meios — que não somente o judicial — que asseguram ao contribuinte obter a certidão de regularidade fiscal (artigo 206, CTN) mediante o oferecimento de garantia antes mesmo do ajuizamento da execução fiscal.
Fica a esperança de que o faça, não porque isto per si trará a litigância a patamares razoáveis, mas porque, eliminando uma de suas causas internas, poderá focar no trato das demais causas que estão a seu exclusivo alcance.
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[1] Frase atribuída a Sigmund Freud por Lacan, na cena de um diálogo entre o pai da psicanálise e sua paciente Dora (LACAN, Jacques, Intervenção sobre a transferência, in Escrito, Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1998, p. 218).
[2] Que incide sobre diversas matérias, tais como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI).
[3] Exemplo disto é o excerto da ementa do Recurso Especial 1.623.475/PR: “A desjudicialização dos conflitos e a promoção do sistema multiportas de acesso à justiça devem ser francamente incentivada, estimulando-se a adoção da solução consensual, dos métodos autocompositivos e do uso dos mecanismos adequados de solução das controvérsias, tendo como base a capacidade que possuem as partes de livremente convencionar e dispor sobre os seus bens, direitos e destinos”.
[4] Tese firmada no Tema de Repercussão Geral nº. 1.184: 1. É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor pela ausência de interesse de agir tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa, respeitada a competência constitucional de cada ente federado. 2. O ajuizamento da execução fiscal dependerá da prévia adoção das seguintes providências: a) tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e b) protesto do título, salvo por motivo de eficiência administrativa, comprovando-se a inadequação da medida. 3. O trâmite de ações de execução fiscal não impede os entes federados de pedirem a suspensão do processo para a adoção das medidas previstas no item 2, devendo, nesse caso, o juiz ser comunicado do prazo para as providências cabíveis.
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