Por que estamos discutindo a inteligência artificial do jeito errado?
7 de junho de 2025, 6h34
O debate sobre inteligência artificial no Brasil tem assumido contornos curiosos. De um lado, entusiastas que veem na tecnologia a salvação para todos os males. De outro, céticos que parecem convencidos de que a IA é o prenúncio de um futuro distópico. Entre esses extremos, perdemos a oportunidade de uma discussão séria sobre os rumos da tecnologia em nossa sociedade.

É interessante observar como alguns intelectuais descobriram recentemente que a tecnologia pode ser mal utilizada. Como se a humanidade não tivesse experimentado isso com a imprensa de Gutenberg, quando maus religiosos alertavam que livros impressos levariam as pessoas à perdição. Ou quando a chegada das calculadoras anunciava o fim da capacidade humana de fazer contas [1] [2]. Agora, a IA é vista por alguns como a nova ameaça, responsável por prejudicar nossas capacidades cognitivas.
Sim, existem riscos reais e documentados. Advogados que inventam precedentes [3] [4], juízes que delegam sentenças a robôs [5], pessoas que confundem diagnósticos médicos com vídeos de 30 segundos no TikTok. Esses casos merecem nossa atenção e preocupação. Mas será que a solução é declarar guerra à tecnologia, como se fôssemos luditas do século 21 brandindo livros impressos contra as máquinas?
É curioso notar que críticos da IA escrevem suas análises em computadores, publicam em plataformas digitais e divulgam em redes sociais — todas tecnologias que, em seu tempo, foram acusadas de destruir a inteligência humana. Fazem suas pesquisas no Google em vez de consultar bibliotecas físicas, digitam em teclados quando a ciência comprova que escrever à mão é mais eficiente para a aprendizagem e retenção de conhecimento. [6] Aparentemente, a tecnologia só é aceitável quando já está domesticada e integrada ao cotidiano dos intelectuais. O pecado tecnológico, ao que parece, é sempre o do vizinho.
Enquanto isso, no mundo real, a IA tem revolucionado a medicina com diagnósticos mais precisos de câncer [7], permitido que pessoas com deficiência visual “vejam” através de descrições automatizadas [8], auxiliado na descoberta de novos medicamentos [9] e tornado a educação mais acessível através de tutores virtuais personalizados. Mas claro, é mais dramático falar sobre o fim da civilização do que reconhecer avanços concretos.
Reflexão sobre a vida com IA
O argumento de que a IA nos torna menos inteligentes merece reflexão. A estupidez humana certamente não precisa de ajuda tecnológica. Basta uma breve visita aos comentários de qualquer portal de notícias para constatar que a ignorância prospera muito bem sem assistência algorítmica. A diferença é que agora temos um bode expiatório conveniente para nossos fracassos educacionais e culturais.
Não, a IA não é responsável pelos milhões de brasileiros com graves limitações de leitura e escrita. Os dados do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional) são reveladores: entre 2001 e 2024, o Brasil reduziu o analfabetismo de 12% para algo entre 4% e 7%. Uma vitória? Talvez. Mas o mesmo estudo mostra que a proporção de brasileiros no nível proficiente — aqueles capazes de elaborar textos complexos e realizar inferências — permanece estagnada em míseros 12% há mais de duas décadas [10].

Percebem a ironia? Enquanto alguns culpam o ChatGPT pelo empobrecimento intelectual, os dados mostram que já éramos campeões em produzir pessoas com habilidades limitadas de leitura muito antes de qualquer algoritmo sonhar em escrever uma petição. A proporção de brasileiros no nível rudimentar — que mal conseguem ler um bilhete — ainda ronda os 20%. Isso é resultado de décadas de descaso com a educação, não de alguns anos de convivência com assistentes virtuais. Culpar a tecnologia é mais fácil do que enfrentar nossas deficiências estruturais.
Letramento digital
O que realmente deveria nos preocupar não é a existência da IA, mas a ausência de letramento digital crítico. Quando pessoas não conseguem distinguir entre uma fonte confiável e charlatanismo digital, o problema não está na ferramenta, mas na formação. É como culpar o bisturi pelos erros de um cirurgião mal treinado.
Claro que existem riscos cognitivos reais quando terceirizamos nosso pensamento para algoritmos. A dependência excessiva de assistentes virtuais pode, sim, atrofiar capacidades críticas e analíticas, [11] assim como calculadoras podem prejudicar habilidades aritméticas se usadas prematuramente no processo educacional. Negar isso seria tão equivocado quanto negar os benefícios da tecnologia. A questão é que esses riscos não justificam o pânico moral nem a condenação sumária da ferramenta. Exigem, isso sim, uso consciente e pedagogia adequada.
A questão central não é se devemos usar IA, mas como usá-la responsavelmente. Isso exige regulação inteligente, não proibição histérica. Exige educação, não demonização. Exige que profissionais aprendam a trabalhar com a tecnologia, não contra ela.
Uso da IA no direito
No direito, por exemplo, a IA pode democratizar o acesso à Justiça, auxiliar na análise de jurisprudência e agilizar processos burocráticos. Não é à toa que o próprio STF utiliza a MARIA e a VitórIA [12] [13] (ambas IAs generativas), enquanto o STJ opera com o Logos [14], também baseado em inteligência artificial generativa.
Sim, essas mesmas tecnologias podem gerar “alucinações” e precedentes falsos. Mas nossos tribunais superiores compreenderam que a solução não é banir a tecnologia. É criar mecanismos de verificação, estabelecer protocolos de uso e, sobretudo, manter a supervisão humana sobre decisões críticas. Se as mais altas cortes do país abraçam a IA com cautela e responsabilidade, precisamos refletir sobre o porquê de alguns insistirem em tratá-la como anátema.
O medo de que a IA substitua o raciocínio humano revela uma visão limitada do que significa pensar e do valor inerente a cada pessoa. O documento Antiqua et Nova ressalta que “a inteligência humana não se define, primariamente, pela execução de tarefas funcionais, mas sim pela capacidade de compreender e envolver-se ativamente com a realidade em todos os seus aspectos”. [15]
O texto alerta para o risco de se adotar uma visão funcionalista ao equiparar inteligência humana e IA, avaliando as pessoas apenas com base nas tarefas que podem desempenhar. Contudo, o valor de uma pessoa não se resume a habilidades específicas, resultados cognitivos e tecnológicos ou sucesso individual, mas reside em sua dignidade intrínseca.
Essa dignidade encontra respaldo na Constituição, que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República [16]. Portanto, mesmo que uma máquina possa realizar certas tarefas de forma mais eficiente, isso não diminui a riqueza e a profundidade do pensamento humano, nem o valor único e inalienável de cada ser humano. Talvez seja hora de reconhecer que nossas habilidades vão além da repetição mecânica de fórmulas e precedentes, e que devemos desenvolvê-las de forma mais ampla e criativa, sempre respeitando a dignidade fundamental de cada pessoa.
Falta de reflexão crítica é a ameaça
A verdadeira ameaça não vem da inteligência artificial, mas da falta de reflexão crítica — aquela que prefere soluções simplistas a análises complexas, que opta pelo alarmismo em vez da ponderação. Curiosamente, são justamente aqueles que mais criticam a superficialidade das redes sociais que, por vezes, oferecem as análises mais rasas sobre o fenômeno tecnológico.
Precisamos, de fato, de regulação ética e jurídica para a IA. Precisamos de transparência algorítmica, de responsabilização por decisões automatizadas, de proteção contra vieses discriminatórios. Mas também precisamos superar o pânico moral que transforma toda inovação em ameaça existencial.
A história nos ensina que a tecnologia é um amplificador das capacidades humanas — para o bem e para o mal. A imprensa tanto disseminou conhecimento quanto propaganda. A internet tanto conectou pessoas quanto espalhou desinformação. A IA seguirá o mesmo padrão, refletindo nossas virtudes e vícios.
Portanto, em vez de desperdiçar energia em jeremiadas sobre o apocalipse digital, seria mais produtivo focar em como construir um futuro em que a tecnologia sirva aos propósitos humanos mais nobres. Isso exige trabalho árduo, não manifestos catastrofistas.
A escolha é nossa: podemos continuar no debate estéril entre tecnofóbicos e tecnófilos, ou podemos construir uma relação madura com a tecnologia. Uma relação baseada em evidências, não em pânicos; em regulação inteligente, não em proibições arbitrárias; em educação crítica, não em doutrinação apocalíptica.
O futuro não será determinado pela inteligência artificial, mas pela inteligência humana — ou pela falta dela. E isso, convenhamos, sempre foi assim.
[1] BANKS, Sarah A. A historical analysis of attitudes toward the use of calculators in junior high and high school math classrooms in the United States since 1975. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) — Cedarville University, Cedarville, 2011, p. 14. A autora reproduz a pesquisa publicada pela revista Mathematics Teacher: “A survey done by Mathematics Teacher found that 72 % of teachers, mathematicians, and laymen did not want 7th grade students to be given calculators for use in their math classrooms. Critics feared that students would no longer be able to do basic math without the assistance of a calculator. Some teachers chose to ban calculators from their classroom altogether (Pendelton, 1975).”
[2] CIENCE NEWS. Math in the Schools: What’s Wrong? Science News, Washington, v. 108, n. 21, p. 325, 22 nov. 1975. A reportagem informava que o National Advisory Committee on Mathematical Education previa “mudanças drásticas” caso as calculadoras fossem liberadas, e que muitos educadores temiam a perda das habilidades básicas de cálculo.
[3] https://www.conjur.com.br/2025-abr-27/tj-pr-nao-analisa-recurso-gerado-por-ia-que-inventou-precedentes-e-relatores/
[4] https://www.migalhas.com.br/quentes/430465/zanin-ve-ma-fe-e-rejeita-peticao-feita-por-ia-com-falsos-precedentes
[5] https://sintrajufe.org.br/juiz-usou-robo-de-inteligencia-artificial-chatgpt-para-redigir-sentenca-e-defende-que-uso-pode-substituir-secretario/
[6] Van der Weel FRR, Van der Meer ALH. Handwriting but not typewriting leads to widespread brain connectivity: a high-density EEG study with implications for the classroom. Front Psychol. 2024;14:1219945. Published 2024 Jan 26. doi:10.3389/fpsyg.2023.1219945
[7] https://oglobo.globo.com/saude/viver-o-cancer/noticia/2024/08/12/com-ia-diagnostico-de-cancer-fica-mais-preciso-e-aumenta-chances-de-recuperacao.ghtml
[8] https://jornal.usp.br/artigos/inteligencia-artificial-responsavel-para-acessibilidade-e-inclusao-no-ensino-superior/
[9] SOUZA, C. A. de; SAINÇA, L. G. K.; CORTES, V. C. G.; TAFURI, N. F. O PAPEL DA INTELIGENCIA ARTIFICIAL NA DESCOBERTA E DESENVOLVIMENTO DE FÁRMACOS. Brazilian Journal of Implantology and Health Sciences , [S. l.], v. 6, n. 11, p. 650–663, 2024. DOI: 10.36557/2674-8169.2024v6n11p650-663. Disponível em: https://bjihs.emnuvens.com.br/bjihs/article/view/4185. Acesso em: 24 maio. 2025.
[10] Dados do INAF – Indicador de Alfabetismo Funcional. Disponível em: https://alfabetismofuncional.org.br/alfabetismo-no-brasil/. A pesquisa mostra que, em 23 anos de medições (2001-2024), embora o analfabetismo tenha caído de 12% para 4-7% e o nível Rudimentar tenha reduzido de 27% para cerca de 20%, a proporção de brasileiros no nível Proficiente permanece inalterada em torno de 12% desde o início da série histórica.
[11] https://jornal.usp.br/atualidades/tecnologias-facilitadoras-como-a-ia-podem-prejudicar-a-capacidade-cognitiva/
[12] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=507120&ori=1
[13] https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-lanca-maria-ferramenta-de-inteligencia-artificial-que-dara-mais-agilidade-aos-servicos-do-tribunal/
[14] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/11022025-STJ-lanca-novo-motor-de-inteligencia-artificial-generativa-para-aumentar-eficiencia-na-producao-de-decisoes.aspx
[15]VATICANO. Dicastério para a Doutrina da Fé; Dicastério para a Cultura e a Educação. Antiqua et nova: nota sobre a relação entre a inteligência artificial e a inteligência humana. Cidade do Vaticano, 28 jan. 2025. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_ddf_doc_20250128_antiqua-et-nova_en.html. Acesso em: 30 maio 2025.
[16] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 30 maio 2025. ↩
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