Opinião

IA e contratos: papel do 'mediador' entre racionalidade normativa e racionalidade algorítmica

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  • é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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6 de junho de 2025, 7h01

O uso da inteligência artificial na prática jurídica — e, em particular, na esfera contratual — tem se consolidado como um instrumento relevante em diversas fases do ciclo contratual e negocial. Desde a geração automatizada de minutas e a padronização de cláusulas contratuais, passando pela identificação de riscos jurídicos, inconsistências lógicas e potenciais violações a normas cogentes, até a aplicação em atividades voltadas à implementação regulatória e à observância das boas práticas de compliance, a IA apresenta múltiplas funcionalidades.

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Por um lado, tais recursos tecnológicos promovem ganhos significativos de eficiência operacional; por outro, suscitam desafios relevantes no tocante à segurança jurídica, à autonomia da vontade das partes, à tutela da parte vulnerável e à adequada imputação de responsabilidades em casos de erro, omissão ou dano decorrente do uso da tecnologia [1].

Em particular, a aplicação da IA impõe uma reinterpretação crítica dos princípios do direito contratual clássico, como a boa-fé objetiva, a função social do contrato, a simetria (ou assimetria) informacional e o dever de cooperação. Nesse novo contexto, o papel do jurista se redefine: deixa de ser meramente o de intérprete das normas jurídicas para assumir também a função de “mediador” interprete entre a racionalidade normativa e a racionalidade algorítmica, capaz de transitar entre a lógica jurídica e a lógica algorítmica [2].

Torna-se, assim, ainda mais relevante a necessidade de (re)definir com precisão a interpretação acerca o interesse jurídico das partes e sua vontade real e comum. A correção da interpretação contratual deve ser aferida, antes de tudo, em função de sua conformidade com a intenção concreta dos contratantes, e não apenas de sua coerência com padrões formais ou lógicos.

Em um cenário no qual algoritmos tendem a operar por aproximações sintáticas e estatísticas, muitas vezes incapazes de captar com precisão conceitos jurídicos indeterminados ou princípios normativos complexos, a tarefa interpretativa requer, e vai requerer, um esforço hermenêutico renovado: a letra do contrato não há mais a ser interpretada como um fim em si, mas um verdadeiro instrumento a serviço da reconstrução da vontade contratual genuína. Essa abordagem implica, portanto, uma reelaboração dos paradigmas interpretativos tradicionais, exigindo do jurista uma postura crítica diante dos limites e das opacidades da IA no campo jurídico [3].

Essa exigência interpretativa se justifica, sobretudo, diante do crescente grau de sofisticação com que a IA vem operando nos mais diversos domínios da vida social. Ao ser empregada para recomendar conteúdos, estabelecer conexões, classificar informações e conceitos ou antecipar preferências e objetivos dos usuários, a IA não apenas interage com os sujeitos, mas influencia ativamente os seus padrões decisórios. Com isso, ela acaba por moldar — de forma silenciosa, porém estrutural — os próprios ordenamentos sociais, econômicos e comerciais, tanto no plano interno quanto no transnacional [4].

Nesse contexto, o reforço automatizado de escolhas individuais e coletivas gera externalidades normativas que impactam diretamente a interpretação e a aplicação dos contratos, exigindo um olhar mais atento sobre a verdadeira vontade das partes, especialmente quando intermediada por sistemas algorítmicos. Tal dinâmica impacta diretamente os mecanismos de formação da vontade negocial e, consequentemente, o próprio regime jurídico dos contratos, exigindo uma reavaliação dos pressupostos clássicos — principalmente — da autonomia privada, da boa-fé e do equilíbrio contratual [5].

Preocupações

As principais preocupações atuais concentram-se, portanto, em linhas gerais, em dois eixos distintos, embora interligados: de um lado, a opacidade das fontes e dos processos generativos da inteligência artificial, que compromete a transparência e a auditabilidade dos seus resultados; de outro, os limites jurídicos objetivos dentro dos quais a própria IA pode atuar [6].

No que tange ao primeiro eixo, uma das preocupações mais relevantes associadas ao uso da IA reside no risco de distorções em seus algoritmos. Como os sistemas de IA se desenvolvem a partir do treinamento com grandes volumes de dados históricos, eventuais distorções, assimetrias ou preconceitos presentes nesses dados tendem não apenas a ser reproduzidos, mas também potencializados, reconfigurados e, em certos casos, instrumentalizados.

Esse fenômeno adquire contornos ainda mais delicados diante da crescente dificuldade de rastrear e corrigir tais desvios — sobretudo quando introduzidos de forma sutil ou não intencional por meio das instruções fornecidas pelos próprios usuários (os chamados prompts). O desafio, portanto, ultrapassa a dimensão técnica mas alcança a verdadeira esfera ética e jurídica.

Os processos decisórios assim como a elaboração automatizada de cláusulas e modelos contratuais levantam, portanto, questões relevantes quanto à transparência. Muitos sistemas de IA funcionam como “caixas-pretas”, ou seja, seus mecanismos decisórios não são plenamente acessíveis nem compreensíveis, nem mesmo para seus próprios desenvolvedores. Essa falta de transparência é particularmente problemática no contexto jurídico, onde se exige que toda decisão seja racional, rastreável e devidamente justificada — especialmente quando se trata de sua validade e eficácia em um contrato [7].

É, outrossim, importante observar que a IA se não instruída corretamente — tendo em consideração aspectos fáticos e jurídicos da negociação — pode permitir tratamentos discriminatórios a favor da parte que se vale de sistemas de IA com o intuito de se eximir dos compromissos contratuais ou de limitar os efeitos jurídicos decorrentes da particular forma de constituição do vínculo.

Os efeitos jurídicos decorrentes do contrato se produzem quando correspondem à manifestação da vontade das partes, em conformidade com o princípio da autonomia privada. Tal premissa implica que nenhuma parte pode ser obrigada a suportar efeitos jurídicos não queridos devendo-se considerar, para tanto, os efeitos que poderiam ser razoavelmente previstos à luz da configuração concreta da relação contratual estabelecida [8].

E, no que tange ao segundo eixo, há a se lembrar que a autonomia contratual encontra limites não apenas nas próprias limitações estruturais e operacionais da IA, mas também nas próprias normas cogentes do ordenamento jurídico. Sempre que a Lei impuser determinados efeitos ao contrato — ou, inversamente, excluir ou restringir os efeitos desejados pelas partes —, prevalecerá a norma legal, em respeito à Ordem Pública, à proteção de interesses juridicamente tutelados e à preservação do equilíbrio contratual.

O princípio do equilíbrio contratual projeta seus efeitos já na fase de planejamento, influenciando as decisões relativas ao momento mais adequado para a realização das atividades de contratação e de execução. A escolha temporal dessas etapas interfere diretamente na estabilidade da relação contratual, afetando tanto o equilíbrio entre as prestações quanto a possibilidade de preservação do contrato ao longo do tempo — sobretudo em contextos complexos ou de longa duração [9].

À luz do princípio do equilíbrio contratual, por exemplo, não é suficiente considerar apenas as condições econômicas vigentes no momento de abertura do procedimento ou da celebração do contrato. Torna-se necessário adotar uma abordagem que leve em consideração a possível alteração  dessas condições ao longo de toda a vigência da relação contratual, considerando os cenários plausíveis de desenvolvimento do mercado.

Além das previsões legais e das projeções de mercado, é portanto igualmente necessário considerar as previsões contratuais próprias, expressas geralmente por meio de cláusulas abertas de relevância sistêmica, como — por exemplo — a da boa-fé objetiva e a da função social do contrato. Tais cláusulas, embora não se traduzam em disposições minuciosas, atuam como diretrizes interpretativas e integrativas do pacto, orientando a conduta das partes e contribuindo para a conformação do equilíbrio contratual segundo exigências da vontade das partes, de cooperação, proteção mútua e adaptação funcional do vínculo às transformações do contexto econômico e social [10].

A questão que se coloca, portanto, não diz respeito apenas à utilização da inteligência artificial na resolução de litígios — em uma perspectiva macro sistêmica do Ordenamento Jurídico  —, mas também à definição e à aplicação do conteúdo contrato, e mais especificamente das cláusulas contratuais abertas — em uma perspectiva microeconômica do Ordenamento Jurídico, como aquelas fundadas na boa-fé objetiva e na função social do contrato.

Em ambos os casos, o objetivo fundamental deve permanecer centrado na concretização da Justiça material do acordo, com base na consideração das circunstâncias específicas e dos fatos devidamente demonstrados. Assim como incumbe ao Juiz aplicar o Direito de forma contextualizada e substancial, também a eventual incorporação da IA aos processos de formação e interpretação contratual deve estar subordinada a critérios de equidade material, e não a uma leitura meramente literal ou automatizada do texto contratual. Tal exigência se justifica pelo fato de que os parâmetros de Justiça contratual — como a boa-fé, a função social do contrato e o equilíbrio entre as partes — já se encontram, em larga medida, positivados nas legislações contemporâneas e amplamente consolidados tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência [11].

Transparência das fontes da IA e respeito do direito material conteúdo no Ordenamento Jurídico  são, portanto, requisitos indispensáveis para permitir um controle ético dos algoritmos capazes de orientar a tecnologia em vez de simplesmente segui-la. Nesse cenário, recai sobre a figura do jurista — ser humano — seja como juiz, advogado, professor, consultor ou profissional do Direito Empresarial — a responsabilidade de atuar como mediador-intérprete entre racionalidades distintas: a jurídica e a algorítmica. Cabe-lhe, portanto, aplicar e realizar a ética nas relações intersubjetivas, especialmente por meio da cláusula geral da boa-fé objetiva, assegurando o equilíbrio necessário entre a segurança jurídica e a flexibilidade interpretativa exigida pelos contínuos e acelerados avanços tecnológicos.

________________________

[1] RUSSEL, Stuart; NORVIG, Peter. Artificial Intelligence: a modern approach. Pearson Series, 2020.

[2] CORASANITI, Giuseppe. Tecnologie intelligenti. Rischi e regole. Milano, Mondadori Università, 2023.

[3] KLEINBERG, Jon; LUDWIG, Jens; MULLAINATHAN, Sendhil; SUNSTEIN, Cass R.: Discrimination in the Age of Algorithms. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research, 2019.

[4] KISSINGER, Henry; SCHMIDT, Eric; HUTTENLOCHER, Daniel. The Age of AI: And our Human Future, Hodder And Stoughton Ltd., UK, 2022.

[5]  MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O Novo Regime das Relações Contratuais, São Paulo, RT, 2019.

[6] MENDES, Laura Schertel, aqui

[7] Cf. aqui

[8] TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de. Autonomia privada, liberdade existencial e Direitos Fundamentais. Forum 2019.

[9] FERRONI, Lanfranco. Equilibrio delle posizioni contrattuali ed autonomia privata. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 2002.

[10] IRTI, Natalino. L’ordine giuridico del mercato. Bari, Laterza, 2016.

[11] MARIGHETTO, Andrea. O acesso ao contrato. Sentido e extinção da função social do contrato. São Paulo, Quartier Latin, 2012.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

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