Democracia interna dos partidos e governança eleitoral: STF no fortalecimento do sistema político
6 de junho de 2025, 16h22
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADI 5.875, ajuizada pelo procurador-geral da República, que limitou a quatro anos o funcionamento dos órgãos provisórios dos partidos políticos brasileiros, representa, sem dúvida, um marco histórico na consolidação da democracia interna partidária no país. É, muito provavelmente, o ato institucional mais efetivo já realizado pela Suprema Corte em favor da democratização dos partidos, com reflexos diretos sobre a qualidade do sistema representativo.
Não é uma decisão trivial. Ela é consequência direta do papel central que o STF exerce na governança eleitoral brasileira, fenômeno que analiso na obra O Supremo Tribunal Federal e a Governança Eleitoral Brasileira [1]. Trata-se de uma atuação que não resulta, como alguns podem sugerir, de mero ativismo judicial, mas de um desenho institucional que, na prática, transfere à Corte constitucional brasileira a (co)responsabilidade pela definição das regras estruturantes do jogo democrático — especialmente quando o Congresso Nacional, por razões de autopreservação, abdica desse dever.
O pano de fundo é revelador. No julgamento da ADI 6.230, o STF já havia afirmado que a autonomia dos partidos para definir a duração de seus diretórios — permanentes ou provisórios — deveria se conformar aos princípios republicano e democrático, com respeito à alternância de poder. Contudo, naquela oportunidade, a corte se absteve de fixar um prazo objetivo, acreditando aos próprios partidos o dever de auto-regulação dentro de parâmetros de razoabilidade.
O que se viu, desde então, foi exatamente o oposto. Nenhuma medida concreta foi adotada pelas agremiações para se adequar às balizas estabelecidas pela decisão anterior. Ao contrário, a prática da perpetuação dos diretórios provisórios — mecanismos que, sabidamente, concentra poder e bloqueiam a participação interna — seguiu vigente como regra, não como exceção.
Diante desse quadro, a Corte precisou ir além. A partir do voto do ministro Flávio Dino, seguido pela maioria, o Supremo aplicou a técnica da interpretação conforme à Constituição, fixando um limite máximo de quatro anos para a vigência dos diretórios provisórios, sem qualquer possibilidade de prorrogação. Mais do que reafirmar os princípios da democracia interna, a decisão lhes conferiu efetividade, convertendo princípios em normas operativas e vinculantes.
Esse movimento não é isolado, nem surpreendente. Como sustento em minha obra, o STF exerce um papel central no que a doutrina denomina rule making da governança eleitoral [2]. No Brasil, esse papel decorre diretamente de uma combinação de fatores: de um lado, a Constituição de 1988, que conferiu ao Supremo a competência exclusiva para exercer o controle concentrado de constitucionalidade; de outro, a sistemática omissão legislativa, especialmente quando a matéria em debate colide com os interesses de manutenção do poder dentro dos próprios partidos.
O Legislativo brasileiro, historicamente, tem se mostrado refratário a qualquer iniciativa que promova a democratização interna das agremiações. Isso ocorre por uma razão elementar: partidos oligárquicos, estruturados a partir de diretórios provisórios indefinidamente renovados, são funcionais à perpetuação das elites políticas que controlam o processo legislativo. A resistência à mudança é estrutural, não conjuntural.

Nesse contexto, a decisão do STF transcende o debate jurídico. Ela assume contornos de um ato de defesa da própria República, na medida em que reafirma que a democracia interna partidária não é um detalhe formal, mas um pressuposto substancial da legitimidade do sistema representativo. Não há democracia possível sem partidos minimamente democráticos.
Ao contrário do que sustentam alguns críticos do protagonismo judicial, não se trata, aqui, de uma ingerência indevida do Judiciário sobre funções típicas do Legislativo. Trata-se, isto sim, do exercício legítimo — e, a rigor, necessário — da jurisdição constitucional, que impede que a omissão legislativa continue a operar como uma forma disfarçada de perpetuação de estruturas de poder antidemocráticas.
Mais do que declarar princípios, o Supremo, dessa vez, adotou uma postura consequencialista. A decisão impôs sanções reais e severas. Diretórios provisórios que ultrapassarem o prazo de quatro anos perderão, além da validade de seus atos, o acesso ao Fundo Partidário e ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha, além de ficarem impedidos de participar do processo eleitoral na circunscrição afetada. Não se trata de uma recomendação, mas de uma ordem vinculante, dotada de eficácia imediata, tão logo publicada a ata de julgamento.
Avanço duplo
Se há espaço para crítica, ela não deve ser dirigida à intervenção do STF, mas, sim, à inaceitável omissão do Congresso Nacional, que, uma vez mais, se revelou incapaz de produzir normas capazes de enfrentar seus próprios conflitos de interesse. O sistema político brasileiro tem sido, com frequência desconfortável, moldado mais por decisões da Suprema Corte do que por leis aprovadas no Parlamento.
Isso, por óbvio, gera tensões legítimas em termos de separação de poderes, sobretudo quanto à legitimidade do processo de elaboração normativa. Mas essa é uma tensão que não pode ser debitada ao Judiciário, e sim à letargia — quando não à conveniência — do Legislativo.
O fato é que essa decisão do Supremo Tribunal Federal, que limita temporalmente os diretórios provisórios, representa não apenas um avanço jurídico, mas também um avanço civilizatório. Ela reafirma, de forma inequívoca, que a democracia não se esgota no ato de votar, mas começa na forma como se estruturam aqueles que pretendem disputar o poder para representar os interesses do povo.
A democracia não é compatível com partidos que operam como feudos privados, dirigidos por comissões provisórias eternizadas. A partir de agora, não poderá mais sê-lo, pelo menos não sob o olhar da Constituição e da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal.
Este caso, talvez como poucos na história recente, ilustra com precisão o papel central do Supremo Tribunal Federal no nível de elaboração das regras (rule making) da governança eleitoral brasileira. O episódio evidencia que nem mesmo o Tribunal Superior Eleitoral — órgão de cúpula da administração eleitoral e tradicionalmente responsável pela regulamentação do processo — se mostrou suficiente para assegurar a efetividade de uma norma que limitasse a perpetuação dos diretórios provisórios.
A tentativa do TSE, por meio da Resolução nº 23.571/2018, de estabelecer um limite temporal claro para a vigência das comissões provisórias, foi rapidamente esvaziada pelo Congresso Nacional, que editou a Lei nº 13.831/2019, revogando a restrição. O episódio revela, de forma cristalina, a capacidade de captura do processo legislativo por interesses partidários hegemônicos, bem como a fragilidade normativa das resoluções administrativas da Justiça Eleitoral diante da pressão política.
Diante desse cenário, evidencia-se que, no desenho institucional brasileiro, a estabilidade e a integridade das regras fundamentais do processo democrático dependem, em larga medida, da atuação da jurisdição constitucional exercida pelo STF. Nesse sentido, é a Suprema Corte, e não os órgãos [ordinários] da gestão eleitoral, quem detém, em última instância, o monopólio da definição dos parâmetros estruturantes da competição democrática.
Assim, a governança eleitoral brasileira é marcada por uma assimetria institucional: quando se trata de regras que contrariem interesses consolidados no âmbito político, nem o TSE tem plena capacidade, nem o Congresso tem disposição para promover os avanços necessários. Resta, então, ao Supremo Tribunal Federal o papel de garantidor da integridade do processo democrático, atuando não apenas como intérprete, mas como verdadeiro arquiteto das regras da democracia.
Notas e referências bibliográficas
1. FÉRRER, Thiago Mendes de Almeida. O Supremo Tribunal Federal e a Governança Eleitoral Brasileira. Curitiba: Íthala, 2023.
2. MOZAFFAR, Shaheen; SCHEDLER, Andreas. The comparative study of electoral governance – Introduction. International Political Science Review, v. 23, n. 1, 2002, p. 5-27.
3. ADI 6.230, rel. min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 03.08.2022, DJe 16.08.2022.
4. Decisão na ADI 5.875, julgamento finalizado em 2025, Plenário do STF, rel. min. Luiz Fux.
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