Opinião

Recusa da Corte Internacional de Justiça de julgar o genocídio no Sudão

Autor

  • é pesquisadora do Stylus Curiarum — Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG e mestranda em Direito Internacional pelo Programa de Pós-Graduação da UFMG.

    Ver todos os posts

6 de junho de 2025, 15h21

Em 5 de maio de 2025, a Corte Internacional de Justiça (CIJ ou Corte) proferiu Ordem de Medidas Provisórias no caso iniciado pelo Sudão contra os Emirados Árabes Unidos (EAU), referente à aplicação da Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio de 1948.

Ayman Suliman/ONU

Nessa decisão, a Corte rejeitou o pedido de indicação de medidas cautelares em virtude da ausência de jurisdição prima facie sobre a questão, uma vez que os EAU possuem reserva quanto à cláusula compromissória da Convenção (artigo IX). De maneira inovadora, na mesma decisão, o caso foi retirado da Lista Geral da CIJ antes mesmo de se analisar as objeções preliminares das partes.

Pretende-se aqui analisar criticamente o raciocínio empregado pela Corte não apenas para acatar a argumentação dos Emirados Árabes sobre a inexistência de jurisdição, mas também para, como consequência direta dessa constatação, excluir o caso de sua lista geral. Nesse sentido, argumenta-se que, embora a existência da reserva realmente pareça afastar a jurisdição prima facie sobre questão — justificando, portanto, a recusa em ordenar medidas provisórias —, a completa descontinuação do caso não era necessária em (ou condizente com) essa etapa do procedimento na CIJ, além de ter impedido o avanço de discussões sobre as possibilidades e os limites à formulação de reservas a relevantes tratados de direitos humanos, como a Convenção de Genocídio.

Genocídio perante um tribunal internacional

Em março de 2025, o Sudão instaurou procedimento na CIJ contra os Emirados Árabes Unidos sob a alegação de que violações das obrigações da Convenção de Genocídio teriam sido cometidas por meio de ações e omissões deste Estado diante do alegado genocídio cometido pelas Forças de Apoio Rápido (em inglês, RSP) e por outras milícias ligadas aos EAU contra o grupo étnico Masalit no Estado sudanês de Darfur Ocidental.

Desde 2023, as RSP estão em conflito contra as Forças Armadas Sudanesas (em inglês, SAF) e praticaram inúmeros atos de violência contra a população civil, sobretudo contra a população Masalit, como assassinatos em massa, estupros e tortura de prisioneiros, além de perpetuarem o discurso racialmente discriminatório contra esse grupo étnico. Assim, no caso perante a Corte, a alegação do Sudão é, em suma, de que os EAU, ao apoiarem as RSP, atuam, em termos amplos, como cúmplices de um genocídio cometido contra a população civil Masalit em Dafur.

Em sua petição, o Sudão baseou a jurisdição da Corte no artigo 36(1) de seu Estatuto — referente à jurisdição sobre questões previstas em tratados em vigor — e no artigo IX da Convenção, que prevê a submissão à CIJ de controvérsias entre suas partes relativas à sua interpretação, aplicação ou execução, bem como à responsabilidade de um Estado em matéria de genocídio. Trata-se de uma maneira muito comum de acessar a jurisdição da Corte. Esta foi, por exemplo, a forma pela qual o caso atualmente pendente entre Ucrânia e Rússia, e o entre Croácia e Sérvia, de 2015, ambos relativos à Convenção de Genocídio, foram levados perante à jurisdição da CIJ.

Na mesma oportunidade em que instaurou o procedimento, o Sudão formulou pedido de indicação de medidas provisórias a fim de que os EAU tomassem todas as medidas em seu poder para prevenir atos abarcados pela proibição do genocídio e garantissem que quaisquer organizações por eles apoiadas tampouco o fizessem.

Ordem de medidas provisórias: validade da reserva à Convenção

As medidas provisórias na CIJ visam evitar danos aos direitos envolvidos na questão, enquanto não se profere uma decisão de mérito. Segundo a jurisprudência da própria Corte — reafirmada em casos recentes, como o entre Palestina e Israel, também sobre a Convenção de Genocídio, a concessão dessas medidas depende da existência de jurisdição prima facie da Corte sobre a disputa, da urgência da medida e da plausibilidade do direito que se pretende proteger.

Segundo o Sudão, os critérios jurisprudenciais para a indicação dessas medidas estariam preenchidos, uma vez que a controvérsia se enquadraria no escopo protetivo da Convenção de Genocídio, o que conferiria jurisdição prima facie à Corte, a qual não seria afastada pela reserva formulada pelos Emirados Árabes ao artigo IX da Convenção, dada a formulação vaga e indeterminada dessa e sua incompatibilidade com os objetivos e propósitos do tratado. Ademais, o direito a ser protegido seria plausível por se tratar da comissão de atos de genocídio contra a população civil sudanesa por grupos apoiados pelos EAU, de forma que a urgência urgência das medidas seria justificada pelo risco de dano irreparável a direitos humanos dessa população.

Spacca

Assim, em sua Ordem de 5 de maio, a Corte analisou o cabimento desse pedido, o que tinha como primeira condição a existência de jurisdição prima facie sobre a questão..

Em seu processo decisório sobre a jurisdição prima facie, a CIJ partiu da reserva formulada pelos Emirados Árabes à cláusula compromissória da Convenção de Genocídio (artigo IX), que não sofrera objeções de quaisquer outros Estados-partes, incluindo o requerente. Tal ausência de objeção foi ressaltada pela Corte na decisão, de modo que esta, apesar de não discutir as possíveis implicações disso, parece sugerir que houve uma aceitação tácita da reserva à época de sua formulação, o que contraria a presente argumentação do Sudão acerca de sua invalidade. Assim, a questão que se colocou diante da Corte era, em última análise, discutir a validade da reserva para, então, decidir se haveria jurisdição baseada na Convenção de Genocídio ou se esta seria afastada perante a ausência de consentimento dos Emirados Árabes em submeter à CIJ controvérsias sobre a interpretação e a aplicação desse tratado em que esse Estado estivesse envolvido.

Quanto à reserva, o Sudão alegou ser ela vaga e inespecífica, uma vez que os EAU não esclareceram as exatas condições em que a jurisdição da Corte deve ser afastada sobre as controvérsias provenientes do tratado. Ademais, segundo o requerente, mesmo que tal obscuridade impedisse a jurisdição prima facie, ela subsistiria em virtude da invalidade da reserva, que seria incompatível com o objeto e o propósito da Convenção.

Os Emirados Árabes Unidos, por sua vez, sustentaram a clareza e a precisão da formulação da reserva, que expressaria a intenção dos EAU de não serem obrigados pelo artigo IX. Em adição, evocaram a jurisprudência pregressa da Corte, tendente a aceitar reservas a esse dispositivo.

Perante tais alegações, a Ordem constatou a clareza dos termos da reserva, que se refere à submissão de controvérsias sobre a interpretação, a aplicação e o cumprimento da Convenção à CIJ, o que inclui disputas sobre a responsabilidade dos Estados-partes. Ademais, decidiu por sua validade, uma vez que a reserva não impacta obrigações substantivas relacionadas à proibição do genocídio, como confirmado pela jurisprudência do Corte sobre o mesmo dispositivo normativo. Consequentemente, a CIJ concluiu não deter jurisdição baseada no art. IX sobre quaisquer conflitos em que os EAU estivessem envolvidos, inclusive o presente. Nas palavras da Corte:

A Corte considera que a reserva feita pelos EAU ao artigo IX da Convenção de Genocídio (…) foi formulada em termos claros na medida em que se refere “à submissão de disputas… relativas à interpretação. aplicação e cumprimento da Convenção à Corte Internacional de Justiça”. (parágrafo 29 da Ordem de 5 de Maio).

A Corte então considera que a reserva dos EAU tem o efeito de excluir o artigo IX das previsões da Convenção de Genocídio que vigoram entre as partes (…) esse artigo não pode constituir, prima facie, uma base para a jurisdição da Corte no presente caso. (parágrafos 32 e 33 da Ordem de 5 de Maio).

Desse modo, por 14 votos a 1, rejeitou-se o pedido de medidas provisórias do Sudão por falta de jurisdição prima facie. No mesmo sentido, ante a ausência manifesta de jurisdição, que impediria a adjudicação do mérito do caso, decidiu-se, por nove votos a sete, removê-lo da Lista Geral da CIJ.

Dissidência sobre retirada da controvérsia da Lista Geral da Corte

A ausência de jurisdição prima facie, declarada pelos juízes quase por unanimidade — um sinal importante na Corte da Haia — parece estabilizar contestações às reservas a cláusulas de jurisdição da Corte. Decisões anteriores da CIJ já reconheceram a validade de reservas ao mesmo dispositivo, como ocorreu no caso entre RDC e Ruanda (2006). À primeira vista, portanto, não era possível afirmar que a Corte tivesse jurisdição sobre a controvérsia, pois um dos Estados nela envolvido afastou a cláusula compromissória da Convenção de Genocídio que garantiria tal competência.

A tese que estava em jogo era de que na verdade a reserva dos Emirados seria inválida porquanto incompatível com os objetivos e o propósito do tratado. Contudo, tal discussão mereceria uma discussão para além da jurisdição prima facie necessária para a emissão de medidas provisórias. Tampouco as opiniões dissidentes e votos individuais dos juízes apresentadas à Ordem de 5 de maio se opõem à rejeição do pedido de medidas provisórias.

Contudo, nota-se uma significativa divergência em relação ao momento no qual o caso deveria ser retirado da Lista Geral da Corte.

Conforme pontuou o juiz Yusuf, assim como a opinião parcialmente dissidente formulada pelos juízes Bhandari, Charlesworth, Gómez Robledo, Cleveland, Tladi e pelo juiz ad hoc Simma, a jurisdição prima facie, única analisada em sede de medidas provisórias, é distinta da jurisdição que permite adjudicar o mérito do caso. Os pronunciamentos destacam inúmeros casos em que a Corte acatou os pedidos de medidas provisórias, mas, posteriormente, acolheu a objeção preliminar de ausência de jurisdição.

Ademais, as opiniões individuais dos juízes e juízas também citam casos em que, a despeito de não haver jurisdição prima facie, prosseguiu-se para a análise do mérito — exemplos que parecem contrariar mais diretamente o raciocínio da maioria Corte no caso presente.

Nesse sentido, uma decisão interessante é aquela que envolveu a controvérsia entre Iugoslávia e Espanha em 1999, relativa à legalidade do uso da força pela requerida contra a requerente. Nessa ocasião, a jurisdição prima facie havia sido negada por não ser possível determinar, em sede de medidas provisórias, se as condutas atribuídas à demandada se enquadrariam ao escopo material da Convenção de Genocídio.

Por um lado, essa questão parece distinta da presente, na medida em que naquela era possível aplicar a cláusula compromissória da Convenção, mas concluiu-se ser necessária dilação probatória para que a adequação material da disputa ao tratado (e, portanto, à cláusula) fosse verificada. A análise das objeções preliminares, por consequência, poderia atingir uma decisão distinta da obtida prima facie, o que talvez não se possa dizer diante da completa impossibilidade de aplicação do artigo IX a uma das partes no caso presente.

Por outro lado — e nesse sentido segue a argumentação dos juízes dissidentes —, a própria validade da reserva e, logo, o uso da cláusula como base da jurisdição no caso concreto, poderia ser discutida em fases posteriores do processo. Nesse sentido, o juiz Yusuf observa, e com ele concorda o juiz ad hoc Simma, que descontinuar o processo na etapa em que estava impediu às partes de se pronunciarem devidamente sobre a validade da reserva.

A descontinuação do caso com base em uma Ordem de Medidas Provisórias, todavia, como aponta o juiz Yusuf, não encontra embasamento no Estatuto ou nas Regras da Corte. Além disso, como salientam os juízes Yusuf, Simma e Gómez Robledo, assim como a opinião conjunta, a decisão da Corte tornou excessivamente onerosa para o demandante a formulação de pedido de medidas provisórias, haja vista que, caso a Ordem em questão não existisse, o requerente teria a oportunidade de expor mais amplamente sua argumentação em sede de objeções preliminares para embasar a existência de jurisdição. Assim, a decisão em cotejo teria representado uma quebra das expectativas processuais das partes e da boa administração da Justiça, uma vez que, para além da aplicação indevida das regras de processo da Corte, deu um efeito ao pedido cautelar que era imprevisto ao requerente que o formulou.

Ainda, em análise que transcende meramente os interesses das partes envolvidas no caso, a CIJ, conforme critica o juiz Yusuf, perdeu uma oportunidade de se debruçar sobre a validade de reservas como a feita pelos EAU. Nesse contexto, sustentam o juiz ad hoc Simma e o juiz Goméz Robledo que uma evolução no direito internacional desde a última decisão da Corte sobre o tema (no caso entre RDC e Ruanda) poderia justificar a alteração da sua jurisprudência — análise que, como afirmado, também caberia às etapas seguintes do processo.

Destaca-se que a possível mudança na forma de interpretar a Convenção de Genocídio seria de extrema relevância em razão tanto da importância dos direitos humanos por ela protegidos quanto da possibilidade de se aplicar as regras reinterpretadas casos futuros, o que alteraria substancialmente a validade de diversas reservas formuladas a esse tratado. Nesse sentido, a modificação de um paradigma interpretativo desta Convenção pela Corte é tem grande impacto, como salienta o juiz Goméz Robledo, porque o instrumento não dispõe de mecanismos próprios de implementação, tendo a CIJ, portanto, grande participação em sua interpretação, aplicação e execução.

Precedente ou incertezas sobre a reserva?

Em resumo, as críticas à Ordem de 5 de maio, expressas sobretudo nas opiniões dissidentes apresentadas, centram-se principalmente na exclusão do caso da Lista Geral da Corte.

Apesar de, em primeira análise, a reserva dos EAU afastar a jurisdição da CIJ sobre o caso, tal conclusão poderia ser alterada, após oportunizar-se o pronunciamento mais extensivo das partes sobre a matéria, mediante eventual constatação de evolução normativa que possibilitasse determinar a invalidade da reserva e, logo, a alteração de posicionamento em relação à jurisprudência pregressa da Corte.

Nesse contexto, não se sabe qual seria a decisão final da CIJ em termos de jurisdição caso o processo tivesse avançado. Contudo, sustenta-se que, dada à relevância da Convenção de Genocídio, o papel da Corte em sua interpretação, a existência de controvérsia entre as partes sobre a validade da reserva e a ausência de previsão normativa no Estatuto ou nas Regras da CIJ no sentido de descontinuar o processo com base em Ordem de Medidas Provisórias, não cabia a exclusão sumária do caso em cotejo, o que é sem prejuízo da rejeição do pedido cautelar do Sudão.

Autores

  • é pesquisadora do Stylus Curiarum — Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG e mestranda em Direito Internacional pelo Programa de Pós-Graduação da UFMG.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!