Contratação direta e o artigo 337-E CP: sobre irregularidade administrativa e ilícito penal
5 de junho de 2025, 16h17
O crime de contratação direta ilegal, tipificado no Artigo 337-E do Código Penal pela novel Lei nº 14.133/2021, em substituição ao antigo artigo 89, da Lei 8.666/93, pune o agente público que admite, possibilita ou dá causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei. Trata-se de norma penal em branco heterovitelina, pois que carece da complementação dada pelos artigos 72 a 75 da Lei 14.133/2021.
É crime material e de dano, cujo bem jurídico tutelado é, para a maior parte da doutrina, a própria administração pública [1]. Já Helena Regina Lobo da Costa [2] observa se difícil vislumbrar, na hipótese do artigo 337-E do CP, uma relação minimamente concreta entre a ofensividade do tipo e a administração pública em si considerada e adverte “a figura (do art. 337-E) não representa diretamente tutela do patrimônio púbico , já que não exige, como elemento típico, o prejuízo patrimonial da administração, tampouco finalidade de causa-lo ou o perigo de sua ocorrência” pelo que defende, prima facie, que, como regra, a livre concorrência melhor representante do bem jurídico lesado.
Aliás, a doutrina de Roxin mantém-se firme no sentido de nem todo ente abstratamente conceituado — como o é a administração pública — podem ser alçados à bens jurídicos tutelados criminalmente, o que nos permite defender que, de fato, a livre concorrência (ou a igualdade de condições dos concorrentes) e, também, a administração pública representada pelos princípios basilares que a norteiam (na forma do artigo 37 da CF) nos casos em que há, de fato, efetiva lesão ao interesse público.
A primeira indagação, sob a ótica da imputação objetiva, refere-se à criação ou incremento de um risco juridicamente proibido. A contratação direta fora das hipóteses legais, por si só, já representa a violação de uma norma administrativa — a regra da licitação — e, consequentemente, a criação de um risco não permitido e potencialmente ofensivo ao objeto jurídico tutelado.
Certo de que a teoria da imputação objetiva exige que esse risco não permitido seja juridicamente relevante, surge, então, a questão: seria toda e qualquer contratação direta formalmente ilegal apta a configurar o risco relevante exigido pelo tipo penal? Ou seria necessária uma análise casuística — portanto concreta e aprofundada — para se compreender satisfatoriamente se a tipicidade formal efetivamente comprometeu de forma significativa os bens jurídicos.
Do contrário, admitir-se-á a responsabilização criminal de todo aquele que, por exemplo, deixa de observar uma única das incontáveis formalidades exigidas para a instrução do processo de contratação pública, ainda que tal conduta seja manifestamente incapaz de traduzir um risco potencial penalmente à higidez da licitação.
A própria hermenêutica que deve ser aplicada sobre a norma penal ordena que se faça uma interpretação restritiva em casos tais, de tal modo que eventual falha escusável na instrução do processo licitatório ou, quiçá, o desatendimento de requisitos previstos em normas especiais e próprias de cada órgão público contratante não subsome, por si só, à figura delitiva em estudo. Há que se ter mais para a configuração do crime. Deve-se ter demonstrada a existência de um vício de iniciativa (ou de causa) aliado ao desvio de finalidade da contratação, isto é, a intencional subversão da finalidade de interesse público que legitima as contratações diretas [3].
A doutrina diverge sobre o ponto. Uma interpretação mais finalista, alinhada à natureza de perigo abstrato do crime, tenderia a considerar que a simples contratação fora das hipóteses legais já configura o risco proibido relevante, ainda que originada por uma falha ou inobservância meramente burocrática de determinada norma orientadora do processo licitatório em questão. Sob a ótica funcionalista, porém, poder-se-ia argumentar, por exemplo, que uma contratação direta por inexigibilidade, onde houve um erro formal na justificativa de inviabilidade de competição, mas a inviabilidade era materialmente inquestionável e o preço era compatível com o mercado, não criaria um risco juridicamente relevante para a moralidade ou isonomia, embora formalmente ilegal.
Imprecisões na lei
Nesse ponto, interessa observar que a própria Lei 14.133/2021 que serve ao novel tipo penal como complementação é, por vezes, demasiadamente imprecisa em seus conceitos. Cita-se, a exemplo, o artigo 75 da LIA que, em seu inciso VII, autoriza a dispensa da licitação em casos de grave perturbação da ordem. Há, na lei em estudo, a alocação de terminologias indeterminadas, vagas e imprecisas e que, por isso, demandam maior e mais detido estudo factual de cada situação concreta para se ter caracterizado (ou não) o descumprimento da regra estatuída na Lei 14.133/2021 e, só depois, se passar pelos critérios de imputação penal. Tal imprecisão legislativa — cada vez mais comum nos crimes de caráter econômico — dificulta a uniformização do entendimento jurisprudencial em casos de mesmíssima moldura fática, eis que delega ao intérprete a impossível tarefa de, ao final da instrução processual, dar concretude aos conceitos indeterminados previstos na norma legal.

Pensa-se, pois, que em caos tais deve-se ter não apenas a ilegalidade formal, mas a criação de um risco relevante e a verificação de que a conduta se insere no âmbito de proteção da norma, evitando a responsabilização por meras irregularidades administrativas ou por resultados desconectados do risco efetivamente criado pela ação do agente.
Complementarmente, a perspectiva funcionalista teleológica oferece um ferramental indispensável à análise da imputação objetiva no crime de contratação direta ilegal. Ao indagar sobre a função da norma penal e sua conexão com os fins político-criminais do Estado Democrático de Direito, o funcionalismo permite superar uma interpretação puramente formalista do Artigo 337-E, que poderia levar a resultados injustos ou desproporcionais. Daí porque questiona-se: a conduta do agente, ao admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses legais, frustrou materialmente essa finalidade protetiva? Ou tratou-se de uma mera irregularidade formal, sem aptidão para lesar ou colocar em perigo concreto os bens jurídicos tutelados?
Considere-se outro exemplo de uma contratação emergencial (hipótese de dispensa) em que o gestor, premido pela urgência real e comprovada, deixa de cumprir uma formalidade secundária no processo de justificativa, mas a contratação era indispensável, o preço era justo e não havia alternativa viável e a tempo. Uma análise puramente formal poderia levar à tipificação do artigo 337-E. Deve-se ponderar, porém, que, embora formalmente irregular, a conduta não frustrou a finalidade da norma (atender à emergência com probidade) e não se criou um risco relevante ao bem jurídico protegido, não havendo que se cogitar de responsabilização criminal.
Ademais, a perspectiva funcionalista auxilia na interpretação do elemento subjetivo (dolo). Não basta o dolo genérico de contratar diretamente sabendo da ilegalidade formal. É preciso que o agente atue com consciência da danosidade social de sua conduta, ou seja, que compreenda que sua ação representa um ataque relevante aos bens jurídicos protegidos. Uma interpretação funcionalista do dolo, alinhada à teoria da culpabilidade de Roxin (que a integra no conceito mais amplo de “responsabilidade”), exigiria essa consciência da ilicitude material, e não apenas formal.
Essa imprecisão legislativa, ao introduzir conceitos abertos e indeterminados como critérios para a configuração de tipos penais, transcende a mera dificuldade hermenêutica. Ela fomenta um pernicioso ambiente de insegurança jurídica para o servidor público, que se vê constantemente sob a ameaça de responsabilização criminal por condutas cuja ilicitude material é questionável ou de difícil delimitação prévia.
A ausência de contornos claros para a conduta proibida não apenas dificulta a atuação administrativa proba e eficiente, pautada pela busca do interesse público, como também, e de forma ainda mais grave, concede um poder excessivo aos órgãos de acusação e investigação. Munidos de normas penais excessivamente abertas, estes órgãos ganham uma margem discricionária desproporcional na interpretação e aplicação da lei, o que pode, lamentavelmente, ser instrumentalizado para fins alheios ao Direito Penal, incluindo a interferência indevida na gestão pública e nas decisões do Poder Executivo, por vezes mascarando objetivos espúrios sob o manto da persecução criminal.
Referências:
MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 9ª ed. São Paulo: Método, 2021, p. 1439.
COSTA, Helena Regina Lobo da. Crimes de Licitação e Contratações Públicas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 86.
COSTA, Helena Regina Lobo da. Crimes de Licitação e Contratações Públicas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 39.
[1] Código Penal Comentado, Cleber Masson, Editora Método 9ª Edição, pg. 1439.
[2] Crimes de Licitação e Contratações públicas. Revista dos Tribunais, 2ª Edição, pg 86.
[3] Crimes de Licitação e Contratações públicas. Revista dos Tribunais, 2ª Edição, pg 39.
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