Opinião

Sangria judicial nas MPEs: quando o processo executa a economia

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4 de junho de 2025, 18h30

A sangria judicial que recai sobre o capital de giro das micro e pequenas empresas (MPEs) constitui uma das formas mais cruéis e silenciosas de sufocamento econômico no Brasil. O capital de giro, na prática, é o sangue que irriga a operação diária de qualquer empresa. É dele que se extraem os recursos para pagamento de salários, cumprimento de obrigações fiscais, aquisição de insumos e manutenção da atividade produtiva. Sua retirada abrupta, por meio de bloqueios judiciais automáticos, representa uma ameaça direta à sobrevivência dessas organizações, especialmente num país onde 97% das empresas são MPEs e respondem por mais de 70% dos empregos formais.

Segundo levantamento do Sebrae em parceria com o IBGE (2023), mais de 60% das micro e pequenas empresas encerram suas atividades em até cinco anos. Entre os principais fatores de colapso apontados pelos empresários estão a escassez de crédito e os bloqueios judiciais de valores operacionais essenciais.

Apesar de sua centralidade econômica e social, o capital de giro ainda é tratado pelo Judiciário como um recurso ordinário, indistinto, sujeito ao mesmo crivo processual que se aplicaria a qualquer ativo de grande empresa ou devedores com capacidade de absorver impactos. A prática corrente da imobilização de valores em contas bancárias, via Sisbajud, sem qualquer ponderação prévia sobre a natureza desses valores ou sobre os efeitos concretos da medida, converte o processo executivo em instrumento de extermínio de negócios viáveis. O princípio da menor onerosidade da execução, insculpido no artigo 805 do CPC, e o dever legal de preservação da atividade empresarial, previsto no artigo 47 da Lei de Falências, são rotineiramente negligenciados.

Não é uma defesa à inadimplência

Não se trata de defender a inadimplência nem de buscar qualquer privilégio para o devedor. Trata-se de restabelecer a racionalidade jurídica e econômica da execução civil. O bloqueio automático de quantias que correspondem à totalidade da capacidade operacional de uma MPE equivale, na prática, a decretar-lhe a morte empresarial. Folhas de pagamento deixam de ser honradas, fornecedores cancelam contratos, linhas de crédito são encerradas e a espiral de insolvência se instala. Tudo isso por meio de decisões muitas vezes padronizadas, sem fundamentação individualizada, que ignoram a função econômica da empresa atingida.

O microempresário, em particular, é o elo mais frágil dessa equação. Sem acesso a assessoria jurídica contínua e com baixo grau de instrução técnica sobre contratos bancários, aceita condições draconianas impostas por instituições financeiras. Pressionado por metas de venda dos gerentes e envolto em contratos com cláusulas opacas, vê-se amarrado a obrigações insustentáveis. Quando, por fim, busca o Judiciário para reequilibrar sua relação contratual, é surpreendido por execuções que se materializam em bloqueios fulminantes. A ação revisional, instrumento legítimo para contestar cláusulas abusivas, é muitas vezes desvirtuada e confundida com manobra de má-fé.

O Judiciário, ao se omitir de uma análise concreta dos efeitos da constrição judicial, converte-se em coautor da falência. Ao priorizar a efetividade processual em detrimento da justiça material, perde-se de vista a função social da empresa, constitucionalmente assegurada. Cada bloqueio injustificado não é apenas um número na estatística de cumprimento de ordens judiciais: é um emprego perdido, uma empresa fechada, uma família desestruturada. A banalização dessa prática revela não apenas insensibilidade, mas também um distanciamento da realidade econômica nacional.

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Risco de processo automatizado

É imperativo que se revise essa lógica. A execução não pode ser um processo cego, automatizado, indiferente à realidade prática das partes. O juiz deve agir com prudência, sensibilidade e fundamentação específica, avaliando os impactos concretos de cada medida sobre a capacidade de funcionamento da empresa executada. O contraditório e a ampla defesa não são meras formalidades: são garantias que se aplicam com ainda mais vigor em contextos em que a própria existência da parte depende da cautela judicial.

Em julgados recentes, a jurisprudência começa a reconhecer a gravidade do problema. No REsp 1.666.542/SP, Tema Repetitivo 769, o Superior Tribunal de Justiça assentou que a penhora sobre faturamento de empresa em execução fiscal deve respeitar o princípio da menor onerosidade e garantir a continuidade da atividade empresarial (relator ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 14/05/2024).

Proteção ao capital de giro

O capital de giro, por sua natureza e finalidade, deveria gozar de proteção especial no processo executivo. Tal como ocorre com os salários de pessoas físicas, a preservação dos recursos indispensáveis à manutenção da atividade empresarial deveria ser a regra, e não a exceção. O bloqueio deveria ser admitido apenas após a demonstração cabal de que foram esgotadas outras formas menos gravosas de satisfação do crédito, em consonância com o princípio da proporcionalidade.

Não há justiça possível onde o meio processual se converte em fim punitivo. A execução deve buscar a satisfação do crédito, sim, mas de forma compatível com a dignidade do devedor e com a continuidade da atividade econômica. Proteger o capital de giro das MPEs é proteger a base da economia, os empregos e a arrecadação tributária. É zelar, enfim, pela própria funcionalidade do sistema.

Enquanto essa lógica não se consolidar, continuaremos testemunhando a falência silenciosa de milhares de empresas, não por má gestão ou inviabilidade econômica, mas por decisões judiciais automáticas que, ao ignorarem a realidade concreta das MPEs, tornam-se instrumentos letais travestidos de legalidade. A sangria judicial do capital de giro precisa ser estancada — e isso exige consciência, coragem e compromisso com a justiça material por parte de todos os operadores do direito.

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