A prescrição penal é um direito fundamental no Brasil?
4 de junho de 2025, 16h27
A prescrição penal, apesar de sua origem em Roma (séculos 17 ou 18 a.C.) [1], é tema de extrema importância tanto para a prática forense criminal quanto para o âmbito acadêmico. Trata-se de matéria de ordem pública que pode e deve ser reconhecida em qualquer fase processual, inclusive durante o inquérito policial, e atinge a persecução penal e a execução da pena (embora a hipótese de prescrição da pretensão executória somente tenha surgido na França em 1791 [2]).

Trata-se, conforme ensina Christiano Jorge Santos [3], da renúncia do direito de punir do Estado pelo não exercício em determinado lapso temporal. O prazo é regulado pela pena máxima (in abstracto) quando não há condenação e, caso já tenha ocorrido, regula-se, nos termos da Súmula 146 do Supremo Tribunal Federal, pela pena aplicada (in concreto).
Definido o conceito, é preciso questionar quais são os fundamentos da prescrição em matéria penal e se esse instituto constitui um direito fundamental frente ao Estado. A resposta é relevante, na medida em que impacta nos eventuais limites ao legislador ordinário para estabelecer crimes imprescritíveis no Brasil.
Segundo o ensinamento de Guilherme de Souza Nucci [4], a prescrição penal tem fundamento em algumas teorias, sendo as principais:
- teoria do esquecimento, que afirma que o lapso temporal para exercício do jus puniendi implica renúncia tácita da atividade estatal, bem como há o esquecimento dos motivos e das consequências do crime no seio da sociedade, tornando a pena e o processo penal inúteis
- teoria da expiação moral, que se baseia na ideia de que a expectativa de incidência da sanção penal sobre o autor do crime, ainda que não exercida, constitui, por si só, um mal, o que afasta a necessidade de pena
- teoria da emenda do delinquente, que afirma que o lapso temporal, por si só, implica mudança de comportamento das pessoas, presumindo-se a regeneração do agente
- teoria da dispersão das provas, que afirma que o lapso temporal prejudica a produção probatória em matéria penal, tornando o processo inútil (diante da grande probabilidade de absolvição por falta de provas) e aumenta o risco de erros judiciários, especialmente diante da necessidade de depoimentos e oitivas de testemunhas
- teoria psicológica, que funda-se na premissa de que o decurso do tempo implica alterações no comportamento e no modo de ser e pensar, gerando uma pessoa diversa daquela do momento da prática do crime, o que retira a justificativa para a aplicação da pena.
Inutilidade de pena
A prescrição é, contemporaneamente, fundamentada em uma suposta inutilidade da pena perante a sociedade e perante o próprio infrator, bem como caracteriza uma renúncia do Estado ao exercício do jus puniendi. No que tange à ordem constitucional em nosso país, argumenta-se que o artigo 5º, incisos XLII e XLIV, determina a imprescritibilidade penal apenas para os crimes de racismo e de ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático de direito.
Carlos Eduardo Adriano Japiassú [5] observa que há posicionamentos doutrinários no sentido de que, como o texto magno estabeleceu somente essas exceções, a regra é a necessidade de prescrição de todos os demais crimes. Essa interpretação tem suporte na regra hermenêutica inclusio unius est exclusio alterius, ou seja, a menção pelo legislador original de apenas duas hipóteses de imprescritibilidade exclui a mesma fórmula aos demais tipos penais.
Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli [6] são contrários a eventuais interpretações no sentido de imprescritibilidade de tipos penais, mesmo no âmbito internacional: “não existe na listagem penal crime que, por mais hediondo que se apresente ao sentimento jurídico e ao consenso da comunidade, possa merecer a imprescritibilidade”.
Cezar Roberto Bitencourt [7] é enfático quanto à necessidade de prescrição e critica as hipóteses de imprescritibilidade expressas na Constituição:
Contrariando a orientação contemporânea do moderno Direito Penal liberal, que prega a prescritibilidade de todos os ilícitos penais, a Constituição brasileira de 1988 declara que são imprescritíveis “a prática do racismo” e “a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLII e XLIV).
Imprescritibilidade de tipos penais
Apesar das manifestações doutrinárias contrárias à imprescritibilidade de tipos penais, criticando até mesmo a opção do constituinte originário, defendemos posição contrária, isto é, a possibilidade de criação, sem necessidade de modificação constitucional, de tipos penais imprescritíveis pelo legislador ordinário, além daqueles já determinados no texto constitucional.

A regra hermenêutica inclusio unius est exclusio alterius não constitui suporte válido para admitir a imprescritibilidade somente nos casos expressos no texto original. A interpretação da Constituição e de direitos e garantias fundamentais deve se dar de forma sistêmica e não mediante a aplicação de uma regra isolada de hermenêutica. A disposição contida no artigo 5º, incisos XLII e XLIV, da Constituição trata, nos termos de Antonio Carlos da Ponte [8], de um mandado constitucional de criminalização expresso, que determina a criação de tipos penais ao legislador ordinário e sem prescrição.
É somente essa conclusão que se pode extrair dos referidos incisos do artigo 5º do texto magno. Não se verifica no texto fundante da República nenhum dispositivo estabelecendo expressamente um direito do cidadão à prescrição penal. Se fosse essa a vontade do constituinte originário, bastaria ter declarado expressamente a limitação à imprescritibilidade, como o fez com a pena de morte (salvo exceção em tempos de guerra), banimento, penas cruéis, trabalhos forçados e prisão perpétua. Nesse contexto, a simples existência de um mandado de constitucional de criminalização, com ausência de prescrição, não autoriza a interpretação, mesmo invocando supostas implicitudes no texto, de um direito fundamental à prescrição nos demais tipos penais.
Na verdade, como destaca Christiano Jorge Santos [9], o texto magno revela um direito fundamental à segurança pública, que contempla a segurança individual, bem como a necessidade de ação estatal para preservação dos direitos humanos das vítimas e para prevenir a ocorrência de crimes. Logo, a interpretação sistêmica da Constituição aponta não para a prescrição como um direito fundamental, mas para o manejo do instituto pelo legislador ordinário diante da necessidade de equilíbrio entre os diversos princípios, incluindo o direito à segurança coletiva.
Princípios da proporcionalidade e razoabilidade
Anote-se que o raciocínio aqui exposto não restaria obstado pela necessidade de observação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade. Isso porque nada impede o controle de constitucionalidade e de convencionalidade (Convenção Americana de Direitos Humanos), caso o legislador ordinário, por exemplo, estabelecesse que o furto de pequenos objetos fosse um crime imprescritível.
Situação diversa ocorreria se, por lei ordinária, o legislador determinasse a impossibilidade de prescrição para o estupro ou homicídio. Diante do bem jurídico protegido nesses últimos exemplos, não haveria que se falar em violação da razoabilidade e proporcionalidade. Ademais, eventuais inconstitucionalidades por violação aos princípios indicados não autorizam a interpretação de que há um direito constitucional à prescrição, ou seja, a imprescritibilidade é inconstitucional per si.
O direito à razoável duração do processo tampouco impacta a argumentação aqui defendida, na medida que se trata de comando voltado, primordialmente, ao Poder Judiciário, buscando que seus membros observem os prazos fixados na legislação vigente para a prática de atos processuais, evitando a indevida morosidade da prestação jurisdicional. Não há, portanto, relação direta com o tema em discussão. A sanção pelo não cumprimento do dever de celeridade não pode ser a vedação absoluta da imprescritibilidade.
Ademais, não se vislumbra a existência de um direito natural [10] à prescrição que impediria a criação de tipos penais imprescritíveis até mesmo pela Constituição e tampouco se vislumbram normas de direito internacional de natureza Jus Cogens determinando a necessidade de prescrição penal.
Alegações sobre a necessidade de prescrição em função do direito penal liberal [11] são, com o devido respeito, argumentos meramente retóricos. O citado instituto consiste, primordialmente, em um conjunto de normas que limitam o poder estatal sobre o cidadão.
Trata-se de instituto relevante no mundo contemporâneo para impedir abusos estatais, como a criação de tipos penais vagos e a criminalização de meros discursos contrários ao governo, mas não autoriza extrair a prescrição penal como um direito fundamental ou como uma necessária limitação. O respeito ao instituto ocorre com a observância dos princípios da legalidade, da intervenção mínima, da lesividade/ofensividade, da culpabilidade e da humanização das penas, não havendo que se falar em necessidade de prescrição para efetivação de normas de cunho garantista.
Violação na Corte Interamericana de Direitos Humanos
Por sua vez, a análise das normas de direito internacional reforça a nossa argumentação. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), cujos julgamentos o Brasil deve observar, asseverou, no caso Fazenda Brasil Verde [12], que “a aplicação da figura da prescrição no presente caso representou uma violação ao artigo 2º da Convenção Americana, pois foi um elemento decisivo para manter a impunidade dos fatos constatados em 1997”. Assim, a prescrição não pode ser invocada como um direito, especialmente para impedir a aplicação da Convenção.
O Tribunal Penal Internacional, internalizado pelo Decreto nº 4.388 de 2002, determina expressamente, em seu artigo 29, que “os crimes da competência do Tribunal não prescrevem”. Importante destacar que a própria Constituição, artigo 5º, §4º, afirma que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”, reafirmando nossa posição contrária à imprescritibilidade penal restrita às hipóteses do artigo 5º.
Concordamos, portanto, com a posição exarada na obra de Christiano Jorge Santos [13], quando afirma que:
não existem obstáculos jurídicos à criação de outras causas de imprescritibilidade, inclusive através de lei federal, porque não existe “direito individual à prescritibilidade”, uma vez que as normas de perpetuidade da punição previstas nos incisos mencionados (artigo 5º, incisos XLII e XLIV) não geram direitos ou garantias a contrario sensu, aos criminosos que praticam espécies outras de infrações penais
Anote-se, por fim, que a imprescritibilidade em crimes graves (como crimes hediondos, crimes de lesa-humanidade e crimes da lei de organizações criminosas, por exemplo) não se trata de medida que implica violação da dignidade da pessoa humana (entendida esta como o valor intrínseco de todos os seres humanos, constante da autonomia de cada indivíduo, limitada por algumas restrições legítimas que lhe são impostas devido a valores sociais ou estatais [14]) ou indevida ampliação do poder estatal. Ao contrário, constitui medida necessária para garantir os direitos humanos das vítimas, para permitir a estabilidade do sistema jurídico (estabelecendo, conforme Niklas Luhmann [15], comunicação com a sociedade sobre a garantia da vigência das normas jurídicas) e para promover o direito fundamental à segurança coletiva, evitando a impunidade.
Conclui-se, portanto, que não há direito fundamental à prescrição penal no Brasil e que o disposto no artigo 5º, incisos XLII e XLIV, da Constituição trata de mandado de criminalização que, ao contrário de impedir, fundamenta a possibilidade de criação de outros tipos penais imprescritíveis pelo legislador ordinário, especialmente diante da ausência de qualquer limite constitucional, como se dá com a pena de morte (exceto caso de guerra), banimento, penas cruéis, trabalhos forçados e prisão perpétua. As disposições de Direito Internacional Penal e a manifestação da Corte Interamericana de Direitos Humanos também reforçam a legitimidade da criação de tipos penais imprescritíveis.
[1] SANTOS, Christiano Jorge. Prescrição penal e Imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. P. 34
[2] SANTOS, Christiano Jorge. Prescrição penal e Imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. P. 34
[3] SANTOS, Christiano Jorge. Prescrição penal e Imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. P. 81
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. Vol. 1. Parte Geral. Arts. 1º a 120 do Código Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020. p. 870.
[5] JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Direito Penal Internacional. 2ª Ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023. P. 242.
[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1 – Parte Geral. 9ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. P. 646
[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. Comentários ao artigo 109.
[8] PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Ebook Kindle. posição. 152.
[9] SANTOS, Christiano Jorge. Prescrição penal e Imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. P. 22.
[10] HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de filosofia do direito. Tradução Elza Maria Gasparotto. São Paulo: Martins Fontes, 1ª Ed., 2008. p. 355.
[11] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. Comentários ao artigo 109.
[12] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. San José, Costa Rica. Parágrafo 423.
[13] SANTOS, Christiano Jorge. Prescrição penal e Imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. P. 181
[14] BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo. A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2020. Ebook. Posição 1161.
[15] LUHMANN, Niklas. O Direito da Sociedade. 1ª ed. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2016. P. 501.
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