Inconstitucionalidade da PEC 12/2022 e a periodicidade do voto
2 de junho de 2025, 7h01
Ao pronunciar seu voto na Ação de Investigação Judicial Eleitoral 194.358, que teve como polo passivo a chapa Dilma-Temer de 2014, o ministro Herman Benjamin proferiu uma brilhante defesa do voto:
“O que ainda nos livra de decidir nas ruas com armas de sangue nossas disputas de poder e ideologia é exatamente a esperança, mantida pela maioria, de que a cada dois anos um pouco ou muito poderá mudar pacificamente pela simples força do voto popular.”
Ou seja, é a periodicidade do voto que nos livra de sermos bárbaros incivilizados e escravos de um déspota, mas nos faz livres e responsáveis, por termos a oportunidade de alterar o comando político do Estado, podendo, com certa periodicidade.
Contudo, em maio de 2025, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) aprovou a Proposta de Emenda à Constituição nº 12/2022, através da qual se pretende alterar a duração dos mandatos de todos os cargos eletivos para cinco anos, retomar a vedação à reeleição imediata, e de unificar as eleições nacionais, municipais e estaduais.
A mudança proposta é, em nosso parecer, ruim. E, pior ainda, inconstitucional, por violar o princípio constitucional e direito fundamental da periodicidade do voto. Além das críticas políticas e sociológicas que podem ser feitas ao projeto, neste breve ensaio pretendo comentar aspectos jurídicos dessa inconstitucionalidade.
Conceitos e características constitucionais do sufrágio
O conceito de sufrágio é dual. Possui uma face objetiva e uma subjetiva. Objetivamente, significa a realização de eleições onde o povo elege representantes políticos (sufrágio eletivo), ou responde a consulta feita pelo Legislativo (sufrágio consultivo). Subjetivamente, significa o direito ou poder-dever do eleitor de participar dessas votações.
Ao mesmo tempo em que se constrói uma estrutura jurídica para o sufrágio, também se reconhecem direitos subjetivos titularizados pela cidadania, que não podem ser relativizados.
Gilmar Mendes reconhece os direitos políticos fundamentais como sendo uma categoria especial de direitos fundamentais, no mesmo nível dos “direitos de defesa e aos direitos à prestação”. Para ele, os direitos políticos fundamentais são “direitos orientados a garantir a participação dos cidadãos na formação da vontade do país, correspondendo ao capítulo da Constituição Federal relativo aos direitos políticos” (Mendes, 2008, p. 265).
O racionalismo liberal do século 18 inaugurou o constitucionalismo moderno, no qual a Constituição não é apenas uma descrição do exercício do poder (Constitucionalismo antigo), mas sim uma forma de controlar e limitar o poder. Isso inclui a previsão de quais cargos políticos serão eleitos, o modo de sua eleição, e os períodos em que esses cargos serão renovados.
Nesse sentido, os cargos eletivos devem ser ocupados por um espaço de tempo específico e determinado, não podendo ser alterado a cada eleição, sob pena de se criar um sistema eleitoral extremamente casuístico. Modificações até podem ser feitas, mas de forma ponderada e razoável.
A duração dos mandatos não pode ser nem muito longa nem muito curta. Mandatos longos afastam eleitores e eleitos, prejudicando o debate público e a responsabilidade eleitoral. Mandatos curtos levam os mandatários, por interesse natural, a um constante clima de campanha, e menos concentração no trabalho que lhes foi confiado.
A Constituição do Brasil dá algumas características ao sufrágio ao defini-lo, configurando não só direitos políticos fundamentais, mas verdadeiras cláusulas pétreas.
Embora o artigo 14 da Constituição apenas mencione o fato de o voto ser universal, direto, secreto e de igual valor para todos, a periodicidade do voto é indicada como no artigo 60, tornando-se cláusula pétrea explícita: “§4º Não será objeto de deliberação a emenda tendente a abolir: II – o voto direto, secreto, universal e periódico.”
A Constituição também determina a duração de quatro anos para o mandato presidencial e para as legislaturas e mandatos de deputado federal, deputado estadual ou distrital, governador, e prefeito e vereador. A exceção é para o Senado, com mandato de oito anos, e renovação parcial a cada quatro anos [1].
Ou seja, não só a duração dos mandatos é razoável, como há um espaço razoável de dois anos entre as eleições para o Legislativo e o Executivo municipais e as eleições para os Executivos e Legislativos estaduais e nacional.
Segundo Volgane Carvalho, a votação popular é essencial no Estado Democrático de Direito, e somente “possui razão de existir se acompanhado pela realização de eleições periodicamente” (Carvalho, 2016, p. 104). É dizer, sem a periodicidade do voto/sufrágio, de nada valeria toda a estrutura constitucional criada para o sufrágio.
Napoleão Nunes Maia Filho destaca que “o voto periódico conecta-se com a temporariedade dos mandatos eletivos, ensejando ao corpo eleitoral, em tempo certo, a possibilidade de alteração dos quadros dirigentes, através das disputas eleitorais” (Maia Filho, 2000, p. 223). Em outras palavras, é necessário haver eleições regularmente, para que o eleitorado manifeste suas preferências, com possibilidade de trocar seus dirigentes políticos.
Volgane Carvalho ainda, afirma:
“o legislador constitucional de 1988 elevou à condição de cláusula pétrea o exercício periódico do voto; em outras palavras: a ocorrência de eleições periódicas. (…) Neste sentido, a preocupação do legislador constitucional em fixar a duração dos mandatos eletivos e estabelecer a necessidade de eleições quadrienais reflete o desejo de dotar de máxima efetividade os direitos de sufrágio.” (Carvalho, 2016, p. 104. Destaque acrescentado)
Para a “máxima efetividade” do sistema eleitoral, deve-se respeitar a periodicidade do voto. Por isso não se pode aceitar modificações substanciais nos direitos eleitorais ao sufrágio, que são tão fundamentais e “inabolíveis” (a atualidade faz necessário o neologismo) como os demais direitos fundamentais.
Defeitos constitucionais da PEC 12/2022
A Proposta em comento contém irregularidades em relação à periodicidade do sufrágio, de forma e de conteúdo, nas normas que pretende implantar como definitivas e nas regras de transição [2].

Inicialmente, a Proposta previa apenas a alteração dos mandatos do Executivo para cinco anos, e a vedação à reeleição imediata. Já aí haveria um problema, pois deixaria de existir a simultaneidade da eleição dos membros do Poder Executivo (que passariam a ser de cinco anos), com os membros do Poder Legislativo (que continuariam com 4 anos).
Porém, durante o trâmite da PEC algumas mudanças surgiram, e a proposta aprovada na CCJ do Senado prevê também a coincidência nas datas das eleições gerais e municipais, e a duração de cinco anos para todos os mandatos. É a emenda que sai pior que o soneto.
O problema é que, com essa alteração, o eleitorado permaneceria por cinco anos sem nenhuma oportunidade de eleger governantes e legisladores.
A PEC também divide as legislaturas em duas “partes” desiguais, uma primeira parte de três anos e uma segunda de dois anos. As Mesas Diretoras seriam eleitas por três ou dois anos, a depender da “parte” da legislatura de que se trate. Mas, como o quinto ano da legislatura seria totalmente dominado por atividades partidárias e eleitorais em todo o país (agravadas pela coincidência com as eleições municipais e pela raridade do processo eleitoral), a segunda “parte” da legislatura ficaria bastante prejudicada.
Já nas regras de transição, a PEC comete o grave erro de acrescentar novos artigos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). O ADCT não é um arquivo para todas as regras transitórias que surjam; é um compêndio de regras de transição para a implantação do regime criado pela Constituição de 1988.
Portanto, uma regra constitucional definitiva introduzida por emenda precisa de regras de transição próprias, que devem constar no próprio corpo da Emenda, sem acrescentar novas regras de transição à Constituição [3].
Mas o mais grave quanto às regras de transição está em seu conteúdo.
A PEC quer permitir que os prefeitos eleitos em 2024 em primeiro mandato, possam ser candidatos à reeleição em 2028, mas para um mandato de seis anos. Ou seja, um prefeito eleito em 2024 e reeleito em 2028 ficaria um total de dez anos no poder. Uma flagrante violação da periodicidade do voto, porquanto permite por um período demasiadamente prolongado o exercício do poder.
Para os Senadores, que possuem um mandato sui generis, ocorreria uma transição também esdrúxula.
É fato que o Senado não representa a população, mas a Federação. Sua função primordial é controlar o presidente da República como chefe de Estado (e não como chefe de Governo, papel da Câmara). Por isso, faz sentido que o Senado tenha um mandato mais longo e idade mais avançada, para que pense em longo prazo, sem preocupar-se tanto com a próxima eleição.
Segundo a PEC, os senadores eleitos em 2026 exercerão um mandato de oito anos, os eleitos em 2030 por 9 anos, e os eleitos em 2034 por cinco anos. Uma metamorfose desproporcional. Primeiro acrescenta um ano ao mandato, para depois retirar quatro anos (uma legislatura inteira, nos padrões atuais!).
Com isso, todos os senadores da Federação seriam eleitos simultaneamente, e todos passariam a ter mandatos de cinco anos, concorrendo nas mesmas eleições que os demais cargos. O Senado, porém, é uma casa à parte, como já dito. Não se pode igualar o período de seu mandato ou o momento de sua eleição com um mandato de vereador – com todo o respeito que a vereança merece.
Ulysses Guimarães, patrono da Constituição brasileira, advertiu contra o que ele chamou de traição à Constituição, no discurso de promulgação de nossa Carta Magna:
“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.”
Não seria essa PEC uma tentativa de fechar o Parlamento? Talvez não no sentido de deixar o Congresso sem funcionamento, mas deixá-lo fechado à vontade popular, deixando-o alheio às urnas, por 5 anos.
Exemplos do direito estrangeiro
No mundo contemporâneo, com relações sociais cada vez mais líquidas, circulação cada vez mais rápida da informação, e exigências legítimas de respostas rápidas e eficientes por parte dos governantes, não é saudável para a democracia estabelecer longos períodos de mandato, sem alternância entre eleições locais e nacionais, e sem nenhuma contrapartida de controle do eleitorado sobre os eleitos, como poderia ser a revogação de mandatos individuais ou a antecipação de eleições.
No Ocidente não faltam exemplos de diferentes formas de organizar as eleições, buscando uma representação mais efetiva.
A nossa hermana Argentina, por exemplo, tem mandatos de quatro anos para os cargos legislativos e executivos (exceto pelo Senado, com 6 anos de mandato). Porém, metade das vagas da Câmara dos Deputados é renovada na mesma eleição em que o presidente da Nação é eleito, e a outra metade é renovada dois anos depois. Por outro lado, a cada dois anos, um terço das Províncias renova suas vagas no Senado [4].
Além disso, as eleições nacionais, provinciais, e municipais, mesmo que ocorram no mesmo ano, não ocorrem na mesma data, possibilitando uma sequência de calendários eleitorais e campanhas com discussões próprias. E as eleições para o legislativo e executivo nacionais contam com um sistema de prévias abertas, simultâneas e obrigatórias, através das quais o eleitorado define quais candidatos das distintas alianças partidárias poderão participar das eleições gerais.
Nos países de tendência parlamentarista (como Portugal, Espanha, Reino Unido, França e Itália), o período do mandato de parlamentares eleitos varia de quatro a cinco anos. Porém, há normas que permitem trocas de governos dentro de uma mesma legislatura, dissolução do parlamento e revogação de mandatos parlamentares individuais. A França tem duas exceções: no Senado o mandato é de seis anos, e a eleição de deputados é distrital e majoritária, requerendo maioria absoluta, com possibilidade de segundo turno. Em todas essas nações as eleições locais são realizadas em datas diferentes das nacionais.
Nos Estados Unidos, Presidente e Governadores tem mandatos de quatro anos, enquanto os membros da Câmara dos Representantes tem apenas dois anos de mandato, e a cada dois anos um terço dos Estados renova suas duas vagas para o Senado (seis anos de mandato).
Considerações finais
Por tudo que se mencionou, a PEC 12/2022 é inconstitucional e inconveniente, em especial quanto à duração de mandatos e à simultaneidade das eleições. Ela retira a possibilidade de discutir o país e a cidade em momentos diferentes, afasta eleito e eleitor, posterga o período de prestação de contas e a consequente responsabilização eleitoral.
A única proposta dessa PEC que pode ter algum sentido é a vedação à reeleição imediata no Executivo, que, porém, não impede por si só a manutenção de oligarquias políticas ou de abuso de poder.
Enquanto isso, outros temas deixam de ser debatidos, como a instituição do recall, a alteração do sistema eleitoral, a redistribuição do número de legisladores, a presença da mulher e dos índios no parlamento, etc.
Alguns dos exemplos dos países comentados também podem ser interessantes, como as prévias partidárias (Argentina e Estados Unidos), um Senado com vagas proporcionais a cada Estado (Itália), renovação de metade da Câmara e um terço do Senado a cada dois anos (Argentina), segundo turno para o Legislativo (França), e vagas para brasileiros residentes no exterior (Itália).
Enfim, são várias as razões pelas quais a PEC 12/2022 é inconstitucional, em especial pela deformidade que causaria na representatividade popular. E também não faltam modificações mais benéficas do que as propostas.
Notas
[1] Arts. 28, caput, 29, I, 44, parágrafo único, 46, §1º, §2º, 47, §1º, 81, 81, §1º, e 82.
[2] Para mais detalhes sobre a Proposta e sua tramitação, ver: PEC 12, de 2022.
[3] Ver: DELGADO, José Luiz. Disposições Gerais e Disposições Transitórias na Constituição. Curitiba: Appris, 2021. Em especial, o capítulo 4, “Emendas às Disposições Transitórias”.
[4] A Argentina peca, porém, ao deixar as Províncias livres para definir a reeleição do executivo local, havendo Províncias que não permitem a reeleição imediata, as que permitem a reeleição limitada, e as que permitem reeleições indefinidas.
Referências
CARVALHO, Volgane Oliveira. Direitos Políticos no Brasil: O Eleitor no Século XXI. Curitiba: Juruá, 2016.
DELGADO, José Luiz. Disposições Gerais e Disposições Transitórias na Constituição. Curitiba: Appris, 2021.
MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Estudos Temáticos de Direito Constitucional. Fortaleza: Casa de José de Alencar, Programa Editorial, 2000.
MENDES, Gilmar. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.
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