Opinião

Os impactos da nova proposta do Código Civil no âmbito contratual

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2 de junho de 2025, 6h36

O recente projeto de reforma do Código Civil brasileiro (Projeto de Lei nº 4/2025) e de seus atuais 1.122 artigos — apresentado ao Senado no dia 1º de abril de 2025 — visa estabelecer um maior controle estatal sobre os contratos com base nos princípios de confiança, simetria e paridade. A proposta foi fruto de intensos debates entre juristas, legisladores e a sociedade civil, objetivando, principalmente, a modernização de institutos jurídicos defasados, a adequação à era digital, o reforço da segurança jurídica nas relações privadas e o incentivo ao ambiente de negócios e à livre iniciativa.

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Projeto propõe alterar mais de 1.100 artigos do Código Civil

No que concerne ao âmbito empresarial, por sua vez, há uma estreita relação da referida reforma com o aumento da complexidade das estruturas societárias, a prevalência de contratos atípicos e o uso de tecnologias disruptivas. Portanto, tal empreitada tem suscitado intensos debates não só no meio jurídico, mas também no empresarial.

Embora a justificativa oficial seja a promoção de um maior equilíbrio nas relações contratuais, os efeitos práticos dessa mudança podem resultar em uma preocupante insegurança jurídica, comprometendo a previsibilidade e a estabilidade das transações comerciais, ao modificar não só sua estrutura, mas também sua linguagem e seu sistema.

O “novo código” — o qual visa adequar o ordenamento jurídico às novas dinâmicas sociais, tecnológicas e econômicas — ameaçará, portanto, três alicerces do sistema jurídico pátrio: o contratual, o referente à responsabilidade civil e, por fim, o relacionado ao direito de família e sucessões. O impacto de tal reforma para o setor empresarial é inegável, já que recairá diretamente sobre vários aspectos essenciais à atividade econômica.

Fundamentos teóricos da paridade e simetria contratual

A proposta parte da premissa de que os contratos civis e empresariais devem ser presumidos como paritários e simétricos, salvo quando existirem elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção. Essa abordagem se fundamenta na teoria da justiça contratual, que busca garantir que as partes envolvidas em uma relação jurídica tenham condições equitativas de negociação. No entanto, a literatura jurídica contemporânea aponta que a simetria contratual é um conceito relativo, pois as relações negociais são influenciadas por fatores como poder econômico, expertise técnica e capacidade de barganha.

Parte da doutrina, ao se debruçar sobre os contratos de adesão, já ressaltou que a imposição de um modelo rígido de simetria pode desconsiderar a natureza dinâmica das relações comerciais. A tentativa de padronizar essas interações pode gerar distorções e dificultar a adaptação dos contratos às necessidades específicas das partes envolvidas.

Interferência estatal e risco de ativismo judicial

Outro aspecto crítico da proposta é o aumento da interferência estatal na regulação dos contratos, o que pode comprometer a autonomia privada, princípio fundamental do direito contratual. A autonomia privada é um dos pilares da teoria dos contratos, o qual permite que as partes estabeleçam cláusulas conforme suas necessidades e expectativas. A limitação dessa liberdade pode gerar um ambiente de negócios menos previsível, onde empresas e indivíduos terão dificuldades em confiar na estabilidade dos contratos firmados.

Além disso, uma maior intervenção estatal pode estimular o ativismo judicial, levando à cada vez mais crescente judicialização dos contratos e à incerteza sobre a validade de cláusulas previamente acordadas. A doutrina jurídica já alerta para os riscos de uma interpretação excessivamente subjetiva da função social do contrato, que pode resultar na revisão arbitrária de disposições contratuais, comprometendo a segurança jurídica e a confiança nas relações negociais.

Impactos econômicos e institucionais

A insegurança jurídica gerada por essa proposta pode afetar negativamente o ambiente de negócios no Brasil. As sociedades empresariais podem se tornar mais cautelosas na celebração de contratos, temendo que cláusulas previamente aceitas sejam posteriormente invalidadas com base em interpretações subjetivas. Logo, far-se-á frequente a presença de um desestímulo aos investimentos, bem como a dificuldade em se prever o andamento das relações comerciais.

Setores estratégicos da economia, como o mercado financeiro e o setor de infraestrutura, podem ser particularmente afetados pela falta de segurança jurídica. Contratos de longo prazo, essenciais para garantir a viabilidade de projetos, podem se tornar menos atrativos para investidores estrangeiros, comprometendo o crescimento econômico do país.

Modificações contratuais

A aplicação da teoria da imprevisão, ao que tudo indica, será aperfeiçoada, mediante previsão expressa do artigo 317 quanto à possibilidade de revisão judicial do contrato decorrente de eventos imprevisíveis que ensejem onerosidade excessiva, tal qual situações previsíveis com efeitos imprevisíveis. Essa mudança assegura uma maior proteção contratual no que diz respeito a crises econômicas ou eventos extremos, como foi a pandemia de Covid-19.

Com o advento da Era Digital, um passo importante diz respeito ao reconhecimento da validade de documentos digitais e provas eletrônicas, mediante preservação de sua integridade e autenticidade. Nada mais natural em um contexto em que plataformas digitais, blockchain e contratos eletrônicos se fazem cada vez mais indispensáveis e presentes nas relações empresariais contemporâneas.

Como se não bastasse, uma das maiores mudanças diz respeito à atribuição de responsabilidade civil objetiva às pessoas jurídicas privadas prestadoras de serviços públicos, o que impactará consideravelmente startups, concessionárias e empresas em parcerias público-privadas.

Alternativas para garantir segurança jurídica

Diante dos desafios apresentados pela proposta, especialistas sugerem alternativas para garantir maior segurança jurídica sem comprometer a proteção das partes envolvidas.

Uma delas diz respeito ao fortalecimento da mediação e arbitragem, uma vez que métodos alternativos de resolução de conflitos podem reduzir a judicialização dos contratos e garantir maior previsibilidade nas relações comerciais.

Outra medida corresponde à definição clara de critérios para revisão contratual, pois o estabelecimento de parâmetros objetivos para a revisão de contratos é capaz de evitar interpretações subjetivas, garantindo uma maior estabilidade jurídica.

Incentiva-se, também, a preservação da autonomia privada, já que a manutenção da liberdade das partes para negociar cláusulas contratuais específicas pode garantir maior eficiência e adaptação às necessidades do mercado.

Além disso, busca-se fomentar o uso de contratos inteligentes e blockchain, uma vez que a tecnologia se faz uma alternativa garantidora de uma maior transparência e segurança na execução dos contratos, reduzindo a necessidade de intervenção estatal.

Importante ressaltar que o projeto de lei, em consonância com o inciso VIII do artigo 3º da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), exige apenas a paridade contratual (não tipificação como contrato de adesão), dispensando a simetria (ausência de relação de dependência entre contratantes), pois a assimetria nem sempre é capaz de demonstrar a necessidade de uma maior intervenção estatal por meio de normas cogentes.

Considerações

Será necessária uma ampla e detalhada revisão de contratos, estatutos e práticas internas a fim de se assegurar a conformidade dos documentos e políticas internas com as novas diretrizes.

Além disso, dever-se-á implementar uma maior integração entre o novo Código Civil e normas especiais – a exemplo da Lei das Sociedades por Ações, Lei Geral de Proteção de Dados e a Lei da Liberdade Econômica – a fim de se evitar conflitos normativos.

Isso posto, será imprescindível a implementação de um período razoável de judicialização e adaptação jurisprudencial até que se atinja uma interpretação consolidada e amplamente divulgada das novas normas, bem como devidamente aceitas pelos atores interessados.

Embora com a válida intenção de garantir maior equilíbrio nos contratos, a forma como a proposta está estruturada pode gerar efeitos adversos, aumentando a insegurança jurídica e dificultando a livre negociação entre as partes. É essencial que o debate sobre essa reforma seja aprofundado, garantindo que qualquer mudança no Código Civil preserve a autonomia privada e a previsibilidade das relações contratuais.

 


Referências

CARDOSO, Victória.  Reforma do Código Civil: impactos da nova proposta nas relações empresariais e no ambiente de negócios brasileiro. Pedro Câmara advogados. Disponível  aqui.

MARTINS-COSTA, Judith; ZANETTI, Cristiano de Sousa. O novo Código Civil e a demolição do Direito. Folha de S. Paulo. 14 abr. 2025. Disponível  aqui.

NASCIMENTO, Fábio Calheiros do. Reforma do Código Civil: noção de paridade contratual é escolha política. Conjur. 15 abr. 2025. Disponível aqui.

RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Contratos paritários e simétricos no anteprojeto de reforma do Código Civil. Migalhas. 12 nov. 2024. Disponível aqui.

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