Da (in)existência efetiva do direito de mentir
2 de junho de 2025, 20h37
A questão
O fato de uma conduta não ser punida criminalmente transforma, só por isso, a prática dessa conduta em autêntico direito?
Se assim for, da interpretação — a contrário senso — de artigos do Código Penal surgem, necessariamente, os direitos: (a) de morrer, daquele que tenta e fracassa (artigo 122)? b) de matar, do defendente em legítima defesa (artigos 23, I, 25 e 121)? (c) de se autolesionar, de quem assim o deseje (artigo 129)? (d) de furtar, do que subtrai pertences do cônjuge menor de 60 (sessenta) anos (artigo 181, I)? (e) de fugir, do preso que não emprega, para tanto, violência contra pessoa (artigo 352)? (f) de auxiliar alguém a se subtrair à ação de autoridade pública, desde que quem preste o auxílio seja ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do auxiliado, este autor de crime a que é cominada pena de reclusão (artigo 348)?
Existiriam, ainda, os direitos ao adultério e ao incesto, à míngua de criminalização?
E desse tal direito de mentir do réu [1], quando presta declarações na persecução penal — ali e alhures apregoado — o que dizer?
Imagine-se que o Estado, com a finalidade de realizar política pública destinada a fomentar o direito de mentir do réu, decida subsidiar escolas jurídicas que, em seus cursos, ofereçam disciplinas específicas sobre: “Como mentir convincentemente no juízo criminal”; ou “Mentira como atalho para a absolvição”; ou, ainda, “Mentir para livrar-se solto na persecução penal”.
A hipótese é: pertinente, porque razoável; ou impertinente, porque absurda?
Doutrina
Acerca da questão — existe, para o réu, o direito de mentir no curso da persecução penal? — a doutrina não é concordante.
Os que dizem que sim:
a) Guilherme de Souza Nucci: “[…] No exercício de sua autodefesa e para não incidir na auto-acusação, pode o acusado dizer o que bem entende, inclusive mentir. Se pode e deve defender-se com amplidão, é natural que o direito de faltar com a verdade esteja presente. […] Essa mentira não é sancionada. Ora, o que não é vedado pelo ordenamento jurídico, é permitido. […] Assim, se não é proibido mentir, porque faz parte da autodefesa e não é sancionado; […] Se é permitido fazer algo, é um direito do indivíduo fazê-lo. […] Pelo exposto, sustentamos que é direito do réu mentir no seu interrogatório” [2]; e
b) Theodomiro Dias Neto: “A mentira é um direito do acusado desde que sua prática não resulte em crimes” [3]
Os que dizem que não:
a) Hélio Tornaghi: “[…] o réu pode até mentir. Não se trata de um direito de mentir, nem há que falar em direito (subjetivo), neste caso. O que há é que a mentira do réu não constitui crime, não é ilícita: o réu é livre de mentir porque, se o fizer, não sofrerá nenhuma sanção. Mas, convém explicar: o réu é livre de mentir para se defender, não para se acusar” [4]. E, ainda: “Quando a lei deixa de punir o réu que se defende mentindo, ela o faz porque nemo tenetur se detegere; porque não é humano exigir-se de alguém que se acuse” [5]; e
b) Jorge de Figueiredo Dias: “[…] já se pretendeu concluir que ao arguido caberia um verdadeiro direito a mentir. Esta opinião deve, porém, ser repudiada. […] Que concluiremos então? Não existe, por certo, um direito a mentir que sirva como causa justificativa da falsidade; o que sucede simplesmente é ter a lei entendido ser inexigível dos arguidos o cumprimento do dever de verdade, razão por que renunciou nestes casos a impô-lo” [6];
Julgado

O Superior Tribunal de Justiça, por sua Sexta Turma, ao julgar, à unanimidade, o Habeas Corpus nº 834.126-RS, acatou voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, no qual se afirma: “[…] Não me parece adequado admitir que haja, propriamente, um “direito de mentir”. A rigor, o que existe é uma tolerância jurídica – não absoluta – em relação ao falseamento da verdade pelo réu, sobretudo em virtude da ausência de criminalização do perjúrio no Brasil, conduta cuja tipificação penal é objeto de alguns projetos de lei em tramitação no Congresso (por exemplo: PL 3148/21 e PL 4192/2015). Tolerância não absoluta porque, em algumas oportunidades, a própria lei cuida de atribuir relevância penal à mentira ou outras formas de encobrir a verdade”[7].
Conclusão
É de se concluir:
a) Acerca da liberdade de agir, Dominique Janicaud afirma: “Um ato reflexo não é livre: o fogo está me queimando; retiro a mão. Em compensação, se mantenho a mão no fogo para mostrar minha coragem, por exemplo, por causa de uma aposta louca, esse ato, ainda assim, é um ato de liberdade” [8];
b) Em que pese não afiançar a existência do direito de alguém à autolesão, evidencia-se, no exemplo, a liberdade para tanto;
c) A não criminalização de uma conduta, por si só, não transforma sua prática em verdadeiro direito;
d) Em consequência, não existem, sejam os supostos direitos de morrer, de matar, de furtar, de fugir, de auxiliar alguém a se subtrair à ação de autoridade pública, na forma delineada no item “1” deste texto, sejam os pretensos direitos ao adultério e ao incesto;
e) Inexiste, por fim, autêntico direito de mentir do réu, quando perseguido criminalmente;
f) O verdadeiro direito — em questão — é o direito de defesa, sendo a mentira manifestação consequente do direito de se defender, o qual pode ser exercido, inclusive mentindo, afigurando-se o ato de mentir como estratégia impunível de defesa;
g) O próprio Nucci parece isso reconhecer, quando afirma: “No exercício de sua autodefesa […] pode o acusado dizer o que bem entende, inclusive mentir” [9]; e “Assim, se não é proibido mentir, porque faz parte da autodefesa” [10];
h) Para o réu, inexiste o direito de mentir, assim como para aquele que reage em legítima defesa inexiste o direito de matar, sendo o ato de tirar a vida do agressor – de igual modo – estratégia de defesa excepcionalmente permitida;
i) Fosse o ato de mentir autêntico direito, e não um “derecho” entre aspas, como o admite Asencio Mellado, existiria uma correspondente “obrigação dos órgãos estatais em aceitar como verdadeiras as declarações prestadas pelos arguidos” [11], alerta o jurista espanhol;
j) Na persecução penal, tem o réu, propriamente, a liberdade para (mentir) – e não o direito de (mentir) — liberdade tolerada [12], porque não punida, a qual configura expressão do legítimo direito de defesa.
[1] Sempre que, neste texto, houver referência a réu, referida referência abrange o réu propriamente dito, bem como o perseguido criminalmente em fase pré-processual.
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 82-83.
[3] Apud SANTOS, Marcus Renan Palácio de Morais Claro dos. O direito ao silêncio no processo penal. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 83.
[4] TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. 4º volume. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1978, p. 20.
[5] IDEM, ibidem, p. 49.
[6] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Primeiro volume. Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 450-451.
[7] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Sexta Turma, HC Nº 834126-RS, j. 05.09.2023.
[8] JANICAUD, Dominique. Filososfia: uma iniciação em pequenas lições; tradução Marisa Motta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 66.
[9] NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 82-83.
[10] IDEM, ibidem, pp. 82-83.
[11] Apud RISTORI, Adriana Dias Paes. Sobre o silêncio do arguido no interrogatório no processo penal português. Coimbra: Edições Almedina, 2007, p. 156.
[12] Tolerância jurídica – não absoluta (Min. Rogerio Schietti Cruz, em voto no HC 834126-RS).
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