Opinião

Crime de usurpação mineral: aspectos penais e processuais penais

Autores

  • é advogado especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor de Processo Penal na Faculdade de Ciências e Tecnologia de Unaí (MG).

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  • é advogado graduado em Direito pelo Centro Universitário de Patos de Minas especialista em Direito Ambiental professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental do Centro Universitário de Patos de Minas e professor de Direito Ambiental Direito Constitucional Ecologia e Teoria Geral do Direito das Faculdades INESC e FACTU — Unaí (MG).

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2 de junho de 2025, 18h22

O artigo 2º da Lei 8.176/91, embora inserido em norma que define os crimes contra a ordem econômica, versa sobre a usurpação de bens e matérias-primas pertencentes à União.

Na maioria das vezes, esse crime é imputado em concurso formal (artigo 70, CP) com o delito previsto no artigo 55 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), sendo julgado, a priori, pela Justiça Federal.

Neste artigo, buscaremos examinar as principais nuances que envolvem o crime de usurpação mineral. Para tanto, é oportuno um breve resgate histórico. Ter em mente o contexto de surgimento de determinada infração penal, é imprescindível para a melhor compreensão do tema.

Débora Lopes Luciano (2015), em estudo acurado sobre o crime de usurpação mineral, aduz que “o contexto histórico mundial de criação da Lei n° 8.176/91 foi a crise mundial do petróleo”, arrematando que referida legislação “surgiu como uma tentativa de frear o aumento do preço dos combustíveis, prejudiciais não só ao sistema econômico dependente da venda da gasolina como também à própria segurança do cidadão e do meio ambiente”.

No mesmo estudo, a autora, rememora que o objetivo inicial do Congresso Nacional era a promulgação de uma lei penal temporária, subsistindo até o fim da crise da Guerra do Golfo do Pérsico.

Ney Moura Teles (2004, p. 108) relembra-nos que as leis temporárias “existem para vigorar por certo tempo, dependendo da ocorrência de certa condição ou de certo termo”.  Ocorre que, como se sabe, a Lei 8.176/91 e seus tipos penais, permanecem em vigor até os dias atuais.

Análise do crime

Passemos à análise do crime de usurpação mineral (artigo 2º da Lei 8.176/91).

Reza o artigo 2º da Lei 8.176/91:

Art. 2° Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpacão, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.

Pena: detenção, de um a cinco anos e multa.

§ 1° Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo.

§ 2° No crime definido neste artigo, a pena de multa será fixada entre dez e trezentos e sessenta dias-multa, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime.

§ 3° O dia-multa será fixado pelo juiz em valor não inferior a quatorze nem superior a duzentos Bônus do Tesouro Nacional (BTN).

Objeto jurídico:  o objeto jurídico tutelado pela norma penal são os bens ou matérias-primas da União.

Norma penal em branco e sua conformação com a denúncia (artigo 41 do CPP): o tipo penal em comento é uma norma penal em branco. Sua perfeita compreensão exige a consulta à legislação extrapenal, notadamente a Constituição e o Código Minerário. Leandro Paulsen (2018, p. 184) aduz que o crime de usurpação mineral “se trata de uma norma penal em branco, que depende da integração para a identificação de quais são os bens da União”. Mas não é só.

Zig Kock/WWF

Há que se identificar as licenças e/ou autorizações exigidas para a produção e/ou exploração de matéria-prima pertencente à União, bem como quais são os órgãos competentes para a expedição de tais títulos. As normas penais em branco, segundo Miguel Reale Júnior (2020, p. 82), são “normas incompletas, cuja tipificação vem a ser completada por legislação editada posteriormente pelo poder Executivo ou pelo próprio legislativo”.

Trata-se, como bem reverbera Juarez Cirino dos Santos (2014, p. 50), de verdadeira “administrativização do direito penal”, daí porque autores como Juarez Tavares (2020, p. 76) sustentam a eliminação deste tipo de norma penal.  Christiano Fragoso (2004, p. 08) pontifica que “um dos reflexos mais visíveis da norma penal em branco está na conformação da denúncia ou queixa”.

Como é cediço, estabelece o artigo 41 do CPP, que a denúncia ou a queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias bem como a classificação jurídica do delito. Nesse sentido, salutar reconhecer-se que o complemento da norma penal em branco encontra-se umbilicalmente ligado à questão da tipicidade penal. É dizer, ausente o complemento da lei penal em branco, o fato descrito como crime, torna-se um indiferente penal.

Disso decorre uma consequência lógica, qual seja a necessidade de que a peça acusatória descreva de modo minudente e hígido todos os elementos relacionados ao complemento da norma penal em branco (FRAGOSO, 2004). Esse mesmo entendimento é também perfilhado, entre outros, por Cezar Roberto Bitencourt (2012, p. 256), para quem “tratando-se de norma penal em branco, a própria denúncia do Parquet deve identificar qual lei complementar satisfaz a elementar exigida pela norma incriminadora, ou seja, deve constar da narrativa fático-jurídica qual lei desautoriza a prática da conduta imputada, sob pena de revelar-se inepta, pois a falta de tal descrição impede o aperfeiçoamento da adequação típica”.

Sublinhe-se, deste modo, que a denúncia criminal fundada em tipos penais em branco, somente terá validade jurídica quando descrever com inteireza e precisão todos os caracteres que compõem a conduta imputada, sob pena de violação à ampla defesa (artigo 5º, LV, CR/88).  Afinal, é impossível defender-se de algo que não se conhece. Bem por isso, a jurisprudência do c. STJ já se manifestou no sentido de que “não constando da denúncia o ato regulatório que deixou de ser observado pelo recorrente, verifica-se que a inicial acusatória traz imputação incompleta, inviabilizando o exercício da ampla defesa” (STJ – RHC 103.105/PE, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, DJe 31/10/2018).

Spacca

Sujeitos do crime: o sujeito ativo do crime é qualquer pessoa que produza e/ou explore bens ou matérias-primas pertencentes à União (crime comum). Os sujeitos passivos são a União e toda a coletividade.

Tipo objetivo: incide no crime em estudo, aquele que se apropria de bens ou matérias-primas da União com fins mercantis (aferição de lucro).

Tipo subjetivo: o crime é punido apenas à título doloso. Destaque-se que o delito apenas se aperfeiçoará com o “fim lucrativo da extração” (TRF-4, ACR 5004397-24.2013.404.7207, 7ª T., rel. p/ acórdão Rodrigo Kravetz). Logo, a mera extração de mineral sem licença e/ou autorização, conquanto configure infração administrativa, é um indiferente penal.

Consumação e tentativa: o crime se consuma no momento da exploração mineral ilegal, trata-se, é bom que se frise, de crime permanente. A tentativa é possível, mas de difícil configuração.

Conflito de normas: apesar de a jurisprudência majoritária admitir a imputação simultânea dos tipos penais previstos nos artigos 2º da Lei 8.176/91 e 55 da Lei 9.605/98, ao argumento de que os bens jurídicos tutelados são diversos, a este entendimento, permissa vênia, não podemos concordar. Preambularmente, é preciso sublinhar que vigora em nosso sistema penal, o princípio da especialidade (artigo 12, CP), prevalecendo-se a norma especial, em detrimento da norma geral.

Dessarte, comparando-se ambos os crimes, verifica-se que os elementos normativos são congruentes: ambos tratam da exploração de recursos minerais sem a devida autorização. No mesmo sentido, é por demais conclusiva a lição de Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fábio Delmanto (2006, p. 510): “também foi derrogado o art. 2º da Lei 8.176/91, na parte em que punia a exploração de matéria-prima pertencente à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo”. Contudo, o entendimento dominante, inclusive dos tribunais superiores, é pela coexistência de ambos os delitos (nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 8. ed. rev., atual. e ampl. vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 645).

Benefícios processuais: a pena mínima cominada, por não superar um ano de privação, permite a suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei 9.099/95). Todavia, como dito anteriormente, o crime de usurpação mineral dificilmente é imputado de modo isolado (a jurisprudência entende haver concurso formal com o crime do artigo 55 da Lei 9.605/98). Nesse contexto, seria cabível o acordo de não persecução penal, ex vi do artigo 28-A do CPP.

Competência para processamento e julgamento do feito: Renato Brasileiro de Lima (2020, p.  216), com o costumeiro acerto, assevera que, “para fins de fixação da competência da Justiça Federal com base no artigo 109, IV, da Constituição Federal, essa lesão aos bens, serviços e interesses da União deve ser direta. Caso contrário, a competência será da Justiça Estadual”.

Com efeito, “a Justiça Federal somente será competente para processar e julgar crimes ambientais quando caracterizada lesão a bens, serviços ou interesses da União, de suas autarquias ou empresas públicas, em conformidade com o art. 109, inciso IV, da Carta Magna” (CC 113.345/RJ, Rel. ministro Marco Aurélio Bellize, 3ª Seção, julgado em 22/8/2012, DJe 13/9/2012).

Remarque-se, nesse sentido, que a jurisprudência mais moderna tem entendido que se a usurpação ocorre em área de domínio particular, que corresponde a imóvel cujo título de domínio pertence a terceiro, a competência da Justiça Federal restaria afastada (ACR 0045371-72.2017.4.01.3800, JUIZ FEDERAL JORGE GUSTAVO SERRA DE MACÊDO COSTA (CONV.), TRF1 – TERCEIRA TURMA, e-DJF1 25/10/2019 PAG.). Cite-se, nesse sentido, o seguinte precedente do STJ:  AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL X JUSTIÇA ESTADUAL. AÇÃO PENAL. CRIME AMBIENTAL. ART. 55 DA LEI N. 9.605/1998. EXTRAÇÃO RUDIMENTAR DE AREIA EM LEITO DE RIO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE LESÃO A INTERESSE DA UNIÃO COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.  1. Compete à Justiça estadual o julgamento do crime do art. 55 da Lei n. 9.605/1998, consubstanciado em extração rudimentar de areia em leito de rio, quando não demonstrada excepcional lesão a interesse da União. 2. Agravo regimental improvido. (AgRg no CC 151.896/RJ, Terceira Seção, Rel. Ministro Antônio Saldanha Palheiro, DJe 1/2/2019).

Prova pericial: por se tratar de crime material, exige-se prova pericial (artigo 158, CPP). A cadeia de custódia da prova deve ser rigorosamente observada (artigos 158-A a 158-F, CPP), sob pena de nulidade.

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Referências

BITENCOURT. Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo, Saraiva, 2012.

DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Leis penais especiais comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006

FRAGOSO, Christiano. Norma penal em branco – alguns aspectos processuais.  Disponível em: https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_editorial/174-145-Dezembro-2004.

LIMA, Renato Brasileiro de; GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Competência cível e criminal da justiça federal. São Paulo: JusPodivm, 2020.

LUCIANO, Débora. Crimes de usurpação mineral: uma análise do art. 2º da Lei nº 8.176/91. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41730/crimes-de-usurpacao- mineral-uma-analise-do-art-2-da-lein8-176-91.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 8. ed. rev., atual. e ampl. vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

REALE JÚNIOR, Miguel. Fundamentos de Direito Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: GEN: Forense, 2020.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6. ed. Curitiba: ICPC, 2014.

SCARANCE FERNANDES, Antonio. A Mudança do Fato ou da Classificação no Novo Procedimento do Júri. Boletim do IBCCrim, nº 188, julho/2008.

TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 2. ed.  São Paulo, Tirant lo Blanch, 2020.

TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2004.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Penal e Criminologia e Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor de Processo Penal na Faculdade de Ciências e Tecnologia de Unaí (Factu).

  • é advogado, graduado em Direito pelo Centro Universitário de Patos de Minas, especialista em Direito Ambiental, professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental do Centro Universitário de Patos de Minas e professor de Direito Ambiental, Direito Constitucional, Ecologia e Teoria Geral do Direito das Faculdades INESC e FACTU — Unaí (MG).

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