Embargos Culturais

'Veredicto em Canudos', de Sándor Márai

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1 de junho de 2025, 8h00

O tema da guerra de Canudos, tal como fixado por Euclides da Cunha em “Os Sertões”, foi também explorado por expressivos autores de reconhecimento internacional. É o caso de Mário Vargas Llosa (“A Guerra do Fim do Mundo”) e de Sándor Márai (“Veredicto em Canudos”). Eu me lembro desses. Pode haver mais.

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Os livros de Vargas Llosa e de Márai são romances históricos em todos os sentidos: há muito romance e há muita história. Não sei exatamente se seriam livros de homenagem a Euclides da Cunha. Nesse caso, seriam notas de rodapé à nossa obra monumental. Por outro lado, o que muito provável também, seriam livros sobre a violência no campo e, nesse sentido, são universais no tema.

Essa constatação, se verdadeira, também implica que aceitemos que “Os Sertões” seja também um romance histórico, como defendeu o insuspeito Otto Maria Carpeaux em ensaio que publicou no jornal “O Estado de S. Paulo” em 29 de novembro de 1958. A história é romance, e não há romance fora dos quadros históricos. Tanto a história, quanto o romance, são também variáveis de nossa imaginação. É que, já escreveu o paranaense Wilson Martins, “a realidade só adquire sentido quando transposta, por paradoxo, para os domínios da imaginação”.

Sándor Márai (1900-1989), autor húngaro, escreveu, entre outros, “Sobre a verdade”, “As brasas” e “Divórcio em Buda”, todos já resenhados por essa coluna de serviço cultural.

Trato nessa semana de “Veredicto em Canudos”, um livro que nos sugere um milagre de traduzibilidade. O autor leu “Os Sertões” em tradução para o inglês. A tradução de Samuel Putnam, publicada em 1944, com o imponente título “Rebellions in the Backlands”. Putnan notabilizou-se como vigoroso tradutor; foi quem verteu “Dom Quixote” do espanhol para inglês. Sua tradução de “Os Sertões” é carregada de notas explicativas, explicitando aspectos glotológicos da flora e fauna locais, termos incompreensíveis para o leitor de língua inglesa. Gostaria muito de ver como o tradutor verteu para o inglês a impressionante passagem:

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. (…) É o homem permanentemente fatigado.”

Como ficaria esse excerto em inglês? Da versão em inglês do livro de Euclides da Cunha Sándor Márai construiu seu romance, em húngaro. O leitor pode imaginar a dificuldade para verter do inglês para o húngaro expressões e conceitos e peculiaridades locais, que inclusive nós brasileiros temos dificuldade em compreender e conectar. E o milagre se completa com a competentíssima tradução do húngaro para o português, de Paulo Schiller, publicada pela Companhia das Letras.

De acordo com nota no fim do livro, Paulo Schiller contou com a interlocução de Walnice Nogueira Galvão, a grande especialista em Euclides da Cunha. Insisto. O leitor tem um milagre de traduzibilidade que impressionaria o próprio Umberto Eco, a maior autoridade no assunto, basta conferir “A busca da língua perfeita” na parte na qual o autor trata da confusão da torre de Babel. Conferir, nesse caso, Gênesis, 11, e problema da torre inacabada.

No caso desse livro de Márai, o tema foi do português para o inglês, e depois passou para o húngaro, e então voltou para o português. E, o que mais simbólico, temos mais de um século entre o português todo castiço e complicado de Euclides (basta ver fragmento acima) e o português contemporâneo, na tradução de “O veredicto em Canudos”. Outro milagre, contido nos limites de uma mesma língua. A nossa língua ou, a nossa pátria, diria Fernando Pessoa.

Vamos ao livro

“Veredicto em Canudos” é um romance que explora situações e possibilidades alternativas à narrativa cristalizada por Euclides. Márai construiu o romance a partir de imaginárias memórias de um soldado que lutara em Canudos, presenciando os momentos finais da carnificina propiciada por um ódio inexplicado.

O autor precisa dar luzes de verdade à narrativa. Um autor erudito (Márai) precisava se expressar na linguagem de um soldado. Ou, o grande problema, como um soldado convenceria o leitor expressando-se em linguagem de um autor erudito? A distância entre a fala, o autor e o falante parece um problema de construção literária, que percebo muito quando leio alguns contos de Dalton Trevisan. Mas isso é um outro assunto, para ser tratado em outra coluna.

Márai resolve o problema apresentando um soldado que era filho de um irlandês (que veio para o Brasil no tempo da grande fome irlandesa) e de uma cabocla. Consegue, assim, justificar que, por falar inglês (que aprendeu com o pai) o soldado se destacava. Na imaginação de Márai o narrador era o escriba da expedição que destruiu Canudos.

É na narrativa desse soldado improvável que Márai também registrou a barbárie. O gancho, em forma de salto de registro, é o mais problemático na narrativa. Esse ponto foi resolvido. Porém, há um outro ponto problemático. O autor discorre sobre uma hipótese pouco provável: Antonio Conselheiro teria escapado do massacre. A cabeça que fora exibida para os jornalistas não seria a cabeça do líder de Canudos.

Márai inseriu na narrativa uma inglesa que veio para o Brasil, e que foi até Canudos à procura do marido, que era médico. Na expectativa de estudar as relações entre loucura e desespero o médico misturou-se aos místicos. Desapareceu. No médico, e na esposa, penso, há uma nota que revela o interesse do europeu pelo Brasil, que de algum modo pode ser o interesse do próprio Márai, situação que lemos nas cartas que Stefan e Lotte Zweig enviavam do Rio de Janeiro para os amigos na Europa. A Versal Editores, do Rio de Janeiro, traduziu e publicou essas cartas.

O autor fixa uma cena (de muita tensão) na qual um jornalista de “O Estado de S. Paulo” questiona o chefe da expedição sobre o destino do corpo do Conselheiro. O jornalista, prossegue Márai, era “um homenzinho”, “podia ter uns quarenta anos, era um tipo magro e acanhado. Seu cabelo engordurado, negro, caía sobre a testa, e os ossos largos proeminentes do rosto evocam uma ascendência índia”.

Tenho a impressão de que o retrato seja fiel à figura real de nosso escritor. Como fieis são também as descrições que se encontram ao longo do livro, a respeito da realidade interiorana brasileira do início do século 20. Essa marca de fidelidade descritiva, literária, remete-nos a uma outra marca de fidelidade, que é a fidelidade histórica, desafiada pelo romance. Isto é, menciono a fidelidade histórica dos seguidores do Conselheiro para com seu líder, e a do próprio Conselheiro para as tragédias e desencontros de sua vida, que Sándor Márai evoca com maestria nesse belíssimo livro.

Marái atribuiu com competência ficcionalidade a pessoas da vida real e atribuiu também com competência realidade a personagens fictícios. Essa habilidade, na essência, é o traço que distingue um excelente romance histórico. É o caso de “Veredicto em Canudos”.

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