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Agentes públicos e redes sociais: lealdade institucional como referência funcional

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1 de junho de 2025, 8h00

A comunicação do poder público, antes limitada a diários oficiais, portarias ou ofícios, agora se projeta em postagens em redes sociais, “stories” ou comentários. Essa realidade impõe reflexões sobre deveres ético-jurídicos no âmbito dessa nova comunicação pública.

Spacca

Plataformas digitais como Instagram, X (antigo Twitter) e TikTok tornaram-se espaços de expressão pessoal, mas também — e cada vez mais — de comunicação institucional. A presença do Estado nas redes sociais é um fenômeno comunicacional que redefine os parâmetros da comunicação pública, da autoridade, da transparência e da responsabilidade ético-funcional daqueles que manejam perfis institucionais.

Foi justamente esse limiar, cada vez mais tênue, que veio à tona com o episódio recente envolvendo um servidor da Polícia Rodoviária Federal (PRF), lotado no Rio Grande do Norte (RN). Conforme noticiado, o servidor publicou, no perfil institucional, um comentário contra o presidente Lula, em favor do ex-presidente Bolsonaro, em um perfil de notícias do órgão [1].

A mensagem, de conteúdo inequivocamente depreciativo ao atual chefe do Poder Executivo, por ter sido feito no perfil institucional da Superintendência da PRF no RN, acabou levando à exclusão de toda a conta no Instagram, perfil esse que vinha sendo utilizado para veiculação de informações de utilidade pública à população.

Além do uso indevido de perfis institucionais para a veiculação de opiniões pessoais, tem-se observado, com frequência, a existência de “servidores-influencers” ou mesmo a apropriação de símbolos institucionais em perfis pessoais de servidores públicos. Tal fenômeno manifesta-se, por exemplo, pelo uso de fardas, uniformes ou pela incorporação da nomenclatura da instituição à identificação do perfil pessoal do agente público (como em “Fulano da Federal” ou “Sargento Beltrano”). Em todos esses casos, verifica-se uma confusão entre a manifestação de pensamento pessoal e a comunicação institucional, embaralhando os limites entre manifestação do pensamento do indivíduo e a entidade pública que representa.

Dever de lealdade

Todos esses casos, embora sejam fenômenos recentes, escancaram um problema estrutural que não é novo na burocracia brasileira: o desprestígio e o desuso prático do dever de lealdade institucional no regime jurídico dos servidores públicos, mesmo diante de condutas que atacam as instituições e fragilizam o pacto democrático. Seja pelo uso pessoal de perfil institucional ou nos casos em que o servidor é, também, influenciador, é preciso recuperar a centralidade do dever de lealdade — e, ao mesmo tempo, traçar balizas claras entre a crítica legítima e a apropriação pessoal da imagem institucional.

Assim, é necessário refletir sobre parâmetros objetivos de responsabilização ético-funcional que não descambem para o silenciamento indevido (chilling effect) [2], mas também não tolerem desvirtuamento ou degradação da imagem institucional.

Entre os diversos deveres impostos ao servidor público pela Lei nº 8.112/1990, poucos são tão negligenciados quanto o dever de lealdade à instituição.

Apagado na reforma da Lei de Improbidade, mas ainda localizado no artigo 116, inciso II, do Estatuto dos Servidores, tal dever é usualmente compreendido em termos de subordinação hierárquica e obediência funcional [3]. No entanto, sua função sistêmica vai muito além: a lealdade não é apenas fidelidade formal ao ente público, mas compromisso substancial com os fins republicanos que o Estado deve perseguir [4].

O dever de lealdade às instituições a que servir não é dever de silêncio do servidor. É, antes de tudo, dever de agir com coerência aos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito. Impõe, entre outras consequências, não permitir o uso da função pública para ataques pessoais com animus offendendi, desinformar ou deslegitimar autoridades constituídas. Exige, igualmente, que o servidor reconheça que sua atuação — quando se utiliza de perfil institucional ou quando se apresenta como “servidor” nas próprias redes sociais — carrega o peso da legitimidade estatal.

A distinção entre a pessoa e o cargo perde nitidez quando o agente utiliza o perfil institucional para veicular opinião pessoal ou quando decide se apresentar no espaço das redes com os atributos da função. Nesses casos, o servidor atua não como indivíduo, mas como prolongamento simbólico da autoridade estatal, portanto, é visto (assistido), ouvido e interpretado como o Estado falando.

Por isso, o dever de lealdade deve ser resgatado e reinterpretado não como uma cláusula protocolar do funcionalismo público noventista, mas como um pilar da confiança pública no Estado, de acordo com o Direito Administrativo que rege essas relações hoje, no tempo das redes.

O que está em jogo não é o conteúdo das postagens, mas a autoridade ínsita de quem fala, que delas se projeta. É o Estado falando? Ou o indivíduo? Esse indivíduo-servidor é porta-voz de sua instituição? Quando um servidor público usa o perfil institucional ou se apresenta como “PRF fulano de tal”, “médico do SUS” ou “Sargento Beltrano” para compartilhar ataques ou desinformação, o que se vê é a fusão da voz do indivíduo com a comunicação do Estado, de difícil dissociação para o público, e essa fusão, intencional, carrega consequências jurídicas.

Lacuna

O caso da PRF no Rio Grande do Norte é ilustrativo. A consequência imediata foi a retirada do perfil da PRF do ar, justamente uma página que informava a população sobre interdições em estradas, ações educativas e campanhas de segurança viária. Para além da confusão entre a mensagem particular e a comunicação pública, a suspensão do perfil gerou perda coletiva.

Não se desconhece a Nota Técnica Nº 1556/2020/CGUNE/CRG, objeto da ADI 6.530, revogada em janeiro de 2023. Contudo, o quadro atual revela uma lacuna: a ausência de protocolos claros para gestão de redes institucionais ou mistas (perfis pessoais que usam identidade funcional) gera um terreno fértil para a ambiguidade — e, com ela, para a corrosão da confiança nas instituições.

Assim, o uso, nas redes sociais, da identidade funcional é um elemento que impõe deveres do regime jurídico administrativo ao qual o servidor está submetido. Ao aderir publicamente aos signos da função — nome, cargo, instituição —, o servidor ativa seu regime de responsabilidade ético-funcional.

O desafio, portanto, não é coibir a crítica institucional legítima, mas delimitar o ponto em que o exercício da liberdade pessoal se converte em instrumento de deslegitimação institucional. A crítica fundamentada a políticas públicas ou decisões administrativas deve ser preservada como direito de agentes públicos, sempre que orientada pelo interesse público.

Nesse sentido, o servidor público não deve ser compreendido como sujeito censurado, mas como agente responsável pela preservação da credibilidade institucional. Ao usar sua condição de agente público ou redes sociais institucionais para escarnecer de um outro agente público, o servidor não apenas atinge a pessoa, mas compromete o pacto de confiança que sustenta o Estado de Direito Democrático.

Neste contexto, reafirmar e atualizar o dever de lealdade institucional ao tempo das redes não é um capricho burocrático, mas uma necessidade republicana. É reconhecer que a estabilidade democrática não se sustenta apenas em normas e eleições, mas também no comportamento ético da burocracia, dos que integram o aparelho de Estado. O perfil institucional na rede social, a farda, o crachá ou o título funcional carregam consigo um compromisso: o de servir com lealdade e com respeito às instituições. O desafio contemporâneo, portanto, é duplo: proteger o espaço da crítica legítima — inclusive dentro do serviço público — e, ao mesmo tempo, vedar o uso da posição funcional para causar confusão a respeito da comunicação institucional.

A democracia não se defende apenas nas urnas ou nos tribunais. Defende-se também no dia a dia da administração pública, nos gestos cotidianos de contenção, nas palavras que não humilham — mesmo quando discordam – que devem circular livremente. E, nesse ponto, o servidor público tem papel decisivo: sua fala, na condição de servidor, ainda que digital e rápida, reverbera como voz do Estado. Que ela seja, portanto, digna da República que representa.

 


[1] aqui.

[2] SUNSTEIN, Cass. Democracy and the problem of free speech. Publishing research quarterly, v. 11, p. 58-72, 1995.

[3] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de Direito Administrativo Disciplinar. pg. 392. Editora Forense. 2ª Edição. 2010.

[4] MENEZES DE ALMEIDA, Fernando. Formação da teoria do direito administrativo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019

Autores

  • é professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor e advogado especialista em Direito Público, membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • é advogado da União, foi procurador-geral da União (2023–2025), doutor em Direito pela Universidade de Salamanca, mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco e professor de Direito. Atua com temas ligados a Direito Administrativo, Direito Anticorrupção e Democracia Defensiva.

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