A Faculdade do Largo São Francisco no humor refinado de Almeida Nogueira
1 de junho de 2025, 8h00
José Luiz de Almeida Nogueira nasceu em 1851, na cidade de Bananal (SP). Em 1873 formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo que, com a de Olinda, em 1827, deu início aos cursos jurídicos no Brasil. Na sua faculdade foi professor de 1890 a 1914, sendo que em 1907 lançou o livro “Academia de São Paulo. Tradições e Reminiscências. Estudantes, Estudantões, Estudantadas”, com cinco volumes.[1] Nele, com base nos arquivos da faculdade, nas suas múltiplas amizades e em consulta a diversas fontes jurídicas, promoveu o levantamento de todos os estudantes da academia e seus destinos, mesclando com as informações profissionais as características pessoais dos alunos de então.
O estudo do Direito no passado
Os estudos superiores nunca foram preocupação de Portugal nos tempos da colonização. Proclamada a Independência em 1822, surgiram as mais renhidas discussões para que fosse criada uma Faculdade de Direito no Brasil, evitando os elevados custos necessários para que os nossos jovens se deslocassem para Portugal, a fim de se graduarem na tradicional Universidade de Coimbra. Por fim, a Lei sem número de 11 de agosto de 1827 dispôs a respeito no seu preâmbulo, afirmando: “Crêa dous Cursos de sciencias juridicas e sociaes, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda”. [2]
Com as duas faculdades desenvolvendo seus estudos com sucesso, o Brasil foi formando um quadro de bacharéis e doutores em Direito que foram preenchendo os cargos públicos que eram criados nas províncias, além de possibilitar que advogados com formação jurídica substituíssem os rábulas na defesa dos interesses das partes.
Registre-se que a Faculdade do Largo São Francisco, desde a sua criação, fixou como objetivo “formar governantes e administradores públicos capazes de estruturar e conduzir o país recém-emancipado, com a Proclamação da Independência poucos anos antes (1822)”. [3] Portanto, na esfera pública ou privada, aquele estabelecimento de ensino foi influindo e contribuindo para a formação do estado brasileiro.
Importância histórica da obra
O Brasil é um país que pouco preserva a sua cultura. E se isto ocorre de forma geral, na área do Direito a situação ainda é pior. Felizmente, nos últimos 25 anos a situação vem experimentando melhora, com boas iniciativas do STF, STJ, CNJ, tribunais de segunda instância e ONGs, entre as quais se cita o bom exemplo da rede Memojus. [4]
Ao escrever sua aprofundada pesquisa, Almeida Nogueira eternizou como se desenvolviam as relações socais da época, quem eram os personagens que viriam a ocupar as mais destacadas posições no Império e no começo da República, não só na esfera do Direito, mas também na política, cultura e áreas afins. Através de suas palavras é possível saber quem eram, como pensavam e se comportavam aqueles jovens que viriam a conduzir suas províncias e, em alguns casos, o Brasil.
Importância do humor na obra
O humor alivia tensões, diminui o estresse, torna a vida mais agradável e é, acima de tudo, um ato de inteligência. Apesar de isto ser evidente, alguns há que preferem optar pelas relações tensas, por vezes agressivas. No mundo jurídico isto se torna mais evidente, pois há uma permanente disputa de interesses, permeada por carências afetivas que resultam em desnecessárias demonstrações de poder.
Almeida Nogueira, nos 5 volumes de sua obra, não se limita a uma insossa descrição dos tipos que estudaram no largo São Francisco em suas primeiras décadas. Aprofunda-se nos tipos, desce às suas particularidades, aponta suas manias e ações, dando-lhes o colorido de seres humanos. São descrições muito mais verdadeiras, humanas e agradáveis do que as dos pomposos currículos oficiais, onde a exaltação pode levar-nos a pensar que estamos diante de uma divindade.
Sua pesquisa e comentários evitam que todos sejam tidos como iguais, tal qual as galerias de retratos das universidades e tribunais que, sem passagens históricas, mesclam os bons e os maus como se naquela sequência só houvesse anjos. Registra, também, a importância da origem familiar nas relações sociais, sendo evidente que os pertencentes a famílias bem relacionadas tinham maior facilidade na obtenção das melhores posições.
A obra revela também o tipo de cultura, de humor, de se descrever as passagens, da sociedade do seu tempo. Com a franqueza da época, inimaginável nestes tempos do politicamente correto, Almeida Nogueira descrevia os estudantes com suas reais características. Vejamos alguns exemplos.

Nos comentários às turmas de 1865 a 1869, mencionou A.D.N. como “Muito brincador, muito comunicativo, mas inimigo dos livros. Em compensação, muito amigo das cartas de jogar”. [5] Ao comentar a vida de A.B.C., relatou que “durante o seu curso jurídico, estudou astronomia, história, literatura, filosofia, estética, música, etc. Tudo estudava com ardor, com avidez, tudo menos — o Direito”. [6] J.F.A.F. foi descrito como magro, barbudo, moreno pálido e com nariz adunco, de onde lhe veio o apelido de Picapau. [7]
C.P.M.M., graduado na faculdade em 1865: “Inteligente, simpático, elegante, apesar de um abdômen assaz desenvolvido, que ele sem muito êxito procurava dissimular… Mais amigo do piano e do bandolim do que do Corpus Juris ou das Ordenações do Reino”. Mas, depois, registra o autor que M. tornou-se “um dos melhores magistrados da capital federal, tanto pela inteligência e integridade como pela ilustração jurídica”. [8]
Outras descrições eram de uma objetividade surpreendente. A A.M.A., da turma de 1868, atribuiu ser “Fraco estudante, não por falta de inteligência, mas de aplicação”. [9] A A.O., da mesma turma e origem, declarou ser irmão de importante conselheiro, mas sem com ele parecer, o que significava vantagem para a sua estética… [10] Descreveu F.N.M. como “um exquisitão; tipo de caboclo, moreno, pálido, feio, e, além disso, trajando mal e com certo abandono” [11] M.C.G. foi dado como “Assaz inteligente, mas completamente vadio”.
Mas os elogios também não faltavam aos mais dotados. Suas descrições eram como retratos, reproduziam o que pensava, sem preocupar-se com retoques como atualmente faz o photoshop. Por exemplo, ao referir-se a Manoel Ferraz de Campos Salles, que veio a tornar-se presidente da República, a quem atribuiu as virtudes de sóbrio, honestíssimo e inflexível. E a muitos outros menos conhecidos, como Antonio Quirino de Souza e Castro, não poupava elogios, atribuindo-lhe ser inteligente, estudioso e muito comunicativo.
Casos engraçados, peripécias, armadilhas, não faltam. Vejamos
F.M.S.F.M. graduou-se em 1838, tornou-se professor da Faculdade, delegado de Polícia e conselheiro. Anos depois, nome de rua na capital. Certo dia, o juiz de órfãos da capital, residente em uma chácara no Largo da Glória, escutou barulho no quintal. Munido de uma bengala foi investigar e aí encontrou um casal. Partiu para cima dos dois. Daí reconheceu sua criada, mas preferiu não reconhecer o acompanhante. No dia seguinte peticionou ao delegado, narrando o fato e pedindo reforço na vigilância. Todavia, teve que aguardar uns dias o despacho do Dr. Furtado, pois ele se achava acamado por motivos desconhecidos… [12]
Em outra narrativa, fala sobre um estudante cuja passagem pela Academia ficou marcada por ter sido, quiçá, o maior trocista daqueles tempos. Entre as inúmeras passagens narradas por Almeida Nogueira, vale citar uma viagem em que o personagem foi de São Paulo ao Rio Grande do Sul a cavalo e, para facilitar a viagem, deixou crescer barba e foi vestido com um hábito, ou seja, uma veste religiosa.
E então, “era acolhido com afago o padre santo; tudo lhe eram facilidades e os presentes de frangos, ovos, leitoas, frutas, etc., acudiam-lhe com prodigalidade. Ele, bondoso, abençoava de todo o coração a gente que pelo caminho o mimoseava com presentes”. Mas o autor faz questão de enaltecer seus méritos, na faculdade e na vida adulta, quando foi chefe de Polícia e depois desembargador. A conclusão é a de que o estudante soube aproveitar bem seu tempo de jovem e alegrou a vida dos que com ele conviveram, tudo sem prejuízo de, posteriormente, ter uma exemplar vida profissional.
Narra, ainda o autor, atos de explícita resistência, inimagináveis na atualidade. Por exemplo, J.V.C.M., ao exercer as funções de presidente da Província do Pará, recebeu uma portaria do Ministro da Justiça ordenando a reintegração de um oficial que ele havia destituído do posto. Seu despacho foi curto e objetivo: Não se cumpra. [13]
Conclusão
Almeida Nogueira prestou um excelente serviço à memória jurídica e política nacional. A par do levantamento histórico, notável retrato de época, com um humor refinado narrou fatos engraçados e características de personalidade de muitos formados no Largo São Francisco. Seu exemplo merece ser seguido pelas mais representativas faculdades de Direito da atualidade, evidentemente adaptando-se às peculiaridades de cada uma e à época em que foram criadas. É essencial evitar que tudo se perca na longa noite da história. O estudo do passado não é saudosismo, mas sim cultura e orientação para as gerações posteriores.
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[1] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de. Academia de São Paulo. Tradições e Reminiscências. Estudantes, Estudantões. Estudantadas, volumes 1 a 5. Lisboa: A Editora, 1907.
[2] BRASIL. Lei de 11 de agosto de 1827. Disponível aqui.
[3] Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. História. Pioneirismo e excelência na formação em Direito. Disponível aqui.
[4] MEMOJUS BRASIL. Disponível aqui.
[5] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de, op. cit, vol. V, 2ª. ed., Saraiva, 1977, p. 22.
[6] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de, op. cit, vol. V, 2ª. ed., Saraiva, 1977, p. 99
[7] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de, op. cit, vol. V, 2ª. ed., Saraiva, 1977, p.124.
[9] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de, op. cit, quarta série, p. 158.
[10] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de, op. cit, quarta série, p. 160.
[11] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de, op. cit, quarta série, p. 198.
[12] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de, op. cit, primeira série, pp. 289-290.
[13] ALMEIDA NOGUEIRA, José Luiz de, op. cit, vol. V, 2ª. ed., Saraiva, 1977, p.71.
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