Processo Tributário

Prescrição tributária, o CPC e a era digital

Autores

6 de julho de 2025, 8h00

Não é raro o advogado tributarista ver-se na contingência de patrocinar causa em que há fortes indícios da ocorrência de prescrição ordinária [1], ante a inércia da Fazenda Pública em diligenciar na busca da proteção de seu direito.

A situação é corriqueira: depara-se com execução fiscal em trâmite onde se constata que, da constituição definitiva do crédito tributário ao despacho ordenatório da citação expedido pelo juízo, já decorreu lapso temporal suficiente para a prescrição se consumar.

O contribuinte, ciente da perda da pretensão do órgão fazendário, oferta, então, exceção de pré-executividade, a fim de demonstrar que já se escoou o lustro prescricional.

Entretanto, ao apreciar a fundamentação desenhada na exceção de pré-executividade, o julgador considera que a demora ocorreu por conta de motivos inerentes aos mecanismos da justiça, para afastar a alegação de prescrição, espezinhando importantíssimo enunciado da lei processual civil, segundo o qual incumbe ao autor adotar as providências necessárias para viabilizar a citação, sob pena de não se operar a interrupção da prescrição (ou, ao menos, sua retroação à data da distribuição da ação).

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.120.295/SP, submetido ao rito dos recursos repetitivos [2], fixou entendimento no sentido de que o artigo 174 do Código Tributário Nacional deva ser interpretado conjuntamente ao disposto no artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil pretérito (o de 1973), ocasião em que afirmou:

“o marco interruptivo atinente à prolação do despacho que ordena a citação do executado retroage à data do ajuizamento do feito executivo, a qual deve ser empreendida no prazo prescricional. (…) A propositura da ação constitui o dies ad quem do prazo prescricional e, simultaneamente, o termo inicial para sua recontagem sujeita às causas interruptivas previstas no artigo 174, parágrafo único, do CTN.”

Afora a discussão em torno na viabilidade de lei ordinária (Código de Processo Civil) ser aplicada em contexto tributário, haja vista o disposto na alínea “b”, do inciso III, do artigo 146 da Constituição da República, que exige Lei Complementar para tratar do tema prescrição tributária, fato é que há entendimento judicial de que, para estabelecimento do marco interruptivo da prescrição, importa tão somente o protocolo da petição inicial, à luz do disposto na Súmula 106, do Superior Tribunal de Justiça [3], isso para afastar questões ligadas ao longo período entre a efetiva citação e o ajuizamento do feito.

Editada em 26 de maio de 1994, a Súmula 106/STJ consagra o entendimento de que a demora na citação não prejudicará o autor que aforou a demanda no prazo fixado para o seu exercício, por razões ligadas, exclusivamente, às engrenagens judiciárias.

Foi produzida em uma época analógica, em que os mecanismos da Justiça eram mais retidos, afinal os autos eram, em sua totalidade, físicos e os atos processuais se desenrolavam de modo cadenciado, isto é, uma era pré-digital, em que ausente todo dinamismo e agilidade que regem o processo moderno, seja porque a estrutura do Poder Judiciário não era compatível com a rapidez esperada, seja porque predominava o dogma do impulso oficial dos atos processuais.

Naquele momento era fácil compreender o motivo pelo qual a culpa pela demora na expedição do despacho ordenador da citação, ou até mesmo sua efetiva ocorrência, era atribuída, por regra, tão somente ao Judiciário, ficando o direito do credor resguardado ainda que nada fizesse nesse intervalo de tempo para movimentar a máquina judiciária na proteção dos seus interesses.

Interessante que essa ratio da Súmula 106/STJ foi incorporada ao Código de Processo Civil de 2015 através da regra existente no § 3º do artigo 240 [4] (artigo correspondente ao 219, do Código de Processo Civil de 1973), mas que não está só, pois, no mesmo artigo, temos um parágrafo que o antecede (§ 2º) determinando ser dever do autor adotar, no prazo de dez dias, as providências necessárias para viabilizar a citação, sob pena de não se aplicar o disposto no § 1º, isto é, de não se consolidar a interrupção da prescrição, ou, ao menos, retroação desta interrupção à data de propositura da ação.

Isso se fortalece nos dias atuais, recheado de recursos tecnológicos a serviço daqueles que litigam em juízo: há uma maior facilidade de as partes buscarem alcançar o regular andamento do processo, tanto através do peticionamento digital, quanto por ferramentas de comunicação online, tais como envio de e-mail às secretarias judiciais, disponibilizados publicamente na plataforma dos Tribunais, o balcão virtual com os servidores da Justiça, ou, ainda, despachos virtuais com os julgadores.

Não se está aqui defendendo a inaplicabilidade de Súmula de Corte Superior que, frise-se, foi incorporada no texto do Código Processual vigente, mas a necessidade de sua interpretação de forma sistemática, mediante a construção de sentido do § 3º do artigo 240 à luz do comando existente no § 2º do mesmo dispositivo, e, ainda, no contexto atual de nossa Sociedade.

Isso porque, há um novo ambiente tecnológico, em que o credor não apenas tem o dever de praticar todos os atos necessários visando proteger aquilo que está na iminência de prescrever, mas, sobretudo, detém meios de provocar a prática do ato judicial do qual o seu direito depende, muito mais eficazes do que aqueles existentes quando da fixação da referida tese sumular.

Infelizmente, são diversas as decisões judiciais que aplicam o aludido enunciado sem maiores reflexões (sem, inclusive, mencionar sua incorporação ao texto do Código de Processo Civil (§ 3º do artigo 240), olvidando-se, também, do contido no § 2º do artigo 240 do Diploma Processual em vigor. E isso deságua numa verdadeira profusão de recursos.

Cenário em mudança

Contudo, o cenário jurisprudencial começa a ser alterado, robustecido pela mudança de conjuntura na qual foi editada a Súmula, onde a tecnologia, a estrutura e a coordenação dos atos processuais está mais acessível e evoluída a permitir que o mesmo racional não seja mais aplicado indistintamente.

Nessa ordem de ideias, não é mais aceitável a cômoda atribuição de culpa exclusiva ao Judiciário, sob o (falso) pretexto de ser o impulso oficial absoluto, reconhecendo-se a inviabilidade de não considerar a responsabilidade do credor no zelo do trâmite processual, em especial pelo comando que impõe a adoção, pelo autor (Fazenda Pública), das providências necessárias à promovação da citação do réu (contribuinte), sob pena de não se interromper a prescrição (ou, ao menos, não retroação à data da distribuição da ação).

Nesse sentido, interessante a transcrição de parte do voto proferido pelo desembargador Rezende Silveira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que enaltece esses pontos [5]:

“Era mesmo de rigor o reconhecimento da prescrição, pois a citação deve ser feita em um prazo razoável, não se podendo eternizar o processo sem que a exequente adotasse, a tempo e modo, as providências necessárias para o implemento da citação válida (…)
Anote-se, ainda, por oportuno que o princípio do impulso oficial, obviamente, não desincumbe a exequente de seus deveres processuais, pois, na qualidade de parte, cumpria-lhe zelar pelo andamento do processo e requerer o que de direito justamente para evitar a extinção do seu crédito.
(…) No caso , não se pode imputar o atraso ao Poder Judiciário, mas sim à inércia da exequente que não cuidou de efetivar a citação válida do devedor a tempo e modo, de sorte que outra solução não havia mesmo que não o fosse o reconhecimento de ofício, afastado o entendimento contido na súmula 106 do Superior Trinal de Justiça.”

Assim, quando configurada culpa concorrente (Judiciário e Exequente — que não cuida de efetivar a citação válida do devedor a tempo e modo) impõe-se o afastamento da Súmula 106 e o reconhecimento da prescrição ordinária, em respeito à determinação disposta no § 2º do artigo 240 do Código de Processo Civil, afinal dormientibus non succurrit jus.

Esse entendimento também é aplicável aos executivos fiscais, já que o precedente do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial 1.120.295/SP), valeu-se de regramento posto no Diploma Processual para justificar a retroação do momento interruptivo da prescrição (despacho citatório) à distribuição da ação, especificamente o § 1º, artigo 240, do Código de Processo Civil, mas evidente que seu conteúdo precisa ser interpretado em conjunto com os demais parágrafos do mesmo artigo, em especial aquele (§ 2º) que determina que o credor adote as providências necessárias para a realização da citação, sob pena de não incidência do comando previsto no § 1º.

Nessa medida, considerar que logo após a propositura da ação não há mais nenhuma providência a ser adotada pela Fazenda Pública, legando ao Poder Judiciário a morosidade da citação, é acolher postura ingênua e contraproducente, contrária, também, ao princípio da celeridade processual.

O princípio do impulso oficial não desonera o autor de seus deveres processuais, ainda mais quando o ente é a Fazenda Pública, aparelhado de estrutura e recursos humanos aptos a (potencialmente) resguardar seu direito de modo muito mais eficiente, especialmente na era digital em que nos encontramos, devendo adotar, sempre, postura ativa, zelosa, empenhada para a proteção do seu direito.

Se for aplicável o Código de Processo Civil no cômputo da prescrição tributária, que o seja em sua inteireza, com observância também ao disposto no seu artigo 240, §2º.

___________________

[1] Qualifica-se a prescrição de ordinária para se referir àquela que compreende a inércia do fisco em ajuizar o processo executivo fiscal.

[2] REsp 1.120.295/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 12.5.2010, DJe 21.5.2010.

[3] Superior Tribunal de Justiça, Súmula 106. Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência.

[4] Art. 240 (CPC). A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

  • 1º A interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação.
  • 2º Incumbe ao autor adotar, no prazo de 10 (dez) dias, as providências necessárias para viabilizar a citação, sob pena de não se aplicar o disposto no § 1º.
  • 3º – A parte não será prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário.

[5] TJSP. 14ª Câmara de Direito Público. Apelação n. 0508106-31.2007.8.26.0071. Desembargador Relator Rezende Silveira. DJe 26/03/2025.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!