Opinião

Crianças não são obrigadas a depor; e pais não podem obrigá-las

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  • é juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Presidente do Foeji (Fórum Estadual das Juízas e dos Juízes da Infância e Juventude) de SP. Juiz integrante do Foninj (Fórum Nacional da Infância e da Juventude). Doutorando em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem) e graduado em Direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás) tendo realizado Programa de Intercâmbio Acadêmico Internacional (com bolsa) na Universidade de Coimbra Portugal. É Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera — Uniderp e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. Juiz colaborador da EPM (Escola Paulista da Magistratura). Membro do Fonajup (Fórum Nacional da Justiça Protetiva) e do IBDCRIA (Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente).

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6 de julho de 2025, 15h23

O fórum é um espaço que foi historicamente concebido por e para adultos. Por vezes, contudo, crianças entram em contato com o sistema de justiça e são convidadas a comparecer ao fórum para prestar um depoimento em processo judicial. Em meio à formalidade dos ritos e à complexidade da linguagem jurídica, a voz das crianças luta para ser ouvida, não como um mero eco das vontades dos adultos que os cercam, mas como a expressão autêntica de um sujeito de direitos.

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No cerne desse desafio, encontra-se a aplicação da Lei nº 13.431/2017, que instituiu o depoimento especial como modalidade adaptada de oitiva de crianças e adolescentes perante o Poder Judiciário. Entretanto, a prática forense revela uma tensão persistente em torno de uma questão: a quem pertence, de fato, a decisão de falar ou calar em um processo judicial?

Neste artigo buscamos enfrentar essa questão, defendendo duas premissas interdependentes e inegociáveis: o depoimento especial é um direito personalíssimo da criança, não se submetendo à autorização ou veto de seus pais ou responsáveis. E, como corolário desse mesmo direito, a criança não pode, sob nenhuma hipótese, ser coagida a depor. Para tanto, analisaremos a natureza do depoimento especial como um direito-faculdade, sua desvinculação da lógica da incapacidade civil e, por fim, como reflexo processual concreto, a inadequação da condução coercitiva do depoente infantojuvenil que, intimado, não comparece ao fórum para ser ouvido no dia e horário agendados.

Prestar depoimento: um direito e não um dever

Entendemos que o ponto de partida para qualquer reflexão sobre o tema deve ser a superação de um paradigma arraigado no sistema de justiça: a ideia de que o depoimento é um dever jurídico, uma obrigação imposta a todos para a busca da verdade pelo processo. Se essa lógica se aplica aos adultos, ela é fundamentalmente subvertida quando o depoente é uma criança ou adolescente. Para eles, ser ouvido em juízo não é uma obrigação, mas um direito fundamental.

Essa prerrogativa tem sua gênese na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989, um marco civilizatório que reposicionou a criança de mero objeto de intervenções a sujeito de direitos.

O artigo 12 desse tratado internacional contempla o direito de participação de crianças e nos processos judiciais (Lansdown, 2021). O direito que crianças têm de participar dos processos judiciais que possam afetá-las garante a possibilidade de opinar, expressar-se livremente e, acima de tudo, sentir-se verdadeiramente ouvidos. Esse direito assegura que suas perspectivas sejam consideradas, impactando diretamente sua capacidade de serem agentes ativos em suas próprias vidas e na sociedade. Em suma, é o direito de ter voz e o direito de que a sua voz possa ser ouvida e levada a sério (Lundy, 2007).

O direito à participação, agasalhado pelo artigo 12 da convenção, é o fundamento maior do depoimento especial previsto na Lei nº 13.431/2017. Aliás, não à toa o artigo inaugural desta lei estabelece que as suas normas devem ser aplicadas nos termos do artigo 227 da Constituição e dos tratados internacionais de que o Brasil é signatário, em especial a Convenção sobre os Direitos da Criança.

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Com efeito, a Lei nº 13.431/2017 internaliza e operacionaliza o direito à participação nos casos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Nessa medida, o depoimento especial não é apenas uma técnica de inquirição; é a materialização do direito à participação.

Contudo, o direito de participar e de ser ouvido carrega, como sua outra face indissociável, o direito de não participar e de não ser ouvido. É que a participação, para a criança é sempre voluntária, ou seja, uma escolha, nunca uma obrigação. É um direito de dupla dimensão: a faculdade de falar e a garantia de poder silenciar. Inclusive, nesse exato sentido diz o artigo 5º, VI, da lei que é um direito fundamental da criança e do adolescente “ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, assim como permanecer em silêncio”.

No mesmo sentido, o artigo 2º, VI, do Decreto nº 9.603/2018. Ainda, dispõe o artigo 19 da Resolução nº 299/2019 do CNJ que “deve ser garantido à criança e/ou ao adolescente o direito ao silêncio e a não prestar depoimento”. Ou seja: prestar depoimento é um direito da criança, da mesma forma como não prestar depoimento também é um direito. Dois direitos fundamentais que se complementam: direito a prestar depoimento (participar) e a ficar em silêncio (não participar). Ora, ignorar essa segunda dimensão é esvaziar a primeira de seu sentido, transformando um direito em uma armadilha autoritária.

Prestar depoimento: um direito da criança e não do adulto

Se está claro que depor é um direito (e não um dever), a pergunta seguinte é: quem é o titular desse direito? A resposta parece óbvia — a criança —, mas a prática revela uma confusão conceitual perigosa, que importa inadequadamente a lógica do direito civil para o campo dos direitos fundamentais da personalidade.

De fato, é comum que magistrados, promotores e defensores/advogados, imersos na sistemática do Código Civil de 2002, questionem se os pais ou responsáveis devem “autorizar” a oitiva da criança. Afinal, o Código estabelece que os menores de 16 anos são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, devendo ser representados, e que os maiores de 16 e menores de 18 são relativamente incapazes para o exercício de certos atos, devendo ser assistidos.

Ocorre que essa lógica é totalmente inaplicável quando se trata de depoimento especial. A capacidade civil a que se refere a Lei nº 10.406/2002 diz respeito a atos de natureza negocial, patrimonial e contratual, como comprar um imóvel, assinar um contrato ou administrar bens. Nesses casos, a lei presume que a imaturidade do infante poderia levá-lo a celebrar negócios jurídicos prejudiciais a si mesmo, daí a necessidade da intervenção de um adulto para validar o ato.

O direito a ser ouvido em Juízo — corolário direto do direito à participação —, entretanto, não pode ser considerado estritamente como um ato da vida civil. Não é um direito patrimonial ou negociável. Trata-se de um direito da personalidade, de natureza personalíssima, intrinsecamente ligado à dignidade e à identidade do indivíduo. Assim como o direito à vida, à liberdade e ao nome, o direito à participação pertence à criança como ser humano, e não como titular de um patrimônio. Os pais não “autorizam” o filho a viver ou a ter um nome; da mesma forma, não podem “autorizar” ou “proibir” o filho de exercer um direito que é seu, qual seja, o de se expressar sobre uma violência sofrida.

O papel dos pais ou responsáveis, no campo dos direitos fundamentais, não é o de representação ou assistência no sentido civilista, mas o de garantir e facilitar o exercício desses direitos (Hartung, 2022). Eles são zeladores, não proprietários da vontade e da voz da criança. Logo, uma eventual oposição ao depoimento por parte dos genitores ou adultos responsáveis, ainda que bem-intencionada e motivada por um instinto protetivo, não pode usurpar a titularidade de um direito que não lhes pertence.

Evidentemente que as preocupações dos adultos devem ser acolhidas e seriamente consideradas pela autoridade judiciária, que tem o dever de ponderar todos os fatores para avaliar se a oitiva é, de fato, necessária e benéfica. Contudo, a decisão final cabe ao juiz, como garante dos direitos da criança (artigo 22, §2º, do Decreto nº 9.603/2018), e não aos respectivos pais, como seus supostos “representantes” para este ato. Condicionar o depoimento especial a uma autorização paterna é um retrocesso conceitual que reifica a criança e nega seu status de sujeito de direitos.

Ausência do depoente e (im)possibilidade de condução coercitiva

A tensão entre o direito da criança e a vontade dos adultos atinge seu clímax quando, chegada a data da audiência, o depoente, embora intimado, não comparece ao fórum.

Ora, para um depoente adulto, a ausência injustificada enseja a expedição de mandado de condução coercitiva, ato pelo qual o oficial de Justiça, inclusive com possibilidade de apoio policial, leva a pessoa a pessoa à presença da autoridade judiciária, isto é, ao fórum, utilizando da força se necessário. É um ato de constrição, também conhecido como “condução sob vara”. Para o adulto depor em juízo é um dever (tanto que é crime ocultar a verdade: artigo 342 do Código Penal). O adulto é obrigado a comparecer ao fórum. Justamente por isso o Código de Processo Penal autoriza a condução coercitiva da vítima (artigo 201, §1º) e da testemunha (artigo 218) adultas que, embora intimadas, não comparecem à solenidade. A questão que ora se coloca é: seria essa medida aplicável a uma criança? A resposta deve ser um categórico “não”.

Primeiramente, porque a condução coercitiva é a ferramenta para garantir o cumprimento de um dever, e, como já exaustivamente demonstrado, depor é um direito para a criança — e não um dever. Coagir alguém a exercer um direito é uma contradição em termos, uma violência (institucional) que aniquila a própria natureza da prerrogativa.

Carvalho (2021) considera que a condução coercitiva de crianças e adolescentes é uma forma de violência institucional que causa revitimização. Segundo o autor: “a condução coercitiva de crianças e adolescentes viola a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei nº 13.431/2017, a Convenção sobre os Direitos da Criança, bem como afronta a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos” (Carvalho, 2021, p. 318). No mesmo sentido, Dias e Morais (2024) consideram que a condução coercitiva de crianças e adolescentes é um expediente que pode gerar revitimização.

Do mesmo modo, entendemos equivocada a decisão judicial que determina seja uma criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência conduzida coercitivamente ao fórum para prestar depoimento. A condução coercitiva seria a antítese do ambiente seguro e acolhedor que o depoimento especial pretende criar. A imagem de oficiais de justiça levando uma criança à força para um fórum é a materialização da violência institucional, transformando o Estado em um agente de coação.

Além de revitimizante, a medida seria contraproducente. Uma criança coagida e traumatizada não produzirá um relato livre e espontâneo. A prova, objetivo final da oitiva, seria irremediavelmente contaminada pelo medo, tornando-se imprestável. Assim sendo, forçar a presença física garantiria um corpo na sala de audiências, mas ao custo do silenciamento do sujeito e da fidedignidade do testemunho.

Ocorre que averbar que a condução coercitiva é inapropriada e não deve ser determinada, porque é uma violência institucional que pode causar revitimização não resolve o problema prático: afinal, o que fazer quando o depoente infantojuvenil, embora devidamente intimado, não comparece ao fórum, o que prejudica a tomada do depoimento especial?

Ora, o não comparecimento não pode ser recebido com passividade pelo Judiciário. Em primeiro lugar, este fato (ausência do depoente intimado no momento da audiência) impõe ao magistrado o dever de diligência, isto é, de investigar ativamente as razões que justificaram a ausência.

Para tanto, algumas alternativas se abrem ao magistrado, exemplificativamente: acionamento do Conselho Tutelar para que o órgão apure o motivo da falta; expedição de mandado de constatação a fim de que o oficial de Justiça vá até a residência do depoente verificar o que houve; ou — e essa nos parece ser a medida mais recomendável e acertada — determinar que o setor técnico do juízo (assistentes sociais e psicólogos judiciários) realize diligência (inclusive visita domiciliar, se for o caso) e traga aos autos informação técnica sobre o ocorrido.

De todo modo, independente do caminho trilhado pelo magistrado, é fundamental entender o que motivou a ausência do depoente na data da audiência de depoimento especial. Por exemplo, é possível que tenha ocorrido um obstáculo material — a família não tem dinheiro para o transporte — e, nesse caso, cabe ao Judiciário provocar a municipalidade para prover os meios.

Nesse ponto, a analogia com a violência doméstica é iluminadora. O Enunciado nº 70 do FONAVID orienta:

Caso a mulher em situação de violência, devidamente intimada, deixe de comparecer na audiência, é recomendada a realização de diligências a fim de verificar o motivo da ausência, atentando-se para o princípio da autonomia da vontade da ofendida e eventuais riscos de revitimização.

Se essa cautela se impõe para uma mulher adulta, com muito mais razão deve ser aplicada a uma criança.

Ocorre que, frequentemente, mesmo após as devidas diligências, se conclui que, na verdade, a ausência do depoente infantojuvenil é fruto de uma obstrução deliberada pelo adulto responsável legal, seja por medo do agressor, por dependência financeira, por condescendência com a prática abusiva ou por simples descrença no relato da criança. Principalmente nos casos de violência intrafamiliar, não são raras as vezes que a família da vítima fica do lado do agressor e coloca em dúvida a ocorrência da violência.

Nos casos em que o adulto deliberadamente embaraça o exercício do direito da criança a participar da audiência e prestar depoimento, o que fazer? O caminho correto, ao se constatar eventual obstrução parental, não é a condução coercitiva. A intervenção estatal deve ser dirigida ao adulto que obstrui o direito, e não à criança que é sua titular. Por isso, entendemos que compete ao juiz do processo comunicar imediatamente o fato ao juízo da Infância e da Juventude, este sim o foro competente para avaliar a situação de risco em que a criança foi colocada pela conduta omissa e negligente do responsável.

Caberá à Vara da Infância adotar as medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, que podem ir de uma advertência ao responsável até, em casos graves, a reavaliação da própria guarda. A solução está no ECA, não no Código de Processo Penal.

Resolvida a situação de risco com o provimento dos cuidados e da proteção necessários, ai sim o juiz poderá designar nova tentativa de oitiva da criança. Uma vez comparecendo ao fórum, lhe será sempre respeitado o direito de, querendo, permanecer em silêncio.

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Referências

CARVALHO, S. C. L. A impossibilidade da condução coercitiva de criança e adolescente, vítima ou testemunha de violência, no Processo Penal brasileiro. Revista do CNMP, n. 9, 2021, p. 291-320. Disponível aqui.

DIAS, F. V.; MORAIS, D. F. A revitimização na condução coercitiva de crianças e adolescentes em casos de crimes sexuais na jurisprudência brasileira. Revista da AGU, v. 23, n. 1, p. 95-120. Disponível aqui.

HARTUNG, P. A. D. Levando os Direitos das Crianças a Sério. Revista dos Tribunais: 2022.

LANSDOWN, G. Article 12: The Right to Be Heard. Monitoring State Compliance with the UN Convention on the Rights of the Child. Springer: 2021. Disponível aqui.

LUNDY, L. ‘Voice’ is not enough. British educational research journal, v. 33, n. 6, p. 927‑942. Disponível aqui.

Autores

  • é juiz de Direito da Comarca de São Bernardo do Campo (SP). Presidente do Foeji (Fórum Estadual das Juízas e dos Juízes da Infância e Juventude) de SP. Juiz integrante do Foninj (Fórum Nacional da Infância e da Juventude). Doutorando em Direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem) e graduado em Direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás), tendo realizado Programa de Intercâmbio Acadêmico Internacional (com bolsa) na Universidade de Coimbra, Portugal. É Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera — Uniderp e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. Juiz colaborador da EPM (Escola Paulista da Magistratura). Membro do Fonajup (Fórum Nacional da Justiça Protetiva) e do IBDCRIA (Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente).

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