PAD e dissolução de comissão processante: debate necessário
6 de julho de 2025, 8h00
Imagine a seguinte situação prática hipotética: um determinado processo administrativo disciplinar (PAD), aberto em desfavor de um servidor público mediante portaria inaugural, prolonga-se no tempo por mais de um ano, sem qualquer evolução significativa, nem sequer o início dos atos de instrução processual. Considere que, apesar de toda essa morosidade injustificada, a comissão simplesmente comparece aos autos pedindo sua dissolução, sob a justificativa de dificuldades na intimação das testemunhas e/ou informantes, somadas a alegações genéricas de foro íntimo por parte de seus membros.

À luz do princípio da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII, CF) — cujo corolário prático, no âmbito disciplinar, impõe a conclusão do PAD em prazo médio de 90 dias (30 + 30 nos estatutos que admitem apenas uma prorrogação, ou 30 + 60 nas hipóteses sessentidiais) — e do princípio pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), a situação prática narrada acima lança dilemas que ainda carecem de solução doutrinária consistente.
O PAD é o instrumento por meio do qual a Administração Pública apura a responsabilidade funcional de seus servidores. Regulamentado por diversos estatutos funcionais, é caracterizado por formalidades mínimas e por um conjunto de garantias constitucionais que asseguram ao acusado, entre outras, a ampla defesa, o contraditório e a duração razoável do processo. Embora esses princípios sejam reiteradamente reconhecidos pela jurisprudência, situações-limite continuam a desafiar a doutrina, como ocorre nas situações em que a comissão processante, após meses ou até anos de inércia, solicita sua própria dissolução por motivos de foro íntimo, sem que tenha sido realizada qualquer instrução ou diligência processual.
A questão, que ainda carece de enfrentamento sistemático pela doutrina administrativista, é complexa e se desdobra em múltiplas indagações jurídicas relevantes: é lícito que uma comissão designada para conduzir um PAD simplesmente decline da função? Quais os efeitos jurídicos da chamada autodissolução da comissão? Há reflexos sobre a portaria inaugural? Retoma-se a contagem do prazo prescricional da infração funcional? Estaria o servidor sujeito a um tempo indefinido de espera pela recomposição da comissão, mesmo sem ter dado causa à dissolução? O que dizer da eventual quebra do juízo natural, caso a instrução já tenha sido iniciada?
É necessário partir da natureza jurídica da comissão processante. Trata-se de órgão temporário, constituído por delegação da autoridade instauradora, cuja finalidade é apurar os fatos e recomendar a aplicação ou não de sanção. Os membros da comissão exercem função pública vinculada, com poderes-deveres que não são passíveis de renúncia discricionária. Ainda que possam alegar impedimentos ou suspeições devidamente motivadas, a simples manifestação de vontade por “foro íntimo” não é suficiente, por si só, para justificar a dissolução da comissão. Tal conduta, se acolhida pela autoridade competente sem fundamentação adequada, compromete a legalidade do processo e pode caracterizar desvio de finalidade ou abuso de poder.
Quanto aos efeitos jurídicos da autodissolução, há que se considerar a função da portaria inaugural. Esta é o ato administrativo que formaliza a instauração do PAD, designando seus membros e marcando o termo inicial para a contagem do prazo de conclusão do processo. Ocorre que, se a comissão designada jamais iniciou a instrução e, após largo período de inércia, é formalmente extinta, a portaria inaugural é esvaziada em sua eficácia prática. Tal não significa que seja automaticamente revogada, mas que sua finalidade é frustrada, o que pode, sim, ensejar a retomada da contagem do prazo prescricional.
O artigo 142, § 3º, da Lei 8.112/1990 estabelece que a instauração do PAD interrompe a prescrição. Mas, se esse processo não se desenvolve por culpa exclusiva da Administração, e se, por período indefinido, — à vista da dissolução da comissão — nenhum novo ato processual é praticado, há uma situação de anormalidade que exige correção: não há base legal para “suspensão” ou “paralisação” de um PAD nessa hipótese, e a inatividade estatal deve ser compreendida como renúncia tácita ao poder disciplinar.
Jurisprudência
A jurisprudência administrativa e judicial tem invocado o pas de nullité sans grief para afirmar que a mera extrapolação do prazo legal não gera nulidade sem prova de prejuízo. Entretanto, no cenário em que a comissão não apenas é morosa, mas abandona o encargo processual, o prejuízo é presumido: o servidor é privado do seu direito fundamental à duração razoável do processo, alijado do juízo natural e exposto a um procedimento indefinidamente inacabado.
Se a instrução já tiver sido iniciada, a dissolução arbitrária da comissão agrava a situação. A substituição de membros no curso da instrução compromete a continuidade e a coerência das diligências, configurando violação ao juízo natural administrativo, entendido como a garantia de que um mesmo colegiado conduza a apuração com imparcialidade e continuidade lógica.
Diante disso, é urgente pensarmos em balizas jurídico-normativas: (a) a autodissolução da comissão é juridicamente anômala e somente pode ser admitida em situações excepcionais, devidamente motivadas; (b) a ausência de nova constituição de comissão em prazo razoável (pensa-se em 30 dias, no máxi) deve ensejar a extinção do PAD, sobretudo se houver retomada da contagem prescricional; (c) o prejuízo ao servidor deve ser considerado presumido; (d) os ex-membros da comissão devem responder administrativamente pela omissão injustificada no desempenho de função pública.
A dissolução espontânea de comissões processantes em PAD, após prolongada inércia e sem qualquer ato instrutório, revela um estado de exceção disciplinar. Nestas hipóteses, a violação do direito fundamental à razoável duração do processo, atribuível exclusivamente à Administração, extingue o direito de punir do Estado: a pretensão punitiva perde sua legitimidade e eficácia, pois não é dado ao Estado se beneficiar de sua própria inércia. A razoável duração do processo deve ter a sua eficácia reconhecida para impor o arquivamento definitivo do feito, assegurando ao servidor a presunção de inocência e o direito a um devido processo legal justo, adequado e eficiente.
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