O processo fora do romance: a luta pelo espólio de Franz Kafka
6 de julho de 2025, 8h00
Poucas vezes a realidade foi tão precisa para comprovar uma ironia literária. Exemplifico com o litígio que envolveu os manuscritos de Franz Kafka (1883-1924). O escritor, a quem devemos o adjetivo “kafkiano”, sinônimo de absurdos burocráticos e de processos insondáveis, protagonizou indiretamente um processo real, difícil, marcado por contradições, que são muito simbólicas.
A disputa, iniciada em Israel, opôs o governo israelense às herdeiras de Max Brod (1884-1968), amigo e editor de Kafka. Brod preservou a obra e documentos de Kafka contra a vontade expressa do autor. A par da salvação do legado de Kafka o esforço de Brod culminou, anos depois, com o encaminhamento do espólio na Biblioteca Nacional de Israel.
A história remonta a 1924, ano da morte de Kafka. Kafka queria que todos os seus escritos fossem destruídos. Max Brod, seu amigo, íntimo confidente e mais tarde também biógrafo, desobedeceu à ordem. Sorte nossa.
Em 1939, com a invasão nazista na então Tchecoslováquia (onde ficava Praga), Brod fugiu levando os manuscritos do amigo. Teria ido para a Palestina, onde continuou um esforço de publicação da obra que consagraria Kafka como um dos mais influentes autores do século 20. Ao morrer, em 1968, Brod deixou um acervo de mais de 20 mil páginas com sua secretária e companheira, Esther Hoffe, a quem incumbiu de transferi-lo para uma instituição pública, ao que consta preferencialmente a Biblioteca Nacional de Israel.
Entretanto, durante décadas, Esther tratou o espólio como propriedade privada. Leiloou partes dele — entre elas, o manuscrito de O Processo, vendido em 1988 por US$ 2 milhões ao Arquivo de Literatura Alemã de Marbach. Manteve o restante em casa, uma parte ficou trancada em cofres bancários em Tel Aviv e em Zurique. Após sua morte, em 2007, suas filhas, Eva e Rute, herdaram o material e tentaram vendê-lo a uma instituição alemã, desencadeando uma disputa judicial com o Estado de Israel.
A ação judicial iniciada em 2008 teve por objeto a posse de um conjunto de documentos, que dependia da fiel interpretação da vontade de Max Brod. Em jogo, o destino de um patrimônio cultural de valor incalculável. Israel alegou que havia um testamento — e possivelmente um segundo testamento — em que Brod determinava expressamente que os papéis fossem doados à Biblioteca Nacional. As herdeiras, por sua vez, sustentavam que Brod os teria dado a Esther, legitimando, assim, a posse e o consequente direito de alienação.
A decisão de primeira instância, proferida em 2012, acolheu os argumentos do Estado de Israel. Entendeu-se que os manuscritos não poderiam ser considerados herança privada. Tratava-se de um legado cultural que deveria ser entregue à instituição pública prevista por Brod. O legatário não pretendia que a herdeira alienasse o material pelo melhor preço. Almejava a conservação dos papeis, o que ocorreria de forma definitiva com o encaminhamento a uma entidade pública respeitável.
A Suprema Corte israelense confirmou esse entendimento, em 2016, pondo fim ao impasse. A Corte reforçou a ideia de que a função pública e cultural do acervo se sobrepunha ao interesse patrimonial da família. Em decisão marcada por muitos simbolismos, o tribunal restituiu à esfera pública a herança literária de Kafka, que, ironicamente, em vida temia a posteridade.

Com o trânsito em julgado, iniciou-se o processo de resgate do acervo. Após a morte de Eva, em 2018, autoridades israelenses, com colaboração de instituições internacionais, localizaram os documentos espalhados por diversos lugares. Parte deles estava guardada em cofres de bancos suíços (UBS), outra parte em Tel Aviv, inclusive em condições precárias. Um lote foi encontrado em posse de vendedores do mercado informal que tentavam negociar os papéis com o Arquivo de Marbach.
Por decisão judicial proferida na Suíça, outros papéis foram repatriados. Em 2019 a Biblioteca Nacional de Israel concluiu a coleta do espólio, que incluía manuscritos, cartas, desenhos, cadernos e esboços inéditos, a exemplo de um romance inacabado. O diretor da Biblioteca anunciou que o acervo seria digitalizado e disponibilizado ao público, cumprindo a vontade de Brod e o desejo dos leitores de Kafka em todo o mundo.
Valor da cultura
O material ganhou notoriedade e passou a ser exposto, inclusive em mostras comemorativas que ocorreram no centenário da morte de Kafka, em 2024. Parte da obra do autor permanece, ainda assim, sob a guarda do próprio Arquivo de Marbach, que mantém o manuscrito original de O Processo, legalmente adquirido. Há ainda muita coisa espalhada. Em 2003 um antiquário de Viena pôs à venda o espólio de um médico húngaro (Robert Klopstock), que continha 38 cartas atribuídas a Franz Kafka.
Há algo de profundamente literário — ou trágico — em vermos Kafka, judeu de Praga, que escrevia em alemão, e que morreu aos 40 anos, e que determinou que se queimasse sua obra, tornar-se pivô de um embate entre Alemanha e Israel, com pitadas de nacionalismo, direito sucessório e patrimônio imaterial.
Mais do que um litígio por direitos autorais, o “processo verdadeiro de Kafka”, que é um “processo fora do romance”, de algum modo configura-se como um julgamento moral sobre o valor da cultura. Esse fascinante tema foi explorado e aprofundado pro Benjamin Balint, no livro O Último Processo de Kafka, traduzido em português por Rodrigo Breunig.
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