Opinião

Em debate no STF: digitalização e seus reflexos nos contratos de Roberto e Erasmo Carlos

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6 de julho de 2025, 9h18

O caso envolvendo os renomados cantores Roberto Carlos e Erasmo Carlos — este sucedido por seu espólio — trouxe à tona uma questão central para o direito autoral na era digital. O STF (Supremo Tribunal Federal) está para tomar uma importante decisão que envolve reinterpretar contratos antigos de direitos autorais dentro do contexto da indústria musical contemporânea.

João Miguel Jr./Divulgação TV Globo
Erasmo Roberto Carlos

Em um cenário em que o consumo cultural se digitalizou rapidamente, especialmente com a popularização do streaming, o STF enfrenta o desafio de conciliar contratos firmados em um período dominado por modelos tradicionais de difusão musical com as novas formas de exploração das obras artísticas. Os recorrentes questionam a legitimidade da exploração digital de suas músicas com base em contratos firmados entre as décadas de 1960 e 1980, que refletem uma realidade estruturalmente distinta da atual.

O debate foi levado ao Supremo [1] por meio do Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.542.420/SP, que resultou no reconhecimento da repercussão geral, configurando o Tema 1.286. O STF entendeu que a questão transcende os interesses individuais das partes e afeta todo o sistema de direitos autorais no país. Com isso, a Corte passou a analisar os limites constitucionais da cessão contratual de direitos autorais diante das transformações tecnológicas, sobretudo no que diz respeito às novas formas de exploração, no contexto do streaming.

Impacto no sistema de proteção autoral

É importante, antes de tudo, compreender por que o STF reconheceu a repercussão geral nesse tema. Apesar de originar-se de um caso específico, que envolve contratos antigos de direitos autorais, a questão impacta estruturalmente todo o sistema de proteção autoral no Brasil. O ministro relator destacou que situações semelhantes ocorrem em diversos casos, especialmente envolvendo artistas contratados antes da digitalização do mercado. Nesse cenário de transição tecnológica, o Supremo admitiu o recurso para estabelecer uma orientação vinculante sobre a aplicação desses contratos na era do streaming.

Mas o que está, de fato, em jogo? Sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, o STF discute questões fundamentais sobre o direito dos autores à remuneração justa, os limites da cessão contratual e os desafios trazidos pelas novas formas de exploração digital. Essa decisão pode redefinir as regras para a proteção da propriedade intelectual neste novo cenário. A seguir, vamos analisar os principais pontos dessa importante discussão.

Por um lado, há a editora — detentora dos direitos patrimoniais sobre obras musicais de Roberto Carlos e Erasmo Carlos —, a qual sustenta não haver repercussão geral na discussão, uma vez que ela se limita à interpretação de cláusulas contratuais específicas, sem extrapolar os interesses subjetivos das partes envolvidas. Argumenta que a controvérsia trata unicamente de fatos e da aplicação das normas contratuais vigentes, matéria já pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente à luz das Súmulas 279 e 454, que vedam a rediscussão de provas e cláusulas contratuais por meio de recurso extraordinário[2].

Defesa da editora

A editora ressaltou que os contratos valem pelo tempo previsto na lei de proteção das obras, afastando a ideia de contratos eternos, e que a cessão de direitos é como uma compra e venda, sem espaço para questionar sua natureza. Nesse sentido, também afirma que a cessão dos direitos autorais se encerra no momento em que é feita a transferência, não podendo ser desfeita depois.

Spacca

Defende, ainda, que o simples fato de o mercado ter se transformado com a digitalização e o surgimento de novas tecnologias, como o streaming, não invalida contratos firmados de forma legítima no passado. Sustentou que, no momento da contratação, a transferência definitiva dos direitos não violava — e ainda hoje não viola — o direito exclusivo dos autores de usar, publicar e reproduzir suas obras, tampouco o direito de propriedade sobre elas.

Nesse sentido, o ponto principal defendido pela editora foi que os contratos de cessão, por si só, são claros ao conceder às editoras o direito de exploração em todos os formatos existentes, sendo os formatos futuros considerados “direitos adquiridos”. Para sustentar tal entendimento, foram invocados o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição [3], e o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) [4], que asseguram a preservação do ato jurídico perfeito.

Por fim, a recorrida também mencionou a decisão do Superior Tribunal de Justiça no AREsp 325.117 [5], em que o cantor Gilberto Gil buscou a rescisão de seus contratos com base em argumentos semelhantes, mas teve seu pedido negado pela Corte. Destacou, ainda, que outras ações ajuizadas pelos recorrentes contra diferentes editoras, com idêntica pretensão, também foram julgadas improcedentes.

Roberto e Erasmo

Por outro lado, os recorrentes, herdeiros de Roberto e Erasmo, afirmam que a simples aplicação, por parte das produtoras, de contratos antigos, sem qualquer revisão, fiscalização ou adaptação ao novo contexto digital — especialmente considerando que as plataformas de streaming são atualmente o principal meio de consumo musical — ignora as profundas diferenças entre os contextos analógico e digital, implicando na violação dos direitos fundamentais dos autores.

Assim, um dos pontos de destaque apontados pelos recorrentes, foi a violação ao direito fundamental à fiscalização do aproveitamento econômico das obras, previsto no artigo 5º, inciso XXVIII, da Constituição [6]. Eles ressaltam que esse direito assegura aos autores o controle sobre a exploração de suas criações, incluindo o acesso transparente às informações necessárias para verificar se a remuneração está sendo corretamente realizada. Dessa forma, defendem que a aplicação de contratos antigos, sem revisão ou adaptação ao contexto digital, compromete essa prerrogativa constitucional, afetando a proteção da dignidade dos autores e a justa distribuição dos benefícios econômicos gerados pelas obras.

A partir dessa lógica, os recorrentes citam como exemplos dessa conduta omissiva, a ocorrência de pagamentos “irrisórios” — mencionando o valor de R$ 4.454,81 relativo a milhares de reproduções das obras musicais no trimestre de agosto, setembro e outubro de 2018 (sic) —, além da ausência de prestação de contas e da falta de acesso a demonstrações técnicas confiáveis que permitam verificar a exibição das obras musicais nas plataformas digitais. Também destacam a ausência de participação direta dos recorrentes nas negociações com essas empresas.

Ainda, também foi evidenciada a importância da aplicação do princípio da interpretação restritiva dos negócios jurídicos em matéria de direito autoral. Nesse sentido, destacam que tanto a Lei nº 5.988/73 [7] (artigo 3º) quanto a Lei nº 9.610/98 [8] (artigo 4º) preveem a interpretação restritiva dos contratos de cessão de direitos autorais, de modo a limitar a extensão do objeto cedido. Além disso, recordam que o Código Civil de 1916 [9] e a Lei nº 5.988/73 vedavam cessões genéricas e por prazo indeterminado, reforçando que as autorizações para exploração das obras devem estar claramente delimitadas quanto ao seu alcance e duração.

Ademais, reiteram a importância do direito fundamental à propriedade e ao uso exclusivo das obras por parte dos autores, nos termos do artigo 5º, incisos XXII e XXVII da Constituição. Nesse sentido, a autorização para utilização das criações artísticas deve partir exclusivamente do titular da obra, que detém direito absoluto sobre sua exploração. Assim, os contratos celebrados devem ser interpretados de forma estrita, de modo a excluir do objeto contratual a reprodução digital das obras, uma vez que não há previsão expressa de sua comercialização em plataformas de streaming.

Por fim, ressaltam que tais contratos, em sua maioria, são contratos de adesão, nos quais os autores não tiveram qualquer margem de negociação sobre as cláusulas. Esses argumentos fundamentam o entendimento de que a simples aplicação dos contratos antigos para a exploração digital das obras, como ocorre nas plataformas de streaming, não encontra respaldo legal, exigindo a revisão ou a renegociação dessas cessões para assegurar o respeito aos direitos dos autores.

Adaptação de contratos em contextos analógicos

A discussão trazida por este caso revela um tema central e atual para o direito autoral no contexto digital: a necessidade de adaptação dos contratos firmados em contextos analógicos às transformações tecnológicas que hoje dominam o mercado musical. Dessa forma, evidencia-se o confronto entre duas visões sobre os contratos.

De um lado, as editoras defendem a validade ampla desses contratos, sustentando que a exploração das obras em formatos digitais representa apenas uma extensão natural dos direitos já cedidos, assegurando previsibilidade e estabilidade jurídica. De outro, os autores e seus sucessores argumentam a necessidade de uma leitura mais restritiva, enfatizando a importância do direito à fiscalização do uso das obras, à participação nas negociações com as plataformas digitais e a preservação da segurança jurídica.

Esse debate reflete o desafio de equilibrar segurança e estabilidade jurídica, especialmente em um mercado em que o streaming já representa a maior parte do consumo musical. Para ter ideia dessa magnitude, em 2024, conforme dados  da Pro-Música Brasil divulgados pelo portal Mobile Time [10], o streaming respondeu por mais de 99% das vendas de música no Brasil, e correspondeu a cerca de 88% das receitas totais do setor fonográfico, totalizando R$ 2,08 bilhões em receitas, o que destaca a centralidade desse modelo para a indústria fonográfica.

Assim, o streaming, como principal meio de consumo de música, impõe desafios inéditos para a proteção dos direitos dos autores e para a justa remuneração pela exploração econômica de suas obras. Dessa forma, a decisão do Supremo terá impacto não apenas para as partes envolvidas, mas para todo o sistema de proteção da propriedade intelectual no país. O desafio será harmonizar o respeito aos contratos legítimos com a necessidade de assegurar aos autores a fiscalização efetiva e a justa remuneração na era digital, garantindo assim a sustentabilidade da indústria musical brasileira.

 


[1] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Repercussão geral no Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.542.420/SP. Relator: Ministro Dias Toffoli. Brasília, DF, 22 maio 2025. Disponível aqui.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 279: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. Súmula 454: “Simples interpretação de cláusula contratual não dá lugar a recurso extraordinário”. Disponível aqui.

[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, XXXVI. Disponível aqui.

[4] BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LINDB. Art. 6º. Disponível aqui.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n. 1.301.017 / SP, Relator: Ministro [inserir nome do relator]. Brasília, DF, julgado em 6 nov. 2017. Disponível aqui.

[6] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, XXVIII. Disponível aqui.

[7] BRASIL. Lei nº 5.988, de 14 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o regime jurídico do direito autoral. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 14 dez. 1973. Disponível aqui.

[8] BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Lei de Direitos Autorais. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 20 fev. 1998. Disponível aqui.

[9] BRASIL. Código Civil, Decreto nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Regulamenta o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 1 jan. 1916. Disponível aqui.

[10] SYMPHONIC BRASIL. Streaming impulsiona recorde da música no Brasil. Symphonic Brasil, 15 abr. 2025. Disponível aqui.

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