IOF e Constituição: controle político-jurídico ou intervenção indevida do Congresso?
6 de julho de 2025, 11h26
A teoria dos regulamentos é uma das teorias mais intrigantes do direito administrativo. Perdura por várias décadas, mas exige que seja constantemente revisitada diante de sua fácil adaptabilidade ao contexto normativo de um país. Não possui ramo estanque, ensejando interdependência entre núcleos consagrados, como do direito constitucional.

A sua adaptabilidade acompanha justamente esses núcleos estruturantes de determinado sistema jurídico. Junto a esse movimento, surge a necessidade de se realizar o contraponto, através do controle político-jurídico, da capacidade normativa regulamentar, cada vez mais autônoma e expansionista.
Este artigo, valendo-se dos métodos interpretativo-indutivo, terá como objeto de exposição a edição dos decretos presidenciais sobre a regulamentação do Imposto sobre Operação Financeira (IOF), Decretos nº 12.466, nº 12.467 e nº 12.499, de 2025, e o controle realizado pelo Congresso, com a sustação do ato regulamentar do governo, por meio do Decreto Legislativo nº 176/2025.
Atividade normativa do Estado: velha (e deficiente) subdivisão
No entender de Bruce Ackerman, o “status canônico” das ideias de Montesquieu já está ultrapassado, ante a novas formas atuais que não perpassam pela ideia de legislativo, judiciário e executivo. A mudança é representada por novas rupturas, entre as quais a autonomia dos Bancos Centrais, processo eleitoral independente e expansão da atividade normativa secundária independente dos governos e de entidades públicas, em crescente processo de delegação legislativa. [1]
Do salto qualitativo em termos de acomodação da divisão funcional dos poderes, defende-se atualmente que o executivo e entidade públicas com relativa autonomia podem muito mais do que está escrito no Texto constitucional de 1988. Os enquadramentos previamente realizados ou os institutos desenvolvidos são construídos sob a premissa de determinado ponto histórico, sendo revisionados a partir do momento que esses fatos sofrem vulnerabilidade, externando a necessidade de mudança. [2]
Em momento posterior, sobretudo com o choque promovido pelo governo Collor, uma nova fase foi inaugurada, “testando” a obra recém promulgada pela constituinte no final dos anos 1980. Tal período coincide com uma fase de profunda transformação pelo qual estava passado o Estado brasileiro, com a redemocratização e abertura da economia. Uma nova conjuntura política estava se formando, com o abandono do Estado centralizador para o Estado gerenciador e fiscalizador, estimulando a concessão de serviços públicos e a formação de parcerias público-privadas. [3]

Tais mudanças também repercutiram no olhar sobre a divisão clássica dos poderes e das funcionalidades desempenhadas pelos poderes constituídos, sobretudo no papel do Poder Judiciário. A este, a título de exemplo, além do papel reservado de guarda da Constituição, novas competências foram chamadas para si, como o papel político no jogo democrático, análise meritória de políticas públicas, bem como o controle sobre o setor de regulação. [4]
Como ponto comum, observa-se a dinamicidade política hoje desenvolvida, como forma de possibilitar a governabilidade e respostas rápidas e técnicas. [5] Nesse diapasão, assiste-se o legislativo concedendo espaço legiferante, tanto na capacidade material (competências) como na capacidade formal (formas), não só ao governo, mas também a outras instituições organizadas nesse cenário de pós-positivismo. [6]
Desenvolvimento da atividade regulamentar atualmente: nova realidade
A ideia em que se construiu a primazia da lei remonta à Revolução de 1789, segundo a qual, consubstanciada na Declaração dos Direitos do Homem, alçava a vontade popular como vontade última a ser perseguida. Ao antigo monarca caberia servir de ponte do parlamento. [7]
A percepção de transformação ocorre quando o Ètat-gendarme [8] transmudou para o Welfare State, onde a incapacidade parlamentar passou a ter evidência por não acompanhar as rápidas mudanças exigidas. O volume da legislação aumentou “avassaladoramente”, em virtude do fato de que o estado agora não garante apenas o pão, mas sim o ensino e até o circo. Fixa salários e imiscui-se na esfera privada; em síntese, cria diversas bases para que a economia possua mecanismo de crescimento. [9]
André Rodrigues Cyrino, a seu turno, aponta que a teoria da delegação legislativa é bem conhecida, seja em regimes autoritários seja em regimes democráticos. Nas últimas décadas, o fortalecimento da ideia da expansão dos poderes normativos por parte dos agentes institucionais sustenta-se na ideia de que o estado social, demandante de novas ações por parte da administração, precisa de respostas rápidas e específica. [10]
No ordenamento brasileiro, com a promulgação da atual Carta de 1988, o processo vem se intensificando, sempre se olhando a forte descentralização administrativa espalhada para diversos órgãos e entidades públicas. Essa estruturação pode ser observa com a edição na Nova Lei Geral de Licitações e Contratos, Lei nº 14.133/21, com forte delegação em diversos pontos da lei.
Os recentes decretos do IOF, editado pelo presidente da República, está inserido nessa sistemática, funciona como medida para atender determinada programação pública-financeira do governo federal.
Controle político-jurídico ou intervenção indevida do Congresso sobre o decreto presidencial do IOF
Certamente, o Legislativo ainda preservará a sua atividade típica de produção legislativa. No entanto, para além dessa atividade, o Congresso assiste e assistirá cada vez mais o processo de delegação e atuação firma e expansiva dos atuais e novos atores na produção normativa.
Nesse sentido, fidedigno ao compromisso de servir como um texto mutável, com capacidade de se adequar as transformações ensejadas pelo tempo, a Constituição oferta normas que atualmente proporcionam o controle político-jurídico sem a necessária modificação formal. Estamos a falar, além do inciso V, do artigo 49, das disposições do artigo 2º, incisos X e XI, do artigo 49 e § 4º, do artigo 60.
Para este artigo, centra-se em discutir apenas a questão da (im)possibilidade da realização do controle político realizado recentemente sobre os Decretos do IOF, nº 12.466, nº 12.467 e nº 12.499, de 2025. A supervisão enquadra-se como típico controle político, contemplado nas disposições constitucionais referenciadas acima, ou trata-se de intervenção indevida de um poder sobre o outro, em violação da separação dos poderes?
O ponto central é que os incisos V e X, do artigo 49, não delimitam o alcance do controle, especificando até onde o controle pode ser exercido, em que medida e extensão. O regulamento quando editado preenche espaço significativo do plexo jurídico.
Se a norma vaticina que o controle será exercido quando o regulamento exorbitar o seu poder regulamentar, à primeira vista parece existir uma linha clara. Porém, em termos práticos, não existe, sobretudo quando se está diante de controle significativamente político, no qual o critério preponderante é a correlação de forças e a base de apoio do governo.
Poder-se-ia argumentar que, uma vez a lei fixando os pontos que podem ser regulamentados, a norma infralegal do governo não poderia ser fustigada, sob pena de intervenção indevida do legislativo sobre o executivo.
Controle político para reforçar interdependência dos poderes políticos
A questão exige pensamento diferente. O controle político serve para reforçar interdependência dos poderes políticos. Se o executivo tivesse a garantia de que não seria supervisionado, decerto usaria essa prerrogativa para extrapolar as suas competências. Quanto ao Congresso, restaria de mãos atadas, socorrendo-se apenas do Supremo Tribunal Federal para fazer presente a legitimidade democrática dos votos recebidos nas urnas.
A Constituição não é texto rígido e imutável. Precisa de abertura suficiente para se adaptar as transformações do tempo. Há momento de maior expansão e outros de maior contenção. Em situação como essas, caberá aos atores, supervisor e/ou supervisionado, provocarem o Supremo Tribunal Federal para estabelecer as diretrizes que se fizerem necessárias.
Na situação posta, a lei confere liberdade para que o governo estabeleça as alíquotas sobre o IOF. Como o IOF é um imposto com caráter de extrafiscalidade, manuseado dentro de determinada conveniência governamental sobre política fiscal, possui exceções as regras tributárias. A supervisão sobre a política fiscal do IOF pode sofrer o controle de duas formas: com edição de nova lei, mudando a sistemática estabelecida, como também pelo controle político.
Na doutrina, José Carlos Francisco, na linha da amplitude do controle, afirma que a supervisão do Congresso alcança vícios materiais e formais, sem destrinchar os limites desses vícios. Na mesma toada, o autor defende o controle político sobre os regulamentos autônomos ou independentes.[11]
Na verdade, a norma regulamentar, quando da sua edição, possui a seguinte fórmula: a norma produzida é o somatório da espécie utilizada, ou seja, o ato, mais o componente material que preenche este ato. O componente, por sua vez, agrega dois tipos de ordens: uma de natureza técnica-administrativa-organizacional; e outro de natureza política, utilizado a depender da matéria e da conveniência regulamentar.
O controle político-jurídico, por sua vez, segue formulação semelhante, sendo o controle político formado pela sua composição formal, ou seja, o ato escolhido, podendo ser um decreto propriamente ou lei em sentido amplo, mais o conteúdo material a ser controlado. Há outras questões mais profundas, quando o controle segue a via de lei posterior. Contudo, em razão do espaço do texto, impende se ater ao controle realizado pela via do decreto legislativo.
Quando o Legislativo se vale do controle político pela via do decreto, o conteúdo material não possui quadro normativo fechado. A matéria que está sendo regulamentada possui peso significativo, já que pode estar tratando de questões envolvendo direitos humanos, pacto federativo e/ou princípios sensíveis (artigos 1º ao 5º, da Constituição).
Haverá, portanto, ponderação de valores, como autonomia de determinado poder versus direito fundamental de determinando grupo. Neste quesito, o conteúdo material do regulamento carrega carga valorativa significativa, não possuindo contornos claros. O componente político também não ficará de fora, já que provavelmente será neste tipo de pauta que despertará a atenção do Congresso.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a Corte brasileira já teve a oportunidade de se manifestar em situações análogas à Ação Direta de Inconstitucionalidade do IOF. Embora o regulamento a sofrer controle político tenha sido do Distrito Federal, por parte da Câmara Legislativa, o Supremo, na ADI nº 5.740, aceitou da ação direta de inconstitucionalidade e, no mérito, julgou inconstitucional o decreto legislativo.
Na ocasião, o Supremo entendeu que o Legislativo do DF atuou indevidamente, ao limitar a regulamentação, por parte do governador, de matéria que está dentro da sua esfera de competência, além de criar óbice à proteção contra condutas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas.
Na ADI nº 5.740, além da capacidade regulamentar do governador, estava em análise também a proteção de grupos de vulneráveis, pedra de toque da dignidade da pessoa humana. No caso dos Decretos do IOF, para além da questão do controle político, outras questões serão levadas em consideração na ação direta de inconstitucionalidade proposta, como a natureza do tributo, a finalidade e o próprio componente político.
A bem da verdade, a situação deixa transparecer que o controle político sobre o regulamento, não é só possível, como deve ser defendido. O processo democrático é fortalecido, sabendo os seus atores quais caminhos percorrer, além de, valendo-se do texto, constitucional, qual equilíbrio construir para a manutenção da interdependência dos poderes políticos.
[1] ACKERMAN, Bruce. Adeus, Montesquieu. RDA: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, RJ, v. 265 jan. – abri. 2014, p. 13-23.
[2] FILHO, Manuel Gonçalves Ferreira. A autonomia do poder regulamentar na constituição francesa de 1958. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, RJ, nº 84, 1966. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/28193. p. 25. Acesso em 18 abr. 2025.
[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2002. p. 16.
[4] JÚNIOR, Edilson Pereira Nobre. O Controle Jurisdicional da Função Normativa das Agências Reguladoras. São Paulo: Contracorrente, 2021. p. 19-36.
[5] CYRINO, André; NUNES, Daniel Capecchi. A Constituição, as instituições e as delegações legislativas: um caso de mutação. Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Curitiba-PR, v. 17 n. 70, out. – dez. 2017, p. 175-198. Disponível aqui.
[6] CYRINO, André; NUNES, Daniel Capecchi. A Constituição, as instituições e as delegações legislativas: um caso de mutação. Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Curitiba-PR, v. 17 n. 70, out. – dez. 2017, p. 175-198. Disponível aqui.
[7] FILHO, Manuel Gonçalves Ferreira. A autonomia do poder regulamentar na constituição francesa de 1958. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: RJ, nº 84, jul. 1966, p. 24–39. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2025. p. 25-26.
[8] Manuel Gonçalves Ferreira Filho utiliza a expressão Ètat-gendarme para apontar uma missão restritiva da atuação do Estado. FILHO, Manuel Gonçalves Ferreira. A autonomia do poder regulamentar na constituição francesa de 1958. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: RJ, nº 84, jul. 1966, p. 24–39. Disponível aqui.
[9] FILHO, Manuel Gonçalves Ferreira. A autonomia do poder regulamentar na constituição francesa de 1958. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: RJ, nº 84, jul. 1966, p. 24–39. Disponível aqui.
[10] CYRINO, André Rodrigues. Delegações Legislativas, Regulamentos e Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 23.
[11] FRANCISCO, José Carlos. Função Regulamentar e Regulamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 429-430.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!