Opinião

Decisão, caos e reconstrução: universo Marvel e colapso da coisa julgada na nova reconfiguração do STF

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  • é doutora em Direito Processual Civil pela PUC-SP mestre em Direito Agrário pela UFPA coordenadora do Norte da Abep associada do IBDP e da Annep líder do Grupo de Pesquisa "Inovações no Processo Civil" — UFPA/CNPQ e professora titular da UFPA.

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6 de julho de 2025, 7h03

O universo cinematográfico da Marvel estrutura suas narrativas a partir de um ciclo recorrente de decisão, caos e reconstrução. Essa dinâmica, intensificada nas fases que tratam de multiverso, viagens no tempo e reestruturação da realidade, inicia-se com uma decisão de grande impacto, que rompe o equilíbrio de um sistema complexo e gera efeitos colaterais incontroláveis.

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A decisão inicial, marco da ruptura, surge em momentos emblemáticos da franquia. Em Vingadores: Guerra Infinita (2018), Thanos elimina metade do universo, instaurando uma desordem cósmica. Em Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (2021), Peter Parker rompe as barreiras entre realidades ao tentar apagar sua identidade. Já em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022), a busca de Wanda por seus filhos em outros universos intensifica o caos multiversal.

De forma análoga às rupturas estruturais observadas em narrativas de desordem sistêmica, os Temas 881 e 885, julgados pelo STF em fevereiro de 2023, configuram um verdadeiro ponto de inflexão no ordenamento jurídico brasileiro, ao romperem com a concepção tradicional da coisa julgada. Até então, a coisa julgada, oriunda de decisão transitada em julgado, era concebida como um pilar de segurança jurídica e de estabilidade nas relações entre o Fisco e o contribuinte.

Em um paralelo com o Universo Marvel, a tese do STF cai como uma bomba no sistema jurídico, tal qual o estalo de Thanos, desfazendo o que parecia imutável. Com esses julgados, o STF inaugura uma nova fase interpretativa, ao admitir a relativização da coisa julgada em matéria tributária, especificamente nos casos em que decisões posteriores da Corte Suprema comprometem a validade de pronunciamentos judiciais definitivos.

O Tema 881 refere-se às hipóteses em que o STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, declara a inconstitucionalidade de uma lei. Já o Tema 885 trata das decisões proferidas em controle difuso, quando o STF decide sobre a constitucionalidade de uma lei em um caso concreto, aplicando a sistemática da repercussão geral.

Novos rumos da coisa julgada

No Universo Marvel, após o caos instaurado, há sempre um movimento de reconstrução: os heróis se reúnem, buscam soluções criativas e reconstroem a ordem – ainda que sob novas bases. Esse processo exige a reinvenção das próprias regras.

No Direito, o STF também tenta reequilibrar o instituto da coisa julgada à luz de novos paradigmas. A primeira tentativa de reconstrução ocorreu no julgamento do Tema 100 da Repercussão Geral. Esse precedente paradigmático marca uma reconstrução sistêmica da coisa julgada no direito brasileiro.

Na tese fixada no RE 586.068/PR, o STF definiu que decisões transitadas em julgado nos juizados especiais podem ser revistas caso a norma em que se fundamentaram tenha sido declarada inconstitucional pelo próprio Tribunal, seja em controle concentrado ou difuso, independentemente de a declaração de inconstitucionalidade ter ocorrido antes ou depois do trânsito em julgado.

A AR 2876/PR representa mais um capítulo no processo de reconstrução da coisa julgada. Em abril de 2025, o Plenário do STF avançou na consolidação de um novo modelo de controle de constitucionalidade, ampliando o alcance de sua autoridade interpretativa com fundamento na supremacia da Constituição. Com isso, reforçou-se a tendência de relativização da coisa julgada, sinalizando uma inflexão paradigmática na forma como se concebe a estabilidade e a definitividade das decisões judiciais transitadas em julgado.

Tal como nas narrativas do universo cinematográfico da Marvel, em que o colapso das estruturas leva a uma reconstrução complexa, o Direito brasileiro passa por um processo de reconfiguração institucional da coisa julgada, em busca de um novo ponto de estabilidade.

Spacca

No universo Marvel, o pós-caos exige reinvenção. Do mesmo modo, no plano jurídico, a reconstrução promovida pelo STF não resgata plenamente a segurança jurídica outrora conferida pela coisa julgada, mas propõe um novo paradigma normativo, no qual a estabilidade das decisões transitadas em julgado torna-se condicional à conformidade com a jurisprudência constitucional posterior. A corte busca restabelecer o equilíbrio entre a supremacia da Constituição e a preservação da autoridade das decisões judiciais, embora esse equilíbrio se mostre frágil, contingente e sujeito a revisões constantes.

Trata-se, portanto, da busca de um novo regime de coisa julgada, cuja validade está submetida ao crivo permanente da interpretação constitucional.

O caput da tese fixada pelo STF na AR 2.876/PR dispõe que:

“O § 15 do art. 525 e o § 8º do art. 535 do Código de Processo Civil devem ser interpretados conforme a Constituição, com efeitos ex nunc, no seguinte sentido, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do § 14 do art. 525 e do § 7º do art. 535:”

O STF conferiu interpretação conforme à Constituição, com efeitos ex nunc, ao § 15 do artigo 525 e ao § 8º do artigo 535 do Código de Processo Civil, ao mesmo tempo em que declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do § 14 do artigo 525 e do § 7º do artigo 535. Com isso, estabeleceu que a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial pode ser feita independentemente de o trânsito em julgado da decisão exequenda ter ocorrido antes ou depois da decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade da norma aplicada.

A AR procura reconstruir o sistema a partir de uma nova interpretação do STF, o que exige uma releitura — ou até mesmo uma ressignificação — das teses anteriormente consolidadas pela própria corte. Resta, então, vasculhar entre os escombros da coisa julgada para identificar o que foi desintegrado e o que ainda permanece de pé.

Nesse contexto, a AR 2.876 superou, ainda que parcialmente, o entendimento firmado na ADI 2.418/DF, que condicionava a eficácia rescisória à existência de decisão do STF anterior ao trânsito em julgado da sentença. Naquela ocasião, o STF havia reconhecido a constitucionalidade dos artigos 525, § 1º, III, §§ 12 e 14, e 535, § 5º do CPC, admitindo a desconstituição de sentenças com vício de inconstitucionalidade qualificado, desde que a inconstitucionalidade ou constitucionalidade tivesse sido reconhecida pelo STF antes do trânsito em julgado da decisão exequenda.

Além disso, a AR 2.876 também superou, em parte, a tese fixada no Tema 733 do STF, que reconheceu a constitucionalidade do artigo 525, § 14, do CPC/2015, ao afirmar que a decisão de (in)constitucionalidade do STF não acarreta, por si só, a automática reforma ou rescisão de decisões anteriores em sentido contrário, exigindo, para tanto, a propositura de ação rescisória própria.

Igualmente, a AR 2.876 afastou a orientação firmada no Tema 360 da Repercussão Geral, que compatibilizava a coisa julgada com a supremacia da Constituição ao considerar inexequível a decisão judicial fundada em norma posteriormente declarada inconstitucional, desde que a decisão do STF fosse anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda.

Discricionariedade ampla

O STF, ao longo do tempo, buscou compatibilizar a coisa julgada com a supremacia da Constituição, consolidando um mecanismo de eficácia rescisória para sentenças com vício de inconstitucionalidade, desde que a decisão do STF fosse anterior ao trânsito em julgado. Com a AR 2876, entretanto, inaugura-se uma reconfiguração do entendimento anterior: admite-se a arguição de inexigibilidade mesmo quando a declaração de inconstitucionalidade ocorrer após o trânsito em julgado da decisão exequenda.

No primeiro item da tese fixada na AR 2876/PR, o STF trata da eficácia temporal de suas decisões de inconstitucionalidade:

1) Em cada caso, o STF poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo inclusive a extensão da retroação para fins da ação rescisória ou mesmo o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social.

No primeiro item da tese da AR 2.876/PR, o STF definiu que cabe à própria corte, em cada caso, estabelecer os efeitos temporais de suas decisões de inconstitucionalidade sobre a coisa julgada. Poderá autorizar a retroatividade para fins de ação rescisória ou afastá-la, quando houver risco à segurança jurídica ou ao interesse social.

Isso significa que o STF pode modular os efeitos de suas decisões de inconstitucionalidade com ampla margem de discricionariedade no que diz respeito à coisa julgada. Em outras palavras, o Supremo não está vinculado a um critério fixo de retroatividade ou de irretroatividade. Em cada caso concreto, o Tribunal poderá: a) permitir a retroatividade da decisão de inconstitucionalidade, viabilizando a propositura de ação rescisória para desconstituir decisões já transitadas em julgado, quando considerar que isso não afronta a segurança jurídica ou o interesse social; b) restringir os efeitos retroativos, estabelecendo marcos temporais (ex.: efeitos apenas “ex nunc” ou a partir de determinada data futura); c) afastar completamente a possibilidade de ação rescisória, caso entenda que a revisão da coisa julgada implicaria grave violação à segurança jurídica ou a relevantes interesses sociais.

Em síntese: o STF assume a competência para decidir, caso a caso, se, quando e em que medida a declaração de inconstitucionalidade afetará a coisa julgada, com base em juízos de conveniência, segurança jurídica e proteção de interesses públicos relevantes.

No item segundo, o STF acrescentou que:

2) Na ausência de manifestação expressa, os efeitos retroativos de eventual rescisão não excederão cinco anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF.

No segundo item, o STF estabeleceu que, na ausência de modulação, a ação rescisória poderá ser proposta no prazo de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão declaratória de inconstitucionalidade, restringindo-se os efeitos da rescisória aos cinco anos anteriores à data do seu ajuizamento. Trata-se de um limite temporal subsidiário, que será aplicado quando o STF não se manifestar expressamente sobre a modulação dos efeitos da ação declaratória de inconstitucionalidade.

Nesse caso, se o STF não se manifesta sobre os efeitos retroativos, a ação rescisória poderá ser proposta no prazo de até dois anos do trânsito em julgado da decisão do STF, mas os efeitos retroativos decorrentes dessa ação rescisória proposta não vão poder exceder cinco anos da data do seu ajuizamento. O STF manteve o prazo decadencial da rescisória, mas com uma contagem especial (não unanime). Ex: União entrou com a ação rescisória em 2021, só pode pedir cobrar retroativamente até 2016.

Observa-se que a AR 2.876 também alterou a tese fixada no tema 100 da repercussão geral. No julgamento do Tema 100 da repercussão geral, o STF definiu que decisões transitadas em julgado em juizados especiais podem ser revistas caso a lei em que se basearam tenha sido declarada inconstitucional pelo próprio STF, seja em controle concentrado ou difuso, e tanto antes quanto depois do trânsito em julgado, admitindo-se, respectivamente, o manejo (1) de impugnação ao cumprimento de sentença ou (2) de simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória” (RE 586.068)

Com a AR 2.876, o STF dá novo salto: quando houver pronunciamento jurisdicional, contrário ao decidido pelo Plenário do STF, seja no controle difuso, seja no controle concentrado de constitucionalidade, o STF poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo inclusive a extensão da retroação para o manejo de simples petição para sua desconstituição ou o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social.  Na ausência de manifestação expressa do STF, os efeitos retroativos de eventual desconstituição da coisa julgada não excederão cinco anos da apresentação da petição, a qual deverá ser proposta no prazo de dois anos contados do trânsito em julgado de decisão do STF.

No item terceiro, o STF reconhece que:

3) O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, seja a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (Código de Processo Civil, arts. 525, caput, e 535, caput).” (tese 23 de abril de 2025)

No item três da AR 2.876/PR, o STF afirma que, se a decisão transitada em julgado se baseia em norma posteriormente declarada inconstitucional, o título executivo é inexigível desde logo, sem necessidade de ação rescisória. Basta arguir a inexigibilidade, demonstrando que o fundamento da decisão foi declarado inconstitucional pelo STF.

É pacífico que, se a decisão do STF declarando a inconstitucionalidade for anterior ao trânsito em julgado da sentença, o título é inexigível. A inovação da AR 2.876/DF, alinhada ao Tema 100, está em estender esse efeito às situações em que a inconstitucionalidade é reconhecida após o trânsito em julgado, dispensando a ação rescisória e permitindo a arguição direta de inexigibilidade com base nos artigos 525, § 12, e 535, § 5º, do CPC/2015.

A única exceção reconhecida pelo STF refere-se à preclusão: se o credor perder o prazo para executar ou abandonar a pretensão executiva, não será possível discutir a inexigibilidade do título, por inexistir execução em curso ou impulso processual a ser obstado.

A Marvel, ao longo de suas produções cinematográficas, reproduz de forma sofisticada o ciclo da desordem sistêmica, explorando as dimensões estruturais das decisões de grande impacto e os desdobramentos caóticos que delas decorrem, como visto em Guerra Infinita e Ultimato. Esses arcos narrativos — decisão, caos e reconstrução —  permitem um paralelo com a reinterpretação do STF sobre os novos rumos da coisa julgada.

Tal como nos filmes da Marvel, em que nenhuma decisão é definitiva e sempre há espaço para reconfigurações da realidade, o STF passou a admitir, a partir de casos como o Tema 881, Tema 885 e a Questão de Ordem da AR 2.876, que decisões transitadas em julgado podem ser desconstituídas quando fundadas em normas ou interpretações posteriormente declaradas inconstitucionais. Com isso, insere-se no sistema jurídico uma lógica de continuidade aberta, em que a estabilidade da coisa julgada perde sua característica de imutabilidade e indiscutibilidade, e a supremacia da Constituição passa a autorizar reconstruções normativas sempre que necessário — tal como nas narrativas do Universo Marvel, em que o fim nunca é realmente o fim.

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