Segunda Leitura

A importância da percepção e da avaliação do Judiciário pela sociedade

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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6 de julho de 2025, 8h00

No atual momento da realidade brasileira, o Poder Judiciário atinge preocupantes níveis de desaprovação. Contribuem para isso diversos motivos, entre eles o principal é a demora no desfecho final das ações. Mas compõem o quadro também as incompreensíveis liminares, pondo em liberdade traficantes por conta de fatos insignificantes, notícias de corrupção, pagamento de verbas salariais expressivas e condutas inadequadas.

Ressalte-se que este quadro, do qual não escapa o Supremo Tribunal Federal, não é a regra. Os aspectos são exceção e não regra. Mas acabam prevalecendo, porque notícias ruins despertam mais interesse que boas práticas, pois estas passam despercebidas.

Sintomas surgem no horizonte. O seccional da OAB de SP criou uma comissão para debater a reforma do Judiciário, nele estando integrados nomes de expressão, como ex-presidentes do STF, ex-ministros da Justiça e juristas de notório reconhecimento. Entre os temas sob análise estão a conduta e mandato para ministros do STF, fim da TV Justiça, acusada de ter elevado o nível de exposição pública desnecessária, combate à restrição das sustentações orais [1].

O conceito do Poder Judiciário

É tarefa difícil, quiçá impossível, saber como, há séculos passados, as pessoas viam a Justiça e seus integrantes. A memória exposta pelos tribunais, historicamente mal preservada, limita-se a reproduzir nomeações, currículos e discursos. Nas galerias de quadros ou retratos, as expressões sérias não permitem que se saiba quais foram os valorosos e quais não mereceriam, sequer, ser mencionados.

Todavia, algumas pesquisas dão-nos ideias a respeito. A obra de Adelto Gonçalves sobre Juízes de Fora, no período de 1709 a 1822, disto é um bom exemplo [2]. Trabalhos literários também permitem algumas informações a respeito. O poeta Gregório Matos, conhecido como “Boca do Inferno”, português  radicado na Bahia,  não hesitava em criticar nos seus versos a sociedade local. Sobre a Justiça, escreveu nas Obras Poéticas, em Juízo Anatômico da Bahia (37): “Valha-nos Deus, o que custa; que El-Rei nos dá de graça; Que anda a justiça na praça; Bastarda, vendida, injusta”.

Obras como a de Arno e Maria José Wehling dão-nos excelente noção das práticas forenses daqueles tempos, em especial sobre a importância das relações de parentesco e amizade para alcançar-se o acesso às Cortes de Justiça [3]. Estes relacionamentos foram analisados com rara propriedade por Caio Prado Junior que, inclusive, chama a atenção para a prática criada pela Igreja Católica de criar títulos como padrinho, afilhado e compadres, legitimando tais aproximações [4].

Em artigo sobre a distribuição da Justiça em 1912, quando foi publicado o primeiro volume da Revista dos Tribunais, dou ideia dos valores e da forma das decisões no início do século 20, as comarcas, o poder dos prefeitos para prender,  publicação em jornal sobre sentença coibindo abuso de poder da polícia e outras [5].

Spacca

A partir da admissão de juízes por concurso público, em 1827, com as garantias expressas na Constituição de 1934, apesar do hiato do Estado Novo e do AI-5 mais recentemente, foi a magistratura alcançando total segurança e estabilidade. Por outro lado, o bom conceito de seus juízes colaborava para a credibilidade e consequentes conquistas.

Isto fica claro na música caipira O Mineiro e o Italiano, de 1964. Em disputa pela posse de terras, o mineiro propõe ao seu advogado dar um presente ao juiz, a fim de que este lhe desse ganho de causa. O advogado repeliu a ideia, dizendo: “Não caia nessa besteira, senão nós vamo entrar pro cano; Este juiz é uma fera, caboclo sério e de tutano; Paulista da velha guarda, família de 400 anos”. Passado certo tempo, o juiz deu a vitória ao mineiro e este explicou ao advogado que havia enviado uma leitoa em nome do italiano” [7].

E foi assim que a Constituição de 1988 concedeu ao Poder Judiciário e aos seus magistrados uma série de garantias (artigos 92-99), inclusive na promoção, tornando-se uma das mais expressivas do mundo neste particular.

A importância da avaliação

A avaliação das instituições é essencial na democracia, é a única maneira de apontarem-se erros e aperfeiçoar o que foi conquistado. Por esse motivo, tais análises não devem ser confrontadas nem desprezadas, a menos que tenham objetivo diverso do bem comum, como, por exemplo, finalidade político ideológica.

É um erro primário manter-se em posição distante, insistindo em que na Justiça do Brasil “tudo é divino e maravilhoso”, como dizia Caetano. Não há espaço para a Síndrome de Poliana, oriunda do livro Poliana, da escritora Eleanor H. Porter, em 1913, sobre uma menina que em tudo ressaltava apenas o lado bom das coisas, objeto de seguidas novelas na TV desde 1956. Muito embora o otimismo seja bom e necessário, no excesso ele pode levar a um estado de alienação, distante da realidade.

Todavia, a desaprovação popular pode pôr tudo a perder. Bom exemplo disto foi a mudança da Constituição do México, a partir da qual os juízes em exercício perderam os seus cargos e os novos passaram a ser eleitos pelo voto popular. A eleição da ex- advogada de “El Chapo” Gusmán como juíza de Vara Criminal no Estado de Chihuahua [7], dá bem os resultados da inovação mexicana.

Portanto, líderes do Judiciário brasileiro devem ficar atentos aos reflexos das pesquisas, encará-las como parceiras e não como inimigas, combatendo as falhas que apontam e não as ignorando.

Combater o bom combate

Em momentos de insegurança institucional, o que se tem a fazer não é ignorá-la, adotando o raciocínio de Poliana, mas sim organizar-se, corrigir o que for necessário, melhorar e divulgar. Mas, como?

Algumas sugestões serão feitas, sem prejuízo de muitas de que os expertos na matéria se lembrarão:

a) Enfrentar o problema através da criação de comissão presidida por quem faça acontecer e proibida a entrada de pessoas envolvidas em política partidária;

b) Atacar a demora judicial, levando às Varas as boas práticas dos Juizados Especiais, local onde a Justiça é mais célere e eficiente. Óbvio que isto não será solução definitiva, pois o problema maior está no sistema da Constituição, baseado em múltiplas instâncias. Mas já será uma grande conquista.

c) Atacar práticas, estruturas, que se revelaram nocivas. Por exemplo, o STF ouvir e acatar sugestões da OAB-SP, como a de pôr fim aos julgamentos televisionados, responsáveis diretos por inflar egos com resultados negativos, como votos lidos por horas em desnecessária exibição de erudição.

d) Explicitar nos votos e ementas a necessidade de decisões judiciais que resguardem direitos e garantias individuais serem razoáveis, dentro da realidade brasileira e não nos padrões suecos, lindos, mas de realidade nórdica forjada nas dificuldades da vida em temperatura glacial, bem diferente deste país tropical.

e) Divulgação de bons exemplos. Centenas de juízes Brasil afora adotam excelentes medidas, sendo a criatividade uma virtude brasileira. O Instituto Innovare, com sucesso, avalia e premia boas iniciativas [8] Mas é preciso mais. No âmbito dos TRFs, TJs e TRTs, seria oportuna a criação de espaços de “Boas Práticas” nos sites, mesmo sendo estes espaços  disputadíssimos. As publicações devem ter parâmetros de forma e tamanho adequados, concisos, claros e objetivos. Divulgá-los na mídia será tarefa da comunicação social. Sabidamente, ela mantém interlocução com jornalistas ávidos por notícias. A troca de gentilezas faz parte das negociações.

f) Auxílios disto ou daquilo devem ser concedidos dentro de princípios éticos. É sabida a criatividade dos que pedem, para que possam ser incluídos em algumas vantagens, por vezes desvirtuando a finalidade. E isto não é privilégio da magistratura, trata-se de moléstia contagiosa à qual se dava o nome de “pouca vergonha”. A tais pedidos devem corresponder respostas polidas, mas categóricas. O juiz administrador deve visar ao bem comum e não ao reconhecimento de alguns, reconhecimento este que será esquecido tão logo tomem posse novos administradores.

Em conclusão

A magistratura brasileira, na segunda metade do século 20, gozou de grande prestígio e, por isso, a Constituição de 1988 concedeu-lhe todas as garantias. Mas prestígio é difícil de ganhar e fácil de perder. Cabe às lideranças do Judiciário zelarem não só para que sejam mantidas, mas também para que aumentem gradativamente. E nesta senda, ouvir a voz da sociedade expressa nas pesquisas de opinião e similares.

 


[1] UOL. OAB-SP instala comissão para reforma do Judiciário e ‘contenção’ do Supremo.

Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/06/24/oab-sp-instala-comissao-para-reforma-do-judiciario-e-contencao-do-supremo.htm. Acesso em: 5 jul. 2025.

[2] GONÇALVES, Adelto. Direito e Justiça em terras D´El Rei na São Paulo Colonial. 1709-1822

[3] WEHLING, Arno, WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial. O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808).

[4] PRADO JUNIOR,  Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Ed. Schwarcz, p. 306.

[5] FREITAS, Vladimir Passos de. A Revista dos Tribunais nº 1 e os julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo em 1912. Cadernos Jurídicos da Escola da Magistratura. São Paulo, ano 24, nº 65, p. 121-133, Janeiro-Março/2023.

[6] Letras. O mineiro e o italiano. Tião Carreiro e Pardinho. Disponível  em: https://www.letras.mus.br/tiao-carreiro-e-pardinho/392213/. Acesso em 04 jul. 2025.

[7] TERRA. Ex-advogada de traficante ‘El Chapo’ é eleita juíza no México. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/ex-advogada-de-traficante-el-chapo-e-eleita-juiza-no-mexico,6312b40d15b9e7a13a5fc7708978ad948tnus4cw.html?utm_source=clipboard. Acesso em 5 jul. 2025.

[8] Instituto Innovare. Disponível em: https://www.premioinnovare.com.br/. Acesso em 5 jul. 2025.

 

Autores

  • é presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus (Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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