Opinião

Erosão normativa da diretiva de due diligence: pragmatismo econômico sobre imperativos éticos

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6 de julho de 2025, 13h25

Nos centros de poder decisório da União Europeia, em Bruxelas, a liberdade não se encontra ameaçada por coerção manifesta, mas por uma erosão normativa impulsionada por um pragmatismo político que subordina a consciência ética a interesses conjunturais. A advertência de Hannah Arendt permanece pertinente: “Aqueles que não se mobilizam diante da ameaça à liberdade jamais se mobilizarão por qualquer causa”. Este princípio ilumina a trajetória da Diretiva de Due Diligence de Sustentabilidade Corporativa (CSDDD), um marco regulatório concebido para redefinir os perímetros da responsabilidade empresarial, alinhando as práticas corporativas a padrões éticos e ambientais rigorosos.

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A CSDDD representa um instrumento legislativo da UE, proposto em 23 de fevereiro de 2022, destinado a instituir a obrigatoriedade de as empresas conduzirem diligência devida em suas cadeias de suprimentos globais. O objetivo central consiste em identificar, prevenir e mitigar externalidades negativas no âmbito dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental. Inspirada em normativas internacionais consolidadas, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos (2011), a CSDDD visava a operar a transição de um regime de adesão voluntária para um sistema de obrigações juridicamente vinculantes, incluindo a elaboração de planos de transição climática. Sua ambição residia na extensão de sua aplicabilidade, que se estendia a fornecedores e parceiros comerciais em escala global, instituindo uma rede de corresponsabilidade ao longo das cadeias de valor.

Contudo, a aprovação da CSDDD, em 13 de março de 2024, em uma versão materialmente esvaziada, assinala um recuo expressivo em relação à sua formulação original. Negociações políticas, influenciadas por objeções de estados-membros como França e Alemanha, culminaram na contração do escopo da diretiva. Tal processo resultou na exclusão de aproximadamente dois terços das empresas inicialmente visadas, na flexibilização das exigências de due diligence e no enfraquecimento dos mecanismos de fiscalização e sanção. Este desfecho, legitimado por argumentos que evocavam o risco de “burocracia excessiva”, expõe uma clivagem fundamental entre os imperativos éticos da UE e as prioridades econômicas de curto prazo, comprometendo a capacidade da diretiva de induzir transformações estruturais nas práticas corporativas.

Regulação da CSDDD

A arquitetura regulatória da CSDDD objetivava internalizar os custos das externalidades negativas decorrentes das operações empresariais, compelindo as corporações a assumirem responsabilidade por impactos que transcendem os indicadores financeiros convencionais. Sua concepção previa uma notável abrangência transnacional, alcançando não apenas as operações diretas das empresas, mas também suas complexas redes de fornecedores. Não obstante, a versão aprovada, diluída por interesses nacionais, converteu este instrumento em um dispositivo de efetividade comprometida, incapaz de satisfazer plenamente seus objetivos primordiais.

Este processo de esvaziamento normativo não constitui um mero ajuste técnico; evidencia a preponderância de interesses econômicos conjunturais sobre princípios éticos estruturantes. Relatórios de fontes como Politico e Reuters documentam as articulações políticas, lideradas pela França com o respaldo da abstenção estratégica da Alemanha, que redefiniram o alcance da diretiva. A retórica da “burocracia excessiva”, mobilizada por setores liberais, serviu para mascarar a priorização de interesses econômicos nacionais, elevando o limiar de aplicabilidade a um patamar que neutraliza, em grande medida, sua capacidade regulatória e a reduz a um mecanismo de alcance limitado.

Spacca

Tal retrocesso desvela uma contradição estrutural na atuação da União Europeia. Embora o bloco se projete internacionalmente como vanguarda na defesa de valores humanistas, sua hesitação em internalizar os custos associados a seus ideais revela uma visão que subordina a ética a uma lógica instrumental. A CSDDD, em sua concepção inicial, representava uma inovação regulatória capaz de harmonizar a prosperidade econômica com padrões de dignidade humana e sustentabilidade. Sua redução a um constructo predominantemente simbólico frustrou a expectativa de que a diretiva funcionasse como um instrumento efetivo para a promoção de justiça social e ambiental.

Competitividade global

Os defensores da versão atenuada sustentam que a proposta original imporia ônus desproporcionais às empresas europeias, prejudicando sua competitividade global. Tal perspectiva, contudo, incorre em uma miopia analítica. Primeiramente, estabelece uma falsa dicotomia entre ética e prosperidade, desconsiderando a crescente convergência entre práticas de sustentabilidade e a valorização de longo prazo dos ativos corporativos. Em segundo lugar, ignora os custos intangíveis associados à erosão da legitimidade moral da UE, que, ao flexibilizar seus compromissos, compromete sua autoridade normativa e sua influência geopolítica.

Em última análise, a diluição da CSDDD materializa uma escolha política deliberada, na qual a premência de vantagens econômicas conjunturais se sobrepôs a uma visão estratégica de sustentabilidade e responsabilidade ética. Esta decisão não apenas restringe a capacidade da União Europeia de liderar a agenda global de governança corporativa, mas também suscita questionamentos sobre a coerência entre seus valores proclamados e suas práticas. Ao redefinir os limites da responsabilidade empresarial, a Europa arrisca não apenas o bem-estar de populações impactadas por cadeias de suprimento desreguladas, mas a própria credibilidade de seu projeto civilizatório.

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Referências

GUYON, G. Inside the Franco-German plot to kill Europe’s ethical supply chain law. Politico, 15 mar. 2024. Disponível aqui.

CHEE, F. Y. Panel of EU lawmakers back watered-down supply chain audit law. Reuters, 19 mar. 2024. Disponível aqui.

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