O fenômeno de internacionalização de litígios e as questões de soberania nacional que derivam de tais eventos vêm se mostrando uma realidade cada vez mais sedimentada ao redor do mundo.
Não é exagero afirmar que, nos dias atuais, são diversos os casos em que partes buscam reparação em cortes diversas daquelas em que se deu a consumação dos eventos ou dos danos oriundos de tais eventos.
No Brasil, os casos mais paradigmáticos são Município de Mariana v BHP [1], perante as cortes de Londres, o caso envolvendo residentes de bairros de Maceió contra a Braskem [2], perante as cortes de Roterdã, e ainda a demanda ajuizada por vítimas da tragédia de Brumadinho que demandaram a companhia alemã TÜV SÜD, perante as cortes de Munique [3].
Não menos conhecida, a disputa envolvendo o controle acionário da Eldorado Celulose também foi objeto de escrutínio por parte de cortes estrangeiras, inclusive com tentativa de alteração de sede da cláusula compromissória arbitral, originalmente pactuada como cidade no Brasil, para o exterior [4].
Todavia, como já dito anteriormente, tal fenômeno está longe de ser exclusivamente brasileiro. Questões atinentes a forum non conveniens como foro mais “closely connected” com a disputa e ainda de facilidade e conveniência para obtenção de provas e inquirição de testemunhas já foram objeto de profundas discussões em nível internacional.
Litígio na Argentina
E quiçá no mais recente dessas casos, cuja última decisão foi proferida no último dia 30 de junho, a juíza Loretta Preska, da Corte do Southern Distric of New York, emitiu mandado ordenando que a República da Argentina transferisse, no prazo de 14 dias, 51% de suas ações classe D da YPF S.A. como forma de parcialmente satisfazer decisão anterior, a qual havia condenado a Argentina a pagar aos requerentes Petersen Energia Inversora S.A.U., Petersen Energia, S.A.U., Eton Park Capital Management, L.P., Eton Park Master Fund, Ltd., e Eton Park Fund, L.P. a quantia de US$ 16,1 bilhões, originalmente fixada em setembro de 2023.
O litígio tem como origem a nacionalização da YPF, iniciada em 2012 e concluída em 2014, quando o então governo de Cristina Kirchner expropriou ações equivalentes a 51% dos papéis classe D da YPF detidos pela companhia espanhola Repsol. A YPF é a maior petroleira da Argentina e a segunda mais valiosa companhia do país, sendo listada nas bolsas de Buenos Aires e de Nova York.

Os requerentes, por sua vez, eram acionistas minoritários da YPF à data da expropriação e consequente troca de controle acionário de Repsol para República da Argentina. As companhias do grupo Petersen detinham aproximadamente 25% de American Depositary Receipts da YPF, ao passo que as entidades do grupo Eton Park eram proprietárias de American Depositary Shares representativos de cerca de 11,95 milhões de ações classe D.
O estatuto social da YPF previa a necessidade de realização de oferta pública de ações (OPA) em casos de aquisição de ações classe D representativas de ao menos 15% do capital social da YPF, previsão essa descumprida pela Argentina, conforme reconhecido em decisão da juíza Preska de março de 2023.
Ação indenizatória
Foi então que, em abril de 2015, as companhias do grupo Petersen ajuizaram, perante as cortes de Nova York, ação indenizatória contra a YPF e República da Argentina, pleiteando indenização pela não realização da OPA, às alegações de violações contratuais e de deveres de boa-fé e negociação justa [5].

Pouco mais de um ano depois, em setembro de 2016, sobreveio decisão denegando as motions to dismiss de YPF e Argentina, não acatando argumentos de forum non conveniens, soberania (Foreign Sovereign Immunities Act of 1976) e act-of-state doctrine tecidos pelas rés [6]. A decisão quanto aos aspectos de soberania e doutrina de act-of-state foram objeto de recurso interlocutório das rés, o qual foi novamente negado pela Court of Appeals [7].
Da aludida decisão proferida pela Court of Appeals, constou expressamente que a corte revisora “agree[d] with” this Court that, “under the bylaws, Argentina’s expropriation triggered an obligation to make a tender offer for the remainder of YPF’s outstanding shares”, bem como que tal obrigação se tratava de “a separate commercial obligation”.
Cumpre destacar que, pouco tempo após a decisão de primeiro grau que negou as motions to dismiss das rés, as companhias do grupo Eton Park ajuizaram, em novembro de 2016, sua própria ação indenizatória às mesmas bases legais da ação do grupo Petersen, as quais foram posteriormente compreendidas como correlacionadas e julgadas de forma conjunta.
Aspecto curioso da ação é que Petersen e Eton Park eram não apenas financiadas por fundos geridos pela gestora Burford Capital, como também cedentes de parcela do que o Código Civil Brasileiro denomina “direitos litigiosos [8]” à Burford.
Contrato de financiamento pactuado
Quanto ao arranjo pactuado com as entidades do grupo Petersen, Burford pactuou um contrato de financiamento com o administrador judicial espanhol da massa falida de Petersen, prevendo que faria jus a 70% do que fosse efetivamente recuperado por Petersen no litígio. Dos 70% pactuados, Burford acordou que parcela do valor seria destinada aos escritórios de advocacia envolvidos no caso, bem como outras despesas a serem desembolsadas, reduzindo tal montante a cerca de 58% dos valores obtidos por meio da disputa.
Todavia, a gestora informou que cedeu 38,75% de seus direitos litigiosos a terceiros, o que acabou por culminar em redução de seus recebíveis líquidos gerados no caso para cerca de 35%.
Já no arranjo celebrado com as sociedades Eton Park, a Burford celebrou tanto uma transação de financiamento, quanto uma operação de monetização dos potenciais recebíveis de Eton Park. De acordo com a gestora, por meio da combinação de referidas transações, a Burford faria jus a cerca de 73% dos recebíveis de Eton Park no litígio [9].
E o investimento feito pela Burford parece caminhar bem. Em decisão proferida em setembro de 2023, a Southern District of New York proferiu confirmatória de decisão anterior de março do mesmo ano, a qual entendeu pela responsabilidade da Argentina quanto à ausência de realização de OPA para aquisição das ações de Petersen e Eton Park.
Entendimento da corte
A corte entendeu que a OPA deveria ter sido realizada pela República da Argentina em abril de 2012, bem como que os juros pré-julgamento aplicáveis à indenização deveriam correr a partir de maio de 2012, de forma simples, a uma taxa de 8%.
De acordo com a Burford, a decisão contra a Argentina totalizaria, à data-base de setembro de 2023, o montante de US$16 bilhões, o que a Burford chamou de “a complete win against Argentina at the high end of the possible range of damages”.
Ocorre que, em se tratando de Argentina, ganhar o litígio é apenas a primeira das batalhas, o que certamente era de conhecimento da Burford.
Com a crise argentina ocorrida em 2001, a qual culminou com o país inadimplindo obrigações soberanas na ordem de US$100 bilhões, o fundo NML Capital, gerido pela gigante Elliott Management, após haver adquirido bonds e não ter aceitado incorrer nas perdas que outros credores absorveram nas reestruturações feitas pelo país em 2005 e 2010, decidiu litigar seus direitos contra o país [10].
Durante os cerca de 15 anos de litígio para reaver o investimento, o fundo NML Capital chegou a confiscar, em 2012, três navios (com 250 pessoas a bordo) da República da Argentina no porto de Tema, em Gana, após conseguir uma ordem judicial das cortes do país para tanto [11].
Assim, não obstante a colossal decisão de 2023, a Burford provavelmente já sabia o que estava por vir: a República da Argentina não quitou a indenização devida a Petersen e Eton Park.
Decisão da juíza
E foi então que, em mais uma paradigmática decisão, a mesma juíza Loretta Preska determinou, em 30 de junho de 2025, a transferência das ações classe D detidas pela República da Argentina na YPF para uma conta global de custódia do banco BNY Mellon em Nova York, decisão essa a ser cumprida em 14 dias, bem como que a Argentina instruísse o BNY a transferir referidas ações da YPF a Petersen e Eton Park em um dia útil contado da data em que as ações fossem depositadas na conta do banco [12].
Na decisão, a juíza foi clara quanto ao fato de que international comity (cordialidade internacional) não pode servir de escudo para partes que busquem não honrar decisões proferidas pelas cortes americanas: “Foreign governments cannot simply override the exceptions to the FSIA by invoking its own law to shield its assets from execution in the United States. If comity could supersede the FSIA and allow foreign law to control which sovereign assets are subject to execution, every foreign state could render itself judgment-proof in United States courts just by passing a law requiring its own approval for any transfer of its property [13]“.
A decisão, tal como a obtida pelo fundo Elliott no caso anterior, é emblemática e delicada na medida em que o Poder Judiciário de um país determina que a administração pública de outro país transfira ativos que detém em uma companhia atualmente estatal para terceiros.
São cenas para os próximos capítulos a forma com que a República da Argentina lidará com a decisão, que terá de optar entre entregar o controle de uma das mais valiosas companhias do país ou criar mais um impasse com o Poder Judiciário norte-americano, além de enviar mais uma mensagem a seus credores internacionais.
[1] Municipio De Mariana & Ors v BHP Group (UK) Ltd & Anor
[5] Complaint (“Petersen Complaint”), dated Apr. 8, 2015 [dkt. no. 1].
[6] Petersen Energía Inversora, S.A.U. v. Argentine Republic (Petersen I), 2016 WL 4735367, at *16 (S.D.N.Y. Sept. 9, 2016).
[7] Petersen Energía Inversora S.A.U. v. Argentine Republic (Petersen II), 895 F.3d 194, 198-99 (2d Cir. 2018), cert. denied, 139 S. Ct. 2741 (2019)
[8] Art. 109. A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes.
[12] Petersen Energia Inversora, S.A.U. et al. v. Argentine Republic et al., No. 15 Civ. 02739, Document 742.
[13] Petersen Energia Inversora, S.A.U. et al. v. Argentine Republic et al., No. 15 Civ. 02739, Document 742, page 31 of 33.