Crônicas da Lei e do Mito: o lado B de Hércules
5 de julho de 2025, 8h00
“Grandioso Aquiles. Fenomenal Aquiles, resplandecente Aquiles, divino Aquiles… Como os epítetos se acumulam. Nunca o chamamos de nada disso; nós o chamávamos de o açougueiro.” [1]
Nem tudo que reluz é ouro

Hércules e o Leão Nemean (óleo sobre tela), de Peter Paul Rubens
Este texto aprofunda, desde sua epígrafe, uma complexidade que já investigamos em nosso último trabalho (cf. aqui). Em resumo, de que a contradição é o destino de todo ideal que busca negar a vida. Nessa linha, veremos que os heróis carregam a mesmíssima “maldição” dos humanos e dos deuses gregos — que é de nunca serem dignos da perfeição. E para ilustrar isto, nenhum outro exemplo seria melhor do que o “Grandioso Aquiles”, cuja epígrafe talvez surpreenda o leitor. Afinal, o mesmo Aquiles que Homero celebra como o grande guerreiro do exército grego é também um transgressor sanguinário, capaz de transformar a Guerra de Tróia em palco da sua fúria — uma característica que, não por acaso, conduzirá sua queda nos termos da própria Ilíada (IX 410-414). Nesse sentido, a tragédia de seu temperamento — simultaneamente glorioso e sangrento — funciona como antecâmara para compreender Hércules, o protagonista deste ensaio. Entre louvores e ruínas, é no excesso que mora o herói.
Assim como Aquiles, Hércules encarna, de modo ainda mais dramático, este paradoxo da jornada do grande herói. Ao mesmo tempo em que atravessou os séculos e permaneceu vivo na língua comum, Hércules é um herói que começou sua jornada de forma infame, assassinando seus filhos e sua esposa. A seguir, estudaremos parte do percurso mítico do filho de Zeus, enfatizando não somente o brilho incontestável de seus doze trabalhos, mas também seus erros. Ao recuperar essas passagens, veremos que a identidade heroica é uma tensão permanente entre a mais sublime grandeza e o mais puro fracasso do espírito — tensão esta que a teoria jurídica converterá em reflexão para (re)pensar a prática judicante.
Nesse contexto, examinaremos parte do curriculum de Hércules, até sua apoteose ao Olimpo; depois, cruzaremos isto com três construções teóricas – de Ronald Dworkin, Marcelo Neves e Lenio Streck – para juntos imaginarmos alguns dos limites do Direito. Por fim, uma resposta à seguinte pergunta: é possível salvar Hércules de si mesmo?
A verdade e a tragédia de Hércules
Quem guarda nostalgia do desenho de 1997 em que Hércules se imortalizou no imaginário de toda uma geração de jovens talvez imagine uma mitologia com traços encantados — com direito a Zeus distribuindo abraços, Hades conspirando contra tudo e todos, Hera oferecendo sorrisos e Hércules lutando contra as forças do mal. Contudo, nenhuma dessas imagens corresponde à mitologia de verdade. Na realidade, Zeus é um deus adúltero cujo poder repousa tanto em sedução quanto em coerção; Hades, embora severo, nunca foi um demônio; Hera, por sua vez, é deusa do matrimônio, mas igualmente implacável diante da infidelidade de Zeus; e Hércules, por fim, sempre teve na sua sombra a sua grande tragédia.
Seja ou não este um contraste conhecido para o leitor, cumpre deixar claro. Zeus, fingindo-se do esposo de Alcmena, engravida a mulher sem que ela soubesse que estava se relacionando com um deus e dessa união clandestina que Hércules veio ao mundo, já com um alvo de morte em suas costas. Hera, ultrajada pela traição do marido, que se deitou com uma mortal, promete vingança contra a criança bastarda. Com isto em mente, enviou duas serpentes que só não mataram o pequeno Hércules porque ele, ainda no berço, foi capaz de estrangulá-las — num prenúncio de que sua identidade de há muito já era feita da conjunção entre grandeza e violência. E essa energia, cedo indomada, não demorou muito a ressurgir na adolescência. Em aulas de música, Hércules reage a uma repreensão do seu professor, erguendo seu instrumento como arma e partindo o crânio do seu preceptor.
Contudo, a desmedida converte‑se em desgraça também na fase adulta. Hera, ressentida com o fato de que Hércules era prova viva da infidelidade do marido, causa-lhe um acesso de loucura que apaga da memória qualquer afeto e traz à tona todo o descontrole que habitava seu íntimo. Fora de si, Hercules massacra a esposa Mégara e trucida os próprios filhos. Voltando a si, encontra apenas o silêncio da morte e corpos ao chão. À beira do suicídio – numa fuga que nada repara – é contido e aconselhado a procurar um oráculo que pudesse ajudá-lo. A resposta converte agonia em trabalho: Hércules deveria servir a Euristeu, rei de Micenas, por meio de doze árduos trabalhos que lhe trariam redenção. Entre morrer para fugir da culpa e viver para purgá-la, escolhe o segundo caminho [2].
Diante dessa motivação sombria, Hércules inicia a epopeia que muitos conhecem. Segundo a tradição mais consolidada: estrangula o Leão de Nemeia e veste‑lhe a couraça; esmaga a Hidra de Lerna; captura a Corça Cerineia; subjuga o Javali de Erimanto; limpa em um só dia os Estábulos de Áugias, desviando rios; afugenta as aves de Estínfalo; domina o Touro de Creta; vence as éguas canibais de Diomedes; toma o cinturão de Hipólita, soberana das amazonas; captura os Bois de Gerião, erguendo colunas entre continentes; engana Atlas para colher as maçãs das Hespérides; e, por fim, doma Cérbero, o temido cão do “inferno”. Trabalho após trabalho, buscando se redimir aos olhos da história e da sua consciência.

Ao final, seu ciclo de vida se encerra no amor e na dor. Depois de cumprir os doze trabalhos, Hércules parece enfim viver a paz nos braços de Deianira, sua segunda esposa. Contudo, lembremos que o destino nunca lhe ofereceu trégua. Atormentada pelo temor de perder Hércules, Deianira é enganada e aceita uma poção que seria capaz de garantir a fidelidade de Hércules. Em seguida, a insegurança reaparece e, desejando selar o afeto do herói, Deianira embebeda uma túnica do marido nesse líquido supostamente mágico. Quando Hércules veste a armadura, o veneno começa a consumir sua carne até os ossos e faz da morte uma questão de tempo. Percebendo o engano, Deianira se desespera; enquanto Hércules, dilacerado pela dor, ergue uma pira no monte Eta, entregando-se às chamas e fazendo da fogueira o seu último ato de liberdade. Entre labaredas, separa-se do que lhe restava de mortal, entregando seu corpo às chamas. No além vida, Zeus o acolhe no Olimpo, concede-lhe a imortalidade e o casamento com Hebe. E assim termina – ou recomeça – a trajetória do semideus cuja força fez o impossível, mas cuja redenção exigiu enfrentar o monstro interno que Hera lhe pôs à frente do espelho. E talvez resida aí o ponto decisivo dessa narrativa: o valor de um herói não se mede pela generosidade dos poetas que narram suas aventuras, mas pela verdadeira coragem de ressignificar erros em nome de algo maior.
Os juristas e seus arquétipos
As camadas da narrativa hercúlea transbordam para o Direito por um canal que é, antes de tudo, um campo simbólico de sentido. Desde Platão — para quem o governante ideal deveria ser um filósofo capaz de contemplar o Bem e, a partir dessa visão, ordenar a pólis — juristas e filósofos ordenam suas ideias a partir de arquétipos de todo tipo, no sentido de traduzir em verbo aquilo que os códigos, sozinhos, não conseguem dizer. Nada mais natural, portanto, que Hércules invada também o pensamento jurídico do século 20.
Dentre essas apropriações do arquétipo hercúleo, a figura que Ronald Dworkin batiza de juiz Hércules se destaca como uma das mais influentes e desafiadoras. Explicado em Taking Rights Seriously e também em Law’s Empire, o juiz Hércules não é um magistrado real, mas, sim, um modelo heurístico, dotado de incríveis atributos interpretativos e do domínio completo sobre o Direito. Seu papel, segundo ele, não é o de mero técnico da lei — como exigiria uma concepção legalista —, tampouco o de um criador de regras, como postulam os defensores do decisionismo. Hércules representa, antes, a projeção de um método interpretativo mais exigente. Em sua figura, a hermenêutica deixa de ser mero método de exegese e se torna um exercício de responsabilidade, exigindo que o Direito deve ser aquilo que ele já é interpretado sob sua melhor luz. Ao conceber esse personagem, Dworkin nos convida a pensar o ofício judicante não como jogo de interesse, mas como prática de julgar à altura de um sistema que aspira à justiça — uma árdua tarefa no mais rigoroso dos sentidos. Assim, a metáfora mostra que, embora nenhum magistrado possua tais atributos, o dever de fundamentar suas decisões não deixa ser precisamente este: uma obrigação hercúlea.
A imagem de Hércules adquire contornos distintos na reflexão de Marcelo Neves, especialmente em sua obra Entre Hércules e a Hidra. Em vez de exaltar o herói como ideal, Neves o insere em um dilema estrutural: o Direito contemporâneo oscila entre uma difusão interpretativa descontrolada — como a Hidra de Lerna, cujas cabeças se multiplicam — e o esforço sobre-humano de submetê-la à ordem — vide a pretensão do juiz Hércules. Para o autor, ambos seriam problemáticos. O caos interpretativo produz insegurança; e a tentativa de controle, engessamento autorreferencial. Para Neves, não há solução divina e a pretensão de domar o sistema pelo trabalho hercúleo seria tão ilusória quanto nociva [3]. Sua proposta, ao intermédio, é cultivar uma prática judicante que reconheça limites judiciais, em especial no sentido de buscar respostas normativas razoáveis — sem ceder à arbitrariedade, tampouco à ilusão de controle. Em sua leitura, o juiz Hércules não seria um paradigma a ser seguido, mas, sim, um modelo regulativo irrealista.
Por fim, Lenio Streck se distingue dos anteriores por se afastar tanto do heroísmo quanto da descrença. Em sua leitura, o jurista não é um sujeito interpelado pelo heroísmo — como sugere Dworkin —, nem um sujeito acuado pela proliferação normativa — como observa Neves —, mas um intérprete historicamente situado, condenado a interpretar. Inspirado na tradição hermenêutica, Streck sustenta que não há um sentido pronto na lei à espera de ser descoberto, tampouco liberdade para construí-lo a partir de preferências. A metáfora de Sísifo, recorrente em sua obra, simboliza uma condição trágica — mas também responsável — do jurista: tal como o personagem condenado a empurrar eternamente uma rocha montanha acima, o intérprete é chamado, incessantemente, a reexaminar o Direito à luz de novos contextos, valores e desafios. Não há repouso. Cada nova interpretação exige justificação pública, coerência com a tradição e abertura ao dissenso. A hermenêutica, para o autor, não seria um método neutro, mas, sim, um modo de ser no mundo — que impõe ao jurista a consciência de sua finitude, a responsabilidade por suas escolhas e a disposição para revisar o que lhe parecia definitivo. Nesse horizonte, a tarefa do Direito não seria alcançar um ponto final, mas manter viva a tensão entre estabilidade e transformação, sem trair o compromisso com a Constituição.
No fim, veja-se que nenhuma dessas teorias escapa à força das imagens. Dworkin se ancora em Hércules, Neves enfrenta a Hidra e Streck identifica Sísifo como signo do ato interpretativo. Acompanhando o entendimento destes autores, talvez seja verdadeiro argumentar que é possível cultivar uma prudência trágica que reconheça a utilidade pedagógica das imagens sem convertê-las em oráculos, sempre nos lembrando que, na vida e no Direito, precisamos tomar cuidado para nunca transformarmos ideias e ideais em dogmas (cf. aqui). Com efeito, a lição que se impõe é platônica no método e trágica no espírito: usar as imagens como metáforas e nunca como símbolos sagrados, pois todo arquétipo guarda sombra suficiente para obscurecer justamente aquilo que pretende iluminar e é preciso prudência para nunca tornar a mitologia em mero fetiche a serviço do Direito.
É possível salvar Hércules de si mesmo?
Se há algo que Hércules nos ensina, é que não há identidade sem responsabilidade. Seu percurso não é linha reta de superação, mas espiral de quedas e retomadas. Ele é força e fracasso, coragem e descontrole. Nesse sentido, sua imagem sobrevive porque expõe a ambivalência de quem tenta fazer o impossível com as próprias mãos. E é isto que torna complexa a pergunta: é possível salvá-lo de si mesmo? A resposta está no próprio mito: Hércules não foi salvo pelo perdão de nenhuma graça divina — enfrentou seus erros e, ao custo da própria carne, conquistou seu espaço no Olimpo e na eternidade. Sua apoteose não apaga suas falhas; ela as reconfigura em um processo de redenção. A questão, então, é saber se alguém pode ser ruína e salvação a um só tempo. E a resposta para isto é que pode — desde que não confunda salvação com perfeição.
No Direito, a metáfora do juiz Hércules criada por Dworkin cumpre função semelhante. Não é abstração metafísica, mas uma metáfora provocativa que serve mais para revelar uma obrigação do que para garantir certezas fáceis. Portanto, não se trata de uma ode ao poder judicial e não se espera que exista um magistrado com domínio total do Direito. O que se espera é que essa imagem funcione como um alerta de que todo magistrado tem uma obrigação hercúlea de julgar com responsabilidade, no sentido de devolver à prática uma pergunta incômoda: fundamentar decisões judiciais não deveria ser uma verdadeira obrigação? Em tempos de arbitrariedade e discursos vazios, lembrar que o magistrado deve(ria) ter responsabilidade é uma forma de preservar alguma dignidade ao Direito. A metáfora, aqui, não é panaceia: é exigência.
Nesse sentido, talvez Hércules nem precise ser salvo — nem na mitologia, nem na teoria. Sua queda o constitui tanto quanto seus feitos. Se chega ao Olimpo, é porque suportou o peso do próprio erro. No campo jurídico, seu arquétipo também não busca absolvição, mas vigilância. Com efeito, o perigo não está em usar imagens, mas, sim, em idolatrá-las. E para tanto, basta pensar em um juiz com complexo de superioridade.
No fim, a lição do lado B de Hércules é clara. Não se trata de negar o mito, mas de aceitá-lo realmente por inteiro. O mesmo semideus que matou filhos também desceu ao mundo dos mortos e retornou em triunfo. No fim das contas, portanto, salvar Hércules de si mesmo seria um erro. O desafio é outro: compreender que sua figura não é de perfeição, mas, sim, de um reflexo da nossa verdadeira condição. Numa sentença aos olhos de Nietzsche: humano, demasiado humano…
[1] BARKER, Pat. O silêncio das mulheres. São Paulo: Excelsior, 2022. p. 9
[2] Essa escolha encontra paralelo no mito de Pródico (cf. Xenofonte, Memoráveis, II. 1. 21-34), em que Hércules deve escolher entre o caminho do vício e o da virtude
[3] Trata-se de uma leitura que se afasta da compreensão hermenêutica do tema. Para Neves, Hércules parece flertar com o solipsismo
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