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Criação de unidades de conservação e direito de propriedade

5 de julho de 2025, 8h00

Por Dilermando Gomes Alencar, Talden Farias

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A criação de unidades de conservação (UCs) é, decerto, um dos pilares da Política Nacional de Meio Ambiente e do Direito Constitucional Ambiental. A Lei 6.938/1981, que instituiu a citada política, alçou tais área à condição de princípio, objetivo e meta (artigos 2º, VI, 4º, II e 9º, VI).

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Já a Constituição de 1988 incumbiu ao Poder Público a definição dos espaços territoriais especialmente protegidos como mecanismo para a efetivação desse direito (artigo 225, § 1º, III). Há também normas internacionais nesse intuito, como a Convenção do Patrimônio Mundial da Unesco (1972) e a Convenção da Biodiversidade (1992).

Foi para regulamentar o dispositivo constitucional citado que a Lei 9.985/2000 foi editada, instituindo assim o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc). As UCs são instrumentos centrais para a proteção da biodiversidade, da estabilidade climática, da paisagem, do patrimônio cultural, das populações tradicionais e dos recursos hídricos, além de contribuir para o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo país. Logo, ninguém pode ser simplesmente contra à instituição de tais territórios, pois os serviços ecológicos gerados são inúmeros, desde que cumpridos os requisitos legais e técnicos necessários.

Entretanto, a forma como geralmente essas UCs vêm sendo instituídas pelo Poder Público, seja federal, estadual ou municipal, merece uma maior reflexão no que diz respeito aos direitos dos proprietários de imóveis rurais.

O debate voltou a ganhar destaque em razão da recente decisão do STJ nos REs 2.006.687 e 2.172.289, segundo a qual os decretos expropriatórios não prescrevem quando voltados à implementação de UCs de domínio público. Esse julgamento não deixar de ser um marco na jurisprudência sobre o assunto, ao consolida de vez a impossibilidade de prescrição da desapropriação da propriedade inserida na UC instituída mas não efetivada, pois ainda havia uma ou outra decisão em olhar diferente.

Como a criação da UC decorre de ato de império, no caso, o decreto expropriatório, e sendo proteção ambiental uma determinação constitucional, o entendimento da Corte é que não haveria prazo prescricional para sua implementação. Em outras palavras, ao Estado é permitido criar a UC hoje e jamais efetivar a desapropriação, sem que isso implique qualquer consequência prática contra ele ou seus agentes. Trata-se de uma interpretação que, na prática, legitima a omissão do Poder Público e impõe uma incerteza jurídica sem fim ao particular.

Na ausência de desapropriação ou indenização o proprietário rural fica preso a uma espécie de looping jurídico: ele não pode obter financiamento bancário, não pode dar a terra em garantia, não consegue fazer o licenciamento ambiental de sua atividade econômica, não consegue autorização ambiental para suprimir vegetação e sofre embargos e multas administrativas por intervenção indevida de uma suposta área ambientalmente protegida — isso para não falar nos processos criminais. Afora o fato de não ser indenizado pelo Estado, o proprietário não recebe nenhuma previsão ou de satisfação do órgão ambiental quanto ao recebimento da indenização, não obstante muitas vezes tenha se passado anos ou mesmo décadas do ato expropriatório. Essa é a realidade de milhares de pequenos e médios produtores no país, que acabam sendo condenados ao “fogo eterno” da ilegalidade ambiental, financeira, econômica e imobiliária não obstante sejam os legítimos proprietários dessas imóveis sob o ponto de vista registral.

O fundamento dessa compreensão é o dispositivo constitucional mencionado, segundo a qual só seria possível alterar a menor áreas ambientalmente protegidas por meio de lei, ao passo que a sua criação ou ampliação pode ser feita por decreto. Por dizer respeito a um direito fundamental, a ideia é se facilitar a criação e a ampliação desses espaços, e dificultar a sua diminuição ou desconstituição. Foi nessa linha, inclusive, que o Snuc passou a exigir uma lei específica para a desafetação ou redução dos limites de uma UC (artigo 22, § 7º).

Faz-se mister salientar que os custos envolvidos na criação de uma UC costumam ser imensos, pois a maioria delas exige a desapropriação da área e o pagamento de indenizações altíssimas, posto que que normalmente abarcam vastas extensões territoriais. Afinal de contas, a propriedade é um direito fundamental, e a sua expropriação deve se dar necessariamente mediante justa e prévia indenização em dinheiro (artigo 5º, caput, XXII e XXIV).

É sabido que na maioria dos casos o proprietário não é indenizado, mesmo décadas após a criação da UC. Na verdade, muitas vezes sequer existe uma discussão acerca dos valores a serem gastos pelo Estado, pois a estruturação do Snuc tem passado ao largo da discussão orçamentária, tendo essa despesa simplesmente sido repassada aos governos subsequentes.

Como o planejamento financeiro é condição para a implementação de toda e qualquer política pública, seja na área de educação, habitação social, saúde ou segurança, não parece fazer sentido o pressuposto de que as áreas protegidas constituam uma exceção ao orçamento público.

A justificativa apresentada para a desnecessidade de previsão orçamentária seria o fato de a criação da UC, por si só, não configurar desapropriação, mas tão somente uma limitação administrativa. O STF usou essa argumentação para indeferir o Mandado de Segurança 27622, que tentou impugnar o Decreto Presidencial de 5 de junho de 2008, o qual instituiu o Parque Nacional Mapinguari, nos municípios de Canutama e Lábrea, no Amazonas.

Mas a situação não é tão simples

O Snuc dispõe que, até que seja elaborado o Plano de Manejo, todas as atividades e obras desenvolvidas nas unidades de conservação de proteção integral devem se limitar àquelas destinadas a garantir a integridade dos recursos que a unidade objetiva proteger, assegurando-se às populações tradicionais porventura residentes na área as condições e os meios necessários para a satisfação de suas necessidades materiais, sociais e culturais (artigo 28, parágrafo único).

Isso implica dizer que as regras ambientais passam a incidir de pronto sobre a propriedade, inobstante não indenizada, sejam as  regras que constam do Plano de Manejo, sejam as que decorrem do regime geral do Snuc para cada categoria específica de UC. Como o Snuc é, em princípio, um regramento ambiental especial muito mais severo que a legislação ambiental em geral, a alegação de configuração de mera limitação administrativa é contraditória, pois o espaço territorial é criado justamente para ser protegido de forma mais rígida, sendo drásticas e imediatas as restrições ao direito dos proprietários.

Embora a Procuradoria do ICMBio tenha firmado entendimento de que é devido aos proprietários privados um regime de transição até a efetiva solução fundiária, essa concepção em nada afasta a omissão do Estado quanto ao dever de indenizar, de forma justa e prévia, mediante o rito legal da desapropriação. A finalidade do regime é compatibilizar valores constitucionais aparentemente antagônicos: de um lado a proteção ambiental de espaços dotados de características especiais (artigo 225, III e VII), e de outro a propriedade privada (artigo 5º, caput, XXII) e o livre exercício de atividade econômica (artigo 170, IV).

Na transição, o que importa é a compatibilização dos interesses do particular, decorrentes de sua propriedade sobre a área, com certos limites que assegurem a proteção ambiental, consoante do Parecer Jurídico 062/2015 AGU/PGF/PFE-ICMBio/CR11-Lagoa Santa/MG. Esse regime, contudo, deve ser encarado como uma excepcionalidade e não como uma diretriz, porque a regra deve ser sempre o efetivo pagamento ao proprietário, uma vez que essa é uma determinação constitucional.

O não pagamento da desapropriação fragiliza a própria ordem constitucional na medida em que impede a incidência plena do regime protetivo do Snuc, pois somente com a propriedade e a posse públicas poderá haver a regência normativa ambiental plena. Em outras palavras, o meio termo proposto pelo ICMBio impede o proprietário de fruir do seu direito de propriedade de forma regular, ao tempo em que legitima e até perpetua a proteção ambiental incompleta da área.

De toda sorte, é necessário pontuar que na prática há casos em que o órgão ambiental nega ao proprietário o direito de usufruir de meio termo, impondo a restrição absoluta quanto ao uso econômico do imóvel.

Portanto, não existe a menor dúvida quanto à relevância do dever estatal de criar, implementar e manter as UCs, que são um dos mais importantes instrumentos de política ambiental. Todavia, as desapropriações devem ser efetivadas, pois não se pode penalizar o proprietário por um ônus ambiental que não escolheu e do qual não pode se livrar.

É importante ultrapassar o modelo de criação de UCs, muitas vezes chamadas de “parques de papel” porque instituídas sem qualquer perspectiva próxima de regularização fundiária, e que ignora a situação dos proprietários. A proteção ambiental exige responsabilidade fiscal, transparência administrativa e respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos afetados.