Opinião

Fazenda combate fraude em responsabilidade fiscal de grupos econômicos

Autores

  • é procurador da Fazenda Nacional especializado em Direito Tributário pela PUC/Minas e mestre em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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  • é  procuradora da Fazenda Nacional especializada em Direito Tributário pela PUC/Minas Direito Civil pela UCAM e mestra em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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  • é procurador da Fazenda Nacional especializado em Direito Tributário pela PUC/Campinas Administração Pública pela FGV/Rio de Janeiro e Direito Público pela Escola Superior da Advocacia-Geral da União.

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5 de julho de 2025, 17h24

É frequente, nas varas de execução fiscal, a identificação de determinadas pessoas jurídicas que, embora formalmente distintas, operam como uma verdadeira unidade econômico-patrimonial, caracterizando um grupo econômico de fato com o precípuo escopo de se esquivar do pagamento dos tributos devidos. A atuação da Fazenda Nacional no combate à sonegação e à blindagem patrimonial exige, com frequência, o pedido de reconhecimento judicial dessa realidade, sobretudo diante da constatação de elementos como a coincidência de sócios, endereços, contadores, clientes e até de sucessão de empregados entre pessoas jurídicas que exercem as mesmas atividades econômicas.

Em diversos precedentes, os tribunais têm reconhecido que a separação meramente formal entre pessoas jurídicas que, na prática, se valem de estrutura comum, gestão unificada e confusão patrimonial, pode e deve ser desconsiderada para fins de responsabilização solidária.

Nessa perspectiva, o Fisco não apenas pode, mas deve atuar com o instrumental previsto no ordenamento jurídico para desconsiderar a separação formal entre as pessoas jurídicas e, assim, alcançar o grupo econômico fraudulento, desvelando a realidade substancial por trás das aparências documentais. Trata-se de aplicar uma leitura sistemática e teleológica da norma tributária, compatível com os paradigmas do pós-positivismo e do Estado fiscal de direito.

Entretanto, tem-se observado o surgimento de decisões de primeira instância que deixam de analisar pedidos de reconhecimento judicial de grupo econômico com fundamento exclusivo na suposta necessidade de apuração administrativa prévia da responsabilidade. Nessas decisões, sustenta-se que a Fazenda deveria se limitar à via administrativa, instaurando procedimento próprio com contraditório prévio, em vez de acionar diretamente o Poder Judiciário. Tal raciocínio, ao impor à Fazenda um “curso forçado” da via administrativa como condição para o exercício da jurisdição, revela-se não apenas ilegal, mas frontalmente inconstitucional, por afrontar os princípios da inafastabilidade da tutela jurisdicional, da separação dos Poderes e da efetividade da jurisdição.

O presente artigo tem por objetivo examinar criticamente a indigitada tese, demonstrando que a imposição de um filtro administrativo obrigatório para a apreciação judicial de pedidos de responsabilização fiscal não encontra amparo no ordenamento jurídico brasileiro, além de comprometer gravemente a atuação do Estado no combate à fraude e à evasão fiscal.

Grupos econômicos fraudulentos no direito tributário brasileiro

A atuação empresarial contemporânea tem demonstrado que nem sempre as estruturas jurídicas refletem a realidade das relações econômicas entre pessoas jurídicas. Muitas vezes, o que se observa é a existência de múltiplas sociedades empresárias formalmente autônomas, mas que, na prática, operam como uma só unidade econômica. Tais configurações, em que há divisão artificial de atividades, confusão de patrimônios, coordenação centralizada e finalidade comum, têm sido denominadas de grupos econômicos de fato fraudulentos ou grupos econômicos irregulares.

Spacca

Ao contrário dos grupos econômicos regulares, instituídos formalmente conforme os parâmetros da Lei nº 6.404/1976, os grupos econômicos fraudulentos não contam necessariamente com um vínculo jurídico-formal entre suas integrantes. A conexão entre elas é essencialmente fática, estruturada com o precípuo objetivo de dissipar o patrimônio, burlar credores e, essencialmente, evitar a tributação, constituindo verdadeira fraude à lei.

A doutrina tributária tem se debruçado sobre a forma como o ordenamento jurídico deve reagir a essas situações, especialmente no que se refere à aplicação:

  1. do artigo 124, inciso I, do CTN, que trata da responsabilidade solidária entre pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;
  2. do artigo 124, II, do CTN, que versa sobre a possibilidade de responsabilização tributária das pessoas designadas por lei (a exemplo do previsto no artigo 30, IX, da Lei nº 8.212/91, quanto às contribuições previdenciárias);
  3. do artigo 133, do CTN, que prevê a hipótese de sucessão empresarial mascarada ou fraudulenta;
  4. do artigo 135, III, do CTN, que estabelece a responsabilização dos sócios-administradores por fatos ilícitos.

A literatura jurídica tem apontado que a atuação dessas estruturas irregulares se manifesta, com frequência, por meio de indícios como confusão patrimonial, ausência de autonomia administrativa, contábil e financeira, identidade de sócios, administradores e empregados, sucessão empresarial informal (mascarada ou “fraudulenta”), inclusive mediante a utilização de interpostas pessoas (“laranjas”), transferência de ativos entre sociedades do grupo sem contraprestação efetiva e ocultação de bens em sociedades puramente patrimoniais, sem qualquer movimentação operacional.

Em tais hipóteses, a autonomia jurídica de cada sociedade empresária não pode servir como escudo para impedir a responsabilização solidária. O reconhecimento do grupo econômico de fato fraudulento e das hipóteses comprovadas de sucessão empresarial mascarada é, pois, instrumento legítimo e necessário para a efetivação do crédito tributário, permitindo que se alcance o verdadeiro responsável pela obrigação, ainda que ele se oculte sob múltiplas fachadas jurídicas.

Sem prejuízo da corresponsabilização tributária com base nos supracitados dispositivos do CTN, a jurisprudência também tem aplicado, nas hipóteses de comprovada confusão patrimonial e desvio de finalidade no âmbito dos grupos econômicos de fato, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ex vi do artigo 50 do Código Civil. Não se pode esquecer, ainda, que o princípio do diálogo das fontes autoriza a transcendência de compartimentalizações normativas com objetivo de se estabelecer uma leitura complessiva e integrativa entre as normas civis, tributárias e trabalhistas.

Percebe-se, portanto, que o Fisco está devidamente autorizado pelo ordenamento jurídico a atuar em Juízo para pleitear o reconhecimento judicial de grupos econômicos fraudulentos, o que, muitas vezes, se mostra necessário para a efetiva recuperação do crédito tributário.

Vedação à ‘jurisdição condicionada’: inconstitucionalidade da exigência de prévio procedimento administrativo

Na teia de tudo o que foi exposto até o momento, é possível afirmar que a tese da indispensabilidade de instauração de procedimento administrativo específico — como o Procedimento Administrativo de Reconhecimento de Responsabilidade (PARR), previsto na Portaria PGFN nº 948/2017 — para fins de reconhecimento judicial da responsabilidade solidária entre integrantes de grupos econômicos irregulares não encontra qualquer amparo na Constituição.

Conforme salientado alhures, tal exigência configura verdadeira hipótese de “jurisdição condicionada” ou de “instância administrativa de curso forçado”, o que é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição de 1988 consagra o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (artigo 5º, XXXV), rejeitando expressamente qualquer tentativa de subordinar o acesso ao Judiciário ao prévio esgotamento de instâncias administrativas, diferentemente do que se permitia sob a égide da Constituição anterior.

Admitir que a atuação jurisdicional imprescinda da existência ou conclusão de procedimento administrativo representa violação não apenas ao direito fundamental de acesso à justiça, mas também ao princípio da legalidade tributária (Constituição, artigo 150, I). Isso porque os dispositivos do Código Tributário Nacional — notadamente os artigos 124, I e II, 133 e 135, III — não exigem qualquer procedimento administrativo prévio para a configuração da solidariedade entre sujeitos que se enquadrem nas hipóteses ali previstas.

Além disso, a tentativa de impor à administração pública a obrigatoriedade de instaurar um PARR constitui nítida afronta ao princípio da separação dos poderes (artigo 2º, da Constituição), pois não compete ao Judiciário deliberar sobre critérios de conveniência e oportunidade administrativos. Trata-se de ato discricionário, cuja decisão incumbe exclusivamente ao órgão fazendário, à luz das especificidades de cada caso.

É notório que devedores recalcitrantes se valem de uma ampla gama de estratagemas societários, contábeis e financeiros para promover a blindagem de seu patrimônio e evitar o pagamento de seus débitos. Por essa razão, o sucesso em operações destinadas ao desmantelamento de grupos econômicos fraudulentos depende, em grande medida, do fator surpresa. Exigir a instauração prévia de um procedimento administrativo pode eliminar esse elemento estratégico e comprometer a efetividade da recuperação do crédito público, contrariando o princípio da máxima utilidade da execução.

Não se pode perder de vista, ainda, que o êxito das operações destinadas ao combate de tais ardis também depende essencialmente da adoção de medidas cautelares destinadas ao bloqueio e/ou constrição de ativos patrimoniais pertencentes às pessoas e sociedades envolvidas no conluio, o que não poderia ser realizado no âmbito administrativo. A tutela judicial, portanto, se apresenta como instrumento mais célere e eficaz para assegurar os direitos do Fisco.

À vista do exposto, resta evidente que a tese da indispensabilidade do PARR como condição para o exercício da jurisdição na responsabilização solidária de integrantes de grupos econômicos irregulares não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio. Tal exigência não apenas desborda dos limites da legalidade estrita, sobretudo em matéria tributária, como também contraria frontalmente o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional.

Ademais, ao tentar subordinar a atividade jurisdicional à existência de juízo de conveniência administrativa — cuja titularidade é exclusiva da administração pública —, incide-se em manifesta afronta ao princípio da separação dos poderes. Sob todos os prismas analisados, o condicionamento judicial à prévia instauração de PARR configura, em verdade, vício de inconstitucionalidade formal e material, devendo tal compreensão ser firmemente afastada pelo Poder Judiciário, em prestígio à supremacia da Constituição e à efetividade da jurisdição fiscal.

Tema nº 1.209/STJ e sua absoluta imiscibilidade com a suposta necessidade de instauração de PARR

Outro ponto que deve restar claro diz respeito à total ausência de relação entre aquilo que está por ser decidido pelo STJ no bojo dos Recursos Especiais nº 2.039.132, 2.013.920, 2.035.296, 1.971.965 e 1.843.631, de relatoria do ministro Francisco Falcão, e a exigência da demonstração de PARR prévio ao pedido de reconhecimento judicial de grupos econômicos de fato.

Com efeito, o debate em torno do Tema Repetitivo nº 1.209/STJ circunscreve-se à análise da (in)dispensabilidade da instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), previsto nos artigos 133 e seguintes do Código de Processo Civil, no âmbito das execuções fiscais regidas pela Lei nº 6.830/1980. O STJ, ao afetar a matéria como representativa da controvérsia, objetiva a uniformização da jurisprudência quanto à compatibilidade do IDPJ com o rito executivo fiscal, diante da multiplicidade de decisões divergentes entre as turmas da 1ª Seção.

Esse debate, no entanto, é absolutamente alheio à tese que tem surgido condicionando o reconhecimento judicial da responsabilidade solidária de integrantes de grupos econômicos de fato à prévia instauração de processo administrativo.

Isso porque a função do IDPJ, objeto do Tema 1.209, está limitada ao exame de pedidos de redirecionamento fundados na superação da personalidade jurídica em razão da ocorrência de abusos — casos em que se busca atingir patrimônio de sócio ou terceiro alheio à obrigação original. Trata-se de julgamento que objetiva: verificar a compatibilidade (ou não) do IDPJ com o rito especial estabelecido na LEF; e caso a resposta anterior seja afirmativa, estabelecer em quais casos sua utilização seria imprescindível.

Bem se vê, portanto, que se reveste de falácia o argumento segundo o qual se condiciona a análise judicial do pedido de reconhecimento de grupos econômicos de fato à instauração prévia de PARR e à decisão definitiva do STJ no Tema 1.209/STJ, uma vez que a matéria ali discutida é totalmente estranha à tentativa de instituição de tese que visa a instituir instância administrativa de curso forçado. Assim, eventual tentativa de analogia entre o PARR e o IDPJ, para sustentar a suposta imprescindibilidade de esgotamento da via administrativa antes da responsabilização solidária de empresas de um mesmo grupo irregular, revela-se conceitualmente impertinente e juridicamente inválida.

Considerações finais

A responsabilização solidária prevista nos artigos do CTN deve ser reinterpretada à luz da realidade econômica contemporânea, especialmente quando se trata de grupos econômicos irregulares. A rigidez formalista que condicionava a solidariedade tributária à participação conjunta no fato gerador, no caso do artigo 124, I, do CTN, não se sustenta diante de estruturas empresariais marcadas por abuso da personalidade jurídica, confusão patrimonial e gestão fraudulenta, cujo objetivo é, justamente, o de frustrar a satisfação do crédito tributário.

Nessa senda, é plenamente aplicável a teoria do diálogo das fontes, com aplicação consentânea dos dispositivos de direito civil, tributário e trabalhista, sem que isso venha a implicar um maior rigor formalista tendente a esvaziar iniciativas que tendam à satisfação do crédito público. Afasta-se, por outro lado, qualquer exigência inconstitucional de “jurisdição condicionada”, conforme já reconhecido pelo STF e pela doutrina especializada, reforçando-se a imediata justiciabilidade dos direitos e deveres tributários.

Por fim, constatou-se ser tecnicamente incorreta e juridicamente insustentável a tentativa de vincular o julgamento do Tema 1.209/STJ à suposta necessidade de instauração prévia de PARR para a responsabilização solidária de integrantes de grupos econômicos de fato, eis que tal exigência viola frontalmente o princípio da inafastabilidade da jurisdição, não estando arrimada nem na legislação, nem na jurisprudência do STJ, sendo absolutamente alheia à discussão travada no referido tema repetitivo.

Conclui-se, portanto, que a responsabilização solidária de entes integrantes de grupos econômicos de fato encontra respaldo jurídico suficiente na legislação tributária e civil que, interpretada de modo sistemático e teleológico, dispensa formalismos excessivos e infundados do ponto de vista legal e constitucional e que apenas favorecem condutas lesivas ao Erário. A resposta adequada a tais estruturas demanda uma hermenêutica tributária que privilegie a substância sobre a forma e que esteja comprometida com a efetividade da ordem jurídica, justiça fiscal e proteção do interesse público.

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Referências

MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (administrativo e judicial). 4. ed. São Paulo: Dialética, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

Autores

  • é procurador da Fazenda Nacional, especializado em Direito Tributário pela PUC/Minas e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

  • é  procuradora da Fazenda Nacional, especializada em Direito Tributário pela PUC/Minas, Direito Civil pela UCAM e mestra em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

  • é procurador da Fazenda Nacional, especializado em Direito Tributário pela PUC/Campinas, Administração Pública pela FGV/Rio de Janeiro e Direito Público pela Escola Superior da Advocacia-Geral da União.

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