Opinião

Tese jurídica e ratio decidendi: compreensão, convivência e preservação de efeitos

Autores

  • é advogado consultor jurídico professor de Direito Processual na Faculdade de Direito do Recife (UFPE) doutor em Direito Processual pela USP mestre em Direito pela UFPE e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP) do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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  • é doutor em direito processual pela Uerj mestre em Direito pela UFPE procurador do município do Recife professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e advogado.

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4 de julho de 2025, 15h23

O sistema brasileiro de precedentes, em sua adaptação às particularidades do civil law e às demandas repetitivas, desenvolveu um instituto singular: a tese jurídica. Este mecanismo, embora relacionado à ratio decidendi, possui natureza e efeitos jurídicos distintos, criando um regime procedimental diferenciado que impacta diretamente no processo contemporâneo.

A tese jurídica constitui uma forma especial de proclamação da ratio decidendi, desenvolvida especificamente para resolver questões repetitivas de forma célere e segura. Diferentemente da ratio decidendi tradicional, que emerge da análise interpretativa do precedente e se aplica a casos semelhantes, a tese é enunciada diretamente pelo tribunal para aplicação exclusiva a casos juridicamente idênticos. Essa distinção não é meramente conceitual, mas produz consequências práticas significativas no tratamento processual das demandas.

A principal característica da tese jurídica é sua função de racionalização para o tratamento massificado de demandas, implementando uma espécie de sistema “cara-crachá” —, nos moldes do antigo esquete do “Zorra Total”, uma verificação simples de identidade de questões entre o caso piloto, no qual a tese foi formulada, e os demais casos, para simples aplicação da solução. Para os processos sobrestados durante o julgamento dos repetitivos, o sistema foi pensado para funcionar de forma sumária: após a fixação da tese, bastaria ao julgador verificar qual a tese firmada e aplicá-la ao caso, desde que previamente preparado para essa aplicação simplificada.

O Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu um conjunto específico de regras procedimentais que se aplicam exclusivamente quando há tese jurídica aplicável ao caso. A improcedência liminar (artigo 332) permite o julgamento antecipado quando há litigância contra tese firmada. A tutela da evidência (artigo 311, II) autoriza a concessão imediata de tutela provisória nos casos em que a pretensão se baseia em tese jurídica.

Os poderes do relator foram ampliados (artigo 932, IV e V), possibilitando o julgamento monocrático de recursos com base na aplicação direta de teses. A desistência da ação ganhou contornos especiais (artigo 1.040, §§ 1º a 3º), permitindo condições diferenciadas quando há tese contrária ao pedido.

O instituto da reclamação também foi expandido (artigo 988, III, IV e § 5º, II), tornando-se cabível para garantir a aplicação uniforme das teses jurídicas. Os recursos excepcionais que litigam contra tese devem ter seu seguimento negado, e essa decisão em juízo provisório de admissibilidade pelo tribunal recorrido apenas é impugnável por agravo interno, isto é, no âmbito interno do próprio tribunal, sem alcançar o tribunal superior (artigo 1.030, I e § 2º). Ainda, se houver tese a basear o título executivo em cumprimento provisório, a caução exigida para levantamento de dinheiro ou atos de transferência de posse, propriedade ou outro direito real poderá ser dispensada (artigo 521, IV).

Crucial observar que esses mecanismos de sumarização processual se aplicam nas hipóteses em que há tese jurídica específica para o caso idêntico.

Ratio decidendi

O mesmo não se pode dizer no caso da ratio decidendi, aqui definida como o resultado da interpretação da(s) solução(es) adotada(s) pelas decisões de casos análogos anteriores como um passo suficiente para alcançar a sua conclusão para o ponto ou questão em análise. Da construção da ratio decidendi participam tanto o tribunal que prolatada a decisão da qual será extraída a norma jurídica, quanto os demais. Nesse sentido, há uma contínua reinterpretação da norma jurídica que vai sendo desenvolvida, por meio da inserção de novos elementos, da realização de distinções etc.

Spacca

Enquanto a ratio decidendi, como aspecto normativo do precedente, é uma figura que possui fundamento no texto do precedente paradigmático, mas pode se desgarrar dele, especialmente a partir de precedentes posteriores, que lhe determinem a extensão, a “tese jurídica” não possui essa autonomia. [1] Esse é o ponto. Nos casos em que a ratio é reinterpretada a ponto de se estender além da solução originalmente fixada, o procedimento deve seguir o rito comum, com contraditório pleno.

Exemplificando: a tese do STF sobre exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins [2] aplica-se a casos idênticos, que receberão tratamento especial com aplicação das regras de sumarização processual. Porém, se o julgador pretende aplicar o mesmo fundamento para excluir o ISS da base de cálculo dessas contribuições, trabalhará com a ratio decidendi expandida, caso em que o processo deve ter trâmite comum, exigindo ampla discussão e contraditório. Afinal, é imperativa a observância de ampla participação para que se permita a discussão em torno da correção da extensão da ratio pretendida pela parte.

Estratégia processual

Essa diferenciação produz consequências práticas significativas para todos os operadores do direito. Para advogados, compreender se o caso se enquadra na aplicação direta de tese ou demanda análise da ratio decidendi tradicional determina a estratégia processual, os prazos de tramitação e as possibilidades de defesa. Para magistrados, a distinção orienta a escolha do procedimento adequado e a extensão do contraditório necessário, sendo que a aplicação inadequada dos mecanismos de sumarização pode gerar nulidades ou decisões inadequadamente fundamentadas.

A tese jurídica não substitui nem anula a ratio decidendi tradicional. Ambas convivem no sistema brasileiro, cada uma com função específica: a primeira garantindo eficiência na solução de demandas repetitivas idênticas; a segunda permitindo a evolução argumentativa do direito através da aplicação analógica e distintiva. Essa convivência é essencial para evitar a “totalização” da tese — fenômeno semelhante ao que ocorreu com as súmulas — que empobreceria o sistema de precedentes ao limitar sua capacidade evolutiva e argumentativa.

Consolidação do sistema de precedentes

O sistema brasileiro de precedentes ainda está em consolidação, demandando maior precisão na identificação dos casos que comportam aplicação direta de tese versus aqueles que exigem a análise tradicional da ratio decidendi. O sucesso desse sistema dependerá da aplicação equilibrada de ambos os institutos, preservando tanto a eficiência quanto a qualidade argumentativa e seus efeitos positivos para a coerência e integridade do direito brasileiro.

A distinção entre tese jurídica e ratio decidendi representa característica significativa do sistema brasileiro de precedentes. Essa distinção revela-se relevante por conta das ferramentas processuais específicas para lidar com a realidade das demandas repetitivas, que não deve comprometer a riqueza interpretativa do uso tradicional dos precedentes. Compreender adequadamente essa diferença e seus efeitos jurídicos específicos é fundamental para a prática forense, influenciando desde a estratégia processual até a fundamentação das decisões judiciais.

 


[1] BARIONI, Rodrigo. Precedentes no direito brasileiro: desafios e perspectivas. Revista de Processo, v. 310, 2020, p. 275; BARIONI, Rodrigo; ARRUDA ALVIM, Teresa. Recursos repetitivos: tese jurídica e ratio decidendi. Revista de Processo, v. 296, 2019, p. 194-195.

[2] STF, Tribunal Pleno, RE 574.706, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 15/03/2017, Dje 02/10/2017, tema 69 da repercussão geral.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico, professor de Direito Processual na Faculdade de Direito do Recife (UFPE), doutor em Direito Processual pela USP, mestre em Direito pela UFPE e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP), do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

  • é doutor em Direito Processual pela Uerj, mestre em Direito pela UFPE, procurador do município do Recife, professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e advogado.

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