O STF e a responsabilidade civil das plataformas digitais por conteúdos de terceiros
4 de julho de 2025, 6h36

O Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento do RE nº 1.037.396/SP, declarando, por maioria, a inconstitucionalidade parcial do artigo 19 da Lei nº 12.965/14 (o Marco Civil da Internet), que determina a necessidade de ordem judicial prévia e específica de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros (Tema de Repercussão Geral nº 987). Isto é, segundo o dispositivo, conteúdos postados em redes sociais ensejam, a princípio, somente a responsabilidade do seu autor.
A questão posta à análise se resume a saber se a proteção extra conferida às plataformas é constitucional.
O STF entendeu que não. Conforme consta do dispositivo do acórdão, a inconstitucionalidade estaria na proteção insuficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância, como a democracia e os direitos fundamentais. Caracterizar-se-ia, portanto, um estado de omissão legislativa parcial, pelo que:
“Enquanto não sobrevier nova legislação, o art. 19 do MCI deve ser interpretado de forma que os provedores de aplicação de internet estão sujeitos à responsabilização civil, ressalvada a aplicação das disposições específicas da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE.”
A partir desse fundamento, foram estabelecidas outras teses a respeito da responsabilização: 1) há responsabilização civil da plataforma por conteúdos de terceiro quando se tratar de crime ou atos ilícitos, com exceção dos crimes contra a honra; 2) há presunção de responsabilidade dos provedores em caso de anúncios pagos e chatbots ou robôs [1]; 3) há responsabilidade do provedor quando não vetar imediatamente conteúdo que configurar crime grave conforme rol taxativo, quando configurada falha sistêmica [2]; e 4) em nenhum caso a responsabilidade será objetiva.
Além de fixar as teses acima — e outras de que não abordam diretamente a questão da responsabilidade civil —, o STF exortou o Congresso “para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais”.
Pois bem. À primeira vista, a despeito de a decisão ter declarado a inconstitucionalidade parcial do artigo 19 do Marco Civil da Internet, parece-nos que se trata de inconstitucionalidade propriamente dita. Afinal, do que se pode inferir do dispositivo do acórdão, até que sobrevenha a nova legislação — evento futuro e incerto —, a norma não produzirá efeitos, e os provedores poderão ser responsabilizados pelos atos ilícitos e crimes veiculados por terceiros. O que era a exceção, portanto, agora é a regra: as plataformas são responsáveis por aquilo que seus usuários postam, independentemente de decisão judicial.
Respeitosamente, não se pode concordar com a conclusão alcançada pelo STF.

Embora um dos efeitos mais preocupantes da decisão tenha sido neutralizado (a responsabilização direta da plataforma até mesmo nas hipóteses de crimes contra a honra), fato é que se instalou grande subjetividade na identificação dos posts que configuram os tais crimes graves. Por exemplo: identificar, no caso concreto, quais postagem se enquadram no tipo de incitação à discriminação não é algo autoevidente.
A linha que delimita a diferença entre a mera ofensa e a discriminação é tênue. E o STF acabou por delegar a responsabilidade por traçar estas e outras distinções às plataformas, que deverão realizar um controle prévio sobre o conteúdo de tudo o que é publicado.
Num momento histórico em que o exercício da liberdade de expressão passa pela manifestação nas redes sociais, a adoção de uma perspectiva que autoriza a restrição a priori do direito daqueles que usam as plataformas digitais para se posicionar politicamente não parece algo trivial.
É natural que ao manifestar pensamento e expor ideias, ao criticar e ao debater, algumas pessoas possam se sentir ofendidas. Nalguma medida, desagradar os outros é inerente ao exercício da liberdade de expressão. Concluir daí que as plataformas digitais podem moderar de forma autônoma os conteúdos publicados, inclusive podendo ser responsabilizadas por conteúdos potencialmente ofensivos ainda que não exista decisão judicial nesse sentido é um grande salto.
Existe relevante diferença entre o sentimento de ofensa e a existência de um dano apto a ensejar uma reparação civil ou mesmo uma condenação criminal. Nem todo o sentimento de ofensa justifica a remoção de postagens ou o cancelamento de perfis. Como, então, pensar na responsabilização prévia das plataformas se nem sequer há um consenso entre aquilo que é ofensivo e antijurídico e aquilo que é ofensivo, mas legal? Pior: como autorizar (e exigir) que elas removam posts sem que existam parâmetros claros sobre quais conteúdos devem ser removidos? Queremos mesmo dar esse poder às empresas de tecnologia, desconsiderando o Judiciário como o lócus para definir esses conflitos?
Com as empresas sendo responsabilizadas pelas postagens dos usuários, o que veremos é a implementação de um controle pautado não na defesa da liberdade de expressão, mas no objetivo de se proteger em termos patrimoniais — um controle potencialmente nocivo, portanto. Ademais, a questão não pode ser analisada somente sob a ótica dos ofendidos. A remoção de posts e cancelamento de perfis atinge milhares de pessoas que têm o direito constitucional de acessar informações e a expressão do pensamento dos outros (artigo 5º, inciso XIV, da CF). Manifestações legítimas de pensamento, ainda que criticáveis à luz de uma ou outra concepção moral, não podem ser canceladas sem prejuízo do direito e interesse difuso de acesso à informação.
Uma sociedade livre implica a possibilidade de diversas visões de mundo serem disputadas na arena democrática.
Constitucionalidade do Marco Civil
Considerando todas as variáveis envolvidas, a decisão do Legislativo, ao mesmo tempo que privilegia os interesses das companhias (garantindo que elas não serão responsabilizadas caso não descumpram ordens judiciais), privilegia o Poder Judiciário como instância decisória competente para arbitrar os conflitos entre os direitos fundamentais envolvidos. Podemos criticar essa decisão, buscando aprimorá-la? É claro. Mas trata-se de uma opção legislativa legítima e constitucional. Argumentar que não caberia ao Judiciário avaliar, caso a caso, os limites da liberdade de expressão é desprestigiá-lo em detrimento da avaliação feita por instituições privadas.
Ao fundo, isso reflete o estado da arte das discussões político-jurídicas no Brasil. Toda análise é realizada a partir do binômio constitucionalidade/inconstitucionalidade. Ao criticar leis e atos normativos, deixamos de considerar conceitos como oportuno/inoportuno, conveniente/inconveniente, útil/inútil, entre outros. Todo debate foi deslocado para a análise direta e imediata do pretenso desalinhamento material do ato com aquilo que determina a Constituição, o que acaba por supervalorizar o aspecto jurídico e o papel do Judiciário, e empobrecer o espectro da deliberação pública e o papel do Legislativo.
Daí a nossa conclusão de que, embora para alguns inoportuno ou insuficiente, o artigo 19 do Marco Civil da Internet é constitucional. Atribuir ao Judiciário o papel de definir, caso a caso, os alcances e limites da liberdade de expressão não parece ser “proteção insuficiente” a nenhum direito.
No mais, a despeito de bem-intencionado ao apelar ao Congresso pela elaboração de legislação que assegure a proteção aos direitos fundamentais, o STF parece não ter realizado a devida ponderação com direitos também constitucionais como o acesso à informação e à livre manifestação do pensamento.
Ao abrir caminho para a responsabilização civil dos provedores de aplicações independentemente de decisão judicial, a corte acabou por incentivar uma restrição excessiva — e pautada em fundamentos econômicos — do conteúdo veiculado nas plataformas. Na ausência de parâmetros claros sobre quais conteúdos devem ser removidos preventivamente, as empresas tendem a adotar posturas excessivamente cautelosas, excluindo material que, embora controverso, está amparado pelo direito à livre expressão. Esse excesso protetivo não apenas cerceia o debate público legítimo, mas também mina a pluralidade de vozes essencial à democracia.
Outro equívoco, ao nosso ver, consistiu na delimitação, pelo próprio STF, das hipóteses — como os crimes graves, os anúncios pagos e as postagens automatizadas — em que haveria presunção de responsabilidade. Essa é uma decisão que compete ao Legislativo, jamais a um órgão não eleito como o Poder Judiciário. A este compete, puramente, avaliar a conformidade da legislação com a Constituição, e não com aquilo que seus membros acreditam ser o mais correto, melhor ou o mais justo. O controle de constitucionalidade não implica a possibilidade de os juízes, a partir de seus próprios interesses, tomarem uma decisão em nome de toda a sociedade.
Em suma, embora o STF tenha agido para corrigir omissões do Marco Civil da Internet, a solução adotada acaba por agravar a fragilidade do sistema de moderação de conteúdos, transferindo às plataformas responsabilidades que cabem ao Legislativo definir e ao Judiciário aferir caso a caso. A decisão, ao privilegiar a responsabilização imediata, impõe risco de autocensura e fragiliza direitos fundamentais, como o pluralismo e o acesso à informação. O aperfeiçoamento legislativo, alinhado a parâmetros objetivos e garantias processuais, é, portanto, imprescindível para equilibrar segurança jurídica, liberdade de expressão e proteção aos direitos dos usuários na era digital.
[1] Responsabilidade esta que pode ser afastada caso a plataforma demonstre que atuou diligentemente e em tempo razoável para indisponibilizar o conteúdo.
[2] “(a) condutas e atos antidemocráticos que se amoldem aos tipos previstos nos artigos 286, parágrafo único, 359-L, 359-M, 359-N, 359-P e 359-R do Código Penal; (b) crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo, tipificados pela Lei nº 13.260/2016; (c) crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, nos termos do art. 122 do Código Penal; (d) incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero (condutas homofóbicas e transfóbicas), passível de enquadramento nos arts. 20, 20-A, 20-B e 20-C da Lei nº 7.716, de 1989; (e) crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio às mulheres (Lei nº 11.340/06; Lei nº 10.446/02; Lei nº 14.192/21; CP, art. 141, § 3º; art. 146-A; art. 147, § 1º; art. 147-A; e art. 147-B do CP); (f) crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes, nos termos dos arts. 217-A, 218, 218-A, 218-B, 218-C, do Código Penal e dos arts. 240, 241-A, 241-C, 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente; g) tráfico de pessoas (CP, art. 149-A).”
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